Ano: II Número: 13
ISSN: 1983-005X
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O impacto das políticas públicas no design na América Latina (1950-meados 1970)
Silvia Fernández

O presente artigo foi apresentado na Segunda Conferência Internacional de Estudos de História do Design realizada nos dias 15 e 16 de setembro de 2008 na Universidade Iuav de Veneza, Faculdade de Design e Arte.

É uma contribuição à compreensão da história do design latino-americano, a partir da perspectiva sócio-político-econômica, revaloriza um período fundamental e de fundação do design de nossos países em geral, orientado para a produção de bens duráveis e comunicação visual vinculados a políticas públicas, e convida à reflexão sobre histórias locais, a partir desta perspectiva. 


La Historia del diseño en América Latina y el Caribe. Industrialización y comunicación visual para la autonomía (2008), produção coletiva de 24 autores coordenada pela NODAL (Nodo de Diseño América Latina) por Gui Bonsiepe e Silvia Fernández, publicado pela editora brasileira Edgar Blücher em São Paulo, baseou-se em duas hipóteses:

1_
Que uma história do design não pode prescindir da relação com o contexto industrial, tecnológico e econômico.

Nesse aspecto, talvez difira de outros enfoques da história do design.

Definitivamente se deu ênfase que não gostaríamos de ficar no âmbito das discussões de estilo e questões morfológicas. Também não gostaríamos de fixar-nos em designers individuais. Não queríamos escrever uma história de heróis.

2_
Que nas décadas de 1960 e 1970 as economias nos países latino-americanos em geral, tanto em governos militares, socialistas, liberais e conservadores se reorientaram para políticas de substituição de importações e conseguiram um sustentável desenvolvimento industrial alternativo a seu perfil de produtor de básicos (commodities). O design, que se encontrava em fase de influências e definições, esteve condicionado pelo setor público, a partir dos ministérios da economia, da indústria e comércio. Fazia parte do discurso político em termos de autonomia. Esse processo ficou em aberto e, em alguns países, foi truncado, a partir da década de 1980.

A partir da verificação destas duas hipóteses, foi possível traçar, pela primeira vez, uma visão integral do contexto econômico-político e o estado do design na América Latina entre as décadas de 1950 até meados dos anos 1970, que evidencia como o design acompanhou essa fase de crescimento. Este período constitui um paradigma da importância que o design assume em processos que tendem a estados de bem-estar generalizado. 

Panorama do perfil econômico da América Latina

A economia da América Latina, vista a partir do Centro (ou dos dois diferentes Centros que dominaram os últimos 500 anos) esteve sempre destinada a um papel de provedora de recursos naturais para os países “desenvolvidos”. As coroas da Espanha e de Portugal, primeiro, empenhadas na exploração e extração de minerais – a prata de Potosí (Bolívia), o ouro no Peru, no Brasil e no México.

Anos                Ouro (kilos)                    Prata (kilos)
1503-1510        4.965                    0
1511-1520        9.153                    0
1521-1530        4.889                    148
1531-1540        14.466                    86.193
1541-1550        24.957                    177.573
1551-1560        42.620                    303.121
1561-1570        11.530                    942.858
1571-1580        9.429                    1.118.592
1581-1590        12.101                    2.103.027
1591-1600        19.451                    2.707.626


Envios para a Espanha de ouro e prata no século XVI a partir de Potosí (Bolivia), em valores absolutos.
(“La minería colonial de materiales preciosos”. http://www.gabrielbernat.es)


Posteriormente se impôs o modelo agro-exportador, vigente até a década de 1930, fundamentalmente com a produção de café, açúcar, tabaco, cacau, borracha nos países tropicais e subtropicais e de carne bovina, lãs, cereais na região do rio da Prata (e Patagônia). Estas atividades agropecuárias foram o motor da economia até a crise de 1930. As duas grandes guerras geraram na região uma falta de abastecimento de bens duráveis e de capital, que deram lugar a políticas baseadas na “Industrialização por Substituição de Importações ” (ISI), que cobria o mercado doméstico  –ainda que da perspectiva européia, sobretudo a primeira ISI, seja considerada como uma economia “semi-industrializada”.

A segunda rodada de industrialização, também baseada no modelo ISI, foi iniciada nos anos 1950 até meados da década de 1970 e foi bandeira de diversas formas de governo e de diferentes ideologias que coincidiam com uma vocação modernizadora. Procuravam o auto-abastecimento no marco de una economia protegida com a incorporação de tecnologia dos países desenvolvidos e uma de suas mais significativas fraquezas foi o endividamento externo. O economista chileno Jorge Fajnzylber define o processo como una “industrialização prematuramente avançada e posteriormente estancada”. (Fajnzylber:118) (imagem 1) O complexo metal-mecânico e, particularmente, a indústria automotiva foi o setor mais representativo, gerou emprego, foi motor de crescimento e base de acumulação de capital. A Argentina, o Brasil, o México, o Equador, o Uruguai e o Chile contaram com modelos produzidos localmente, às vezes com projeto local e, outras, sobre a base de importados, geralmente para modelos familiares ou utilitários (imagem 2). O Brasil alcançou a mais significativa produção de veículos em 1978 com 500 mil veículos anuais, chegando ao 10º lugar em nível mundial e primeiro na América Latina. Em 1961 produzia 9 modelos e, em 1978, chegou a desenvolver e oferecer ao mercado interno 70 modelos (imagem 3).

Outro aspecto importante deste período é o investimento em infra-estrutura e obras públicas a cargo do Estado, programas viários,  mas também estádios para eventos desportivos, hospitais, aeroportos. Na metade dos anos 1970, a indústria eletrônica se desenvolveu no Brasil, no Chile, na Argentina, no México e até na Venezuela, sobretudo em bens de  consumo como televisores, receptores de rádio, equipamentos de gravação e calculadoras produzidos para o mercado interno.

O papel do Estado foi determinante na definição de políticas e programas de desenvolvimento industrial. E, portanto, o setor público – tão depreciado de acordo com o predominante pensamento neoliberal – criou a base para a atividade do design industrial e gráfico. Conceitos como ‘planejamento’, ‘intervencionismo’, ‘economia nacional’, ‘responsabilidade social’ conformavam a discussão política e econômica e medidas como a proteção alfandegária ou a proibição de importações e a disposição de créditos subsidiados impulsionavam o empresariado local. Nesses anos produziu-se uma importante discussão sobre política científico-tecnológica na América Latina, da qual surgiu um corpo doutrinário sobre a reação ciência-tecnologia-desenvolvimento.

A partir da Cepal (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe) o economista Raúl Prebisch, formulou bem cedo um diagnóstico do atraso econômico da América Latina, em concordância com a teoria da dependência (Fernando Henrique Cardoso, Theotonio dos Santos, Andre Gunder Frank, Celso Furtado, Ruy Mauro Marini e Enzo Faletto, entre outros). Esta perspectiva da CEPAL coincidia com outros organismos internacionais relevantes nas formulações sobre desenvolvimento e planejamento para a região e foi expressa também por Harry Truman, em seu discurso de posse como presidente dos EUA, em 1949, quando afirmou “a necessidade de salvar os países pobres do comunismo, salvando-os da pobreza.”

A partir da Revolução Cubana (1959) gestaram-se medidas para contrabalançar a influência do comunismo na região, como a Aliança para o progresso (Kennedy, 1961) que se baseava na suposição de que, por meio do desenvolvimento, se poderia enfrentar a ameaça que representava Cuba para os interesses dos EUA. Esse programa coincidia com o modelo de industrialização e a necessidade de investimento estrangeiro direto e, para esse fim, o governo do norte destinou 20 bilhões de dólares para aplicar num plano de dez anos. Sem dúvida, em meados da década, a situação política interna dos EUA, os resultados negativos do Vietnam e a instabilidade do Terceiro Mundo fizeram que a ajuda fosse interrompida.

Por volta desses anos produziu-se uma importante discussão conceitual sobre política científico-tecnológica na América Latina, da qual surgiu um grupo doutrinário sobre a relação ciência-tecnologia-desenvolvimento e propostas mais gerais sobre dependência, libertação e autonomia. (Ciapuscio:13).

Os países andinos dependiam quase cem por cento da tecnologia importada sem impor restrições, quer dizer, por décadas anteciparam-se às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em 1969, a  Colômbia, a Venezuela, o Equador, o  Peru, o Chile e a Bolívia se uniram no Pacto Andino – com a assinatura do Acordo de Cartagena – para gerar um modelo de desenvolvimento programado, com ênfase na tecnologia, que permitiria reduzir a vulnerabilidade externa e melhorar a posição dos países membros no contexto econômico internacional. O acordo se fundamentou em bases conceituais elaboradas pela “Escuela Latinoamericana de Pensamiento en Ciencia, Tecnología y Desarrollo” caracterizada por um enfoque macro-social em torno da autonomia tecnológica, do desenvolvimento local da tecnologia e de seu papel no processo de desenvolvimento e integração. Foi o maior esforço histórico regional pela autonomia tecnológica que fracassou por várias razões  cuja explicação excede os marcos deste texto.


Dados sobre o crescimento regional durante o segundo período da substituição das importações

Apresentam-se, a seguir, alguns dados sobre o rápido índice de crescimento na produção e nas exportações, característico desta fase (imagem4) pesquisados por Fernando Fajnzylber em La industrialización trunca de América Latina, “Enquanto entre 1950 a 1978 a indústria cresce na América Latina a um ritmo de 6,5 por cento anual, o crescimento no Brasil é mais significativo, de 8,5 por cento anual. Em 1950, a Argentina, o Chile e o  Uruguai geravam 41por cento da produção industrial da América Latina, enquanto em 1978, essa produção se reduziu a 20,5 por cento do conjunto da região. No mesmo período, o Brasil e o México elevaram sua participação na oferta industrial da América Latina de 42,1 para 61,8 por cento. Isto é, enquanto em 1950,o Brasil e o México geravam uma produção similar à da Argentina, Chile e Uruguai, em 1978, a produção industrial desses três países representava a terça parte da produção do Brasil e do México.” (Fajnzylber: 1983, p. 118-119) (imagem 5)

O crescimento era maior que o das economias industriais maduras, mas inferior ao dinamismo que caracterizou os líderes do crescimento industrial do pós-guerra, Japão e os países socialistas.

Quadro
1955-1975 (taxa média de crescimento anual)
EUA            2,8%       
Europa Ocidental        4,8%           
América Latina         6,9%   
Países socialistas     9,8%           
Japão             12,2%
(Fajnzylber: 1983, p. 118)

Em 1950, o grau de industrialização da região (em comparação a outras regiões do mundo ) era de 20 por cento, superado por 

Argentina     26%
Brasil         22%
Chile         23%
Uruguai         22%
“Análisis y perspectivas del desarrollo industrial latinoamericano”, ST/CEPAL/CONF.69/ agosto,1979, http://www.eclac.cl/
(Fajnzylber: 1984, p. 120)

De outra parte, a análise das exportações de manufaturas dos países latino-americanos no período 1965-1974 é um elemento revelador, cresce a um ritmo mais elevado do que o de qualquer outra região. Na América Latina, o ritmo de crescimento chegou a 21,1 por cento (taxa real de crescimento), duplicando o dos países mais desenvolvidos e superando, de longe, a exportações do conjunto dos países subdesenvolvidos (16,3%). (Fajnzylber: 1984, p. 128)


Exportação de manufaturas: valor absoluto, crescimento e relação com as exportações e com a produção manufatureira bruta

Taxa de crescimento real (1965-1974)
Subdesenvolvidos      16,3
América Latina        21,1
Ásia oriental        20,9

Desenvolvidos             10,8
Em transição*            18,0
Ouros da Europa Ocidental    10,4
América do Norte        8,9
Japão                15,6
Total mundial             10,6
Fonte: Banco Mundial, “Word Trade and Output of Manufactures: Structural Trends and Developing Countries Exports”, d. Keesing, Working Paper, núm. 316, janeiro de 1979. http://www-wds.worldbank.org
* Espanha, Portugal, Grécia, Chipre, Malta e Israel
(Fajnzylber:1984, p. 129)

Estas percentagens devem ser relativizadas, levando em conta que a América Latina* iniciou o crescimento com níveis  quase insignificantes e que as exportações representam uma proporção marginal da produção industrial (em 1973 representavam 4 por cento da produção manufatureira), o que não ocorria nos países do sudeste asiático (a proporção chegava a uns 30 por cento).


Estado do design industrial e da comunicação visual na segunda ISI

O design latino-americano se encontrava em fase emergente, sobretudo nos países que haviam já tido uma primeira industrialização - Argentina, Brasil, México, Chile, Uruguai–, mas também, premidos pelas circunstâncias de desenvolvimento Cuba, Colômbia e, em menor grau, Venezuela e Peru também participaram do processo. É preciso fazer constar também que muitos produtos “fabricados por subsidiárias estrangeiras foram resultado de cópias e patentes estrangeiras


1_Arte concreta
Na década de 1950, a arte concreta foi, para as vanguardas artísticas locais, o caminho para o design de influência suíça/Escola de Ulm. A arte concreta estava generalizada na América Latina e teve claros expoentes na Argentina, no Brasil, Equador, Chile, em Cuba, na Colômbia e Venezuela. Houve um intercâmbio entre artistas e designers locais e alemães e suíços. Max Bill recebeu o primeiro prêmio de escultura na I Bienal de São Paulo, em 1951, e fez nesta cidade uma exposição individual.

2_O pensamento de Tomás Maldonado
Em 1949 Tomás Maldonado escreveu em Buenos Aires o primeiro artigo sobre desenho industrial na Argentina, “Diseño Industrial  y sociedad“ publicado na revista da Universidade de Buenos Aires. Sua influência foi determinante a partir de sua permanência em Ulm, sobretudo na Argentina, no Brasil, no Chile, no Uruguai e em Cuba e, em menor medida, no México, na Colômbia e no Peru.

3_HfG Ulm
A Escola de Ulm (Hochschule für Gestaltung Ulm) exerceu influência nos países latino-americanos porque sua linha programática coincidia com os problemas contextuais a ser resolvidos pelos países da periferia. Descartava toda especulação artística ou decorativa sobre a atividade projetual, dava uma resposta operativa, prática aos processos industriais. Trinta e um estudantes latino-americanos estudaram na HfG Ulm: Argentina (9), Brasil (10), Colômbia (2), Chile (3), México (5), Peru (1), Venezuela (1). Docentes da HfG Ulm, realizaram viagens e participaram de programas de apoio a países latino-americanos em sua abertura para o design (Argentina, Uruguai, Brasil, Chile, Cuba, México, Peru).

4_Criação de carreiras.
Fundaram-se carreiras de design a partir dos anos 1950. A Esdi Rio de Janeiro é a pioneira, o primeiro plano de estudos foi formulado por Tomás Maldonado e é independente.

5_Criação de centros de design e instituições de promoção por parte do Estado.

6_Encomendas de design por parte de organismos estatais.
Olimpíadas, campeonatos mundiais de futebol, hospitais, aeroportos, sinalização das cidades e serviços públicos.

7_Empresas nacionais criaram departamentos de design para o desenvolvimento de produtos.
Por exemplo, a empresa Siam Di Tella, da Argentina, criou um departamento de design e desenvolvimento de produtos e uma agência de publicidade própria.

8_O design fazia parte do discurso político.
Em Cuba, criou-se o Ministério da Indústria, que foi dirigido pelo comandante Ernesto “Che” Guevara, e posteriormente o Ministério da Indústria Leve. O mesmo “Che”, em vários artigos, documentos e conferências afirmou explicitamente que via o desenvolvimento da indústria nacional como meio de propiciar objetos com qualidade e design para toda a população.” (Fernández Uriarte, Historia del diseño en América Latina, 2008 p. 111). O Chile no período do governo da Unidade Popular, também tinha o design como variável de transformação social.

Este ciclo teve a antecipação de seu final em toda a América Latina, com o colapso do governo democrático de Salvador Allende no Chile e a instauração do regime militar, que implementaria políticas “capitalistas sem inibições com apoio da força militar e uma repressão sem precedentes”, que podem ser consideradas o ensaio neoliberal que se aplicaria posteriormente em toda a região. Na atualidade, a economia regional, em geral, está orientada para a produção e exportação de básicos (petróleo, gás, soja, cereais madeira [celulose], carne, outros). A  pobreza continua afetando em uma proporção muito alta a população da América Latina e do Caribe, equivalente a mais de 40 por cento do  total, segundo a CEPAL (2005). Jacques Chonchol (1) advertiu que as economias latino-americanas carecem de capacidade de desenvolvimento autônomo e continuam muito atadas à exportação de matérias-primas, “qualquer mau passo no contexto internacional teria repercussões muito negativas na maior parte dos países da América Latina.” (2005).

(1) Jacques Chonchol, economista, ex-ministro de Agricultura no governo de Salvador Allende (1970-1973).



Bibliografia

Albornoz, M., Ciapuscio, H., AA.VV., Repensando la política tecnológica, Nueva Visión, Buenos Aires, 1994.

Cárdenas, E., Ocampo, J.A., Thorp, R. (comp.), Industrialización y Estado en América Latina, Fondo de Cultura Económica, México , 2003.

Fajnzylber, Fernando, La industrialización trunca de América Latina, Bibliotecas Universitarias, Centro Editor de América Latina, Buenos Aires, 1984.

Fernández, Silvia. Bonsiepe, Gui (coordinadores). Historia del diseño en América Latina y el Caribe, Editorial Blücher, San Pablo, 2008.

Katz, J. El proceso de industrialización: evolución, retroceso y prospectiva, Centro Editor de América Latina, Buenos Aires, 1989.

Martínez Vidal, C., Marí, M., “La Escuela Latinoamericana de Pensamiento en Ciencia, Tecnología y Desarrollo”. Notas de un Proyecto de investigación, Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología, Sociedad e Innovación (OEI), Nº 4, septiembre 2002.


Tradução: Ethel Leon

 


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