Ler o título dado pelos dois renomados historiadores ingleses, Asa Briggs e Peter Burke, ao seu livro escrito a quatro mãos já é um desafio. É preciso reler: Uma História Social da Mídia (A social history of the media no original). A frase nos parece imediatamente natural, mas o que afinal podemos entender por ‘história’, ‘social’ e ‘mídia’? O ressoar desse questionamento através de todo o livro, mesmo subrepticiamente, nos indica que estamos diante de uma obra inesgotável para aqueles que, se perguntando sobre os acontecimentos do presente, inevitavelmente se perguntam também sobre o passado.
O subtítulo também nos diz muito sobre o que vamos encontrar: de Gutenberg à Internet. A princípio poderíamos remontar facilmente o interesse expresso pela comunicação à Antiguidade Clássica (e porque não à invenção da escrita cerca de 5.000 a.C,?), no entanto nos alertam os autores: “Este livro focaliza o mundo ocidental moderno a partir do século XV”. A escolha por Gutenberg e pelo começo da impressão, entretanto, não nos parece arbitrária; como podemos entender a articulação entre ‘sociedade’ e ‘técnica’ antes disso? Na Introdução, Burke responde essa pergunta ao nos remeter panoramicamente a formas pré-modernas de comunicação; os rituais rememorativos e as montagens teatrais da Idade Média, as estátuas romanas e os ícones religiosos com falas circunscritas por balões (possíveis precursores das histórias em quadrinhos) são alguns dos exemplos que já suscitam questões presentes séculos mais tarde em outros meios. O historiador aproveita ainda a Introdução para fazer ressalvas e considerações fundamentais ao leitor, dentre as quais a necessidade de não ceder aos “perigos” de “afirmar que tudo piorou” ou que “houve um progresso contínuo”, assim como de manter aberto o debate sobre a relação entre a mídia e as estruturas sociais, aceitando, em outras palavras, a inevitável fragilidade das teorias que tentam dar conta terminantemente do fluxo contínuo da mídia. É preciso sustentar pontos de vistas diferentes para que a leitura efetivamente aconteça, do contrário, afirmar de antemão uma teoria em detrimento de outra constituiria uma parcialidade capaz de minar a percepção do que há de rico e surpreendente nessa investigação. Como uma boa narrativa, a viagem histórica de Briggs e Burke flui livre desse constrangimento.
Analisando a seguir o surgimento e a súbita “diáspora” da prensa gráfica na Europa por volta de 1500, os historiadores identificam, em meio a uma abundância de fatos e depoimentos, três questões que parecem fundamentais a todas as análises posteriores. A primeira delas é a de que a revolução da prensa gráfica não foi um evento puramente tecnológico e dependeu, portanto, de “condições sociais e culturais favoráveis” para a sua consolidação. Ao mesmo tempo, entretanto, podemos acompanhar o relato das mudanças provocadas nos hábitos e expectativas da sociedade com a introdução do novo meio de impressão – a padronização do modo de preservar o conhecimento é só um dos acontecimentos associados a essa revolução. Seria lícito então falar em uma indefinição entre condição e agente das mudanças? A prensa é consequência ou origem da revolução? “Talvez seja mais realista ver a nova técnica (...) como um catalisador, mais ajudando as mudanças sociais do que as originando.
A segunda questão levantada ainda nesse capítulo – e que persiste ao longo do livro em diversos exemplos – é o modo como diferentes mídias podem se imitar, competir ou complementar, sem nenhuma determinação a priori, a despeito das inúmeras previsões que são feitas a seu respeito. Essa coexistência de tecnologias e meios de comunicação parece de alguma forma análoga à coexistência de opiniões e argumentos antagônicos em cada época com relação à validade e ao futuro das mídias em ascensão. A isso junta-se a necessidade de analisar a partir de então os fênomenos da mídia em sincronia com as transformações em outros sistemas, entre eles o de transporte.
E por fim, antes de seguirmos adiante, os autores nos lembram da frutífera controvérsia entre modelos de análise histórica. Se por um lado alguns estudiosos defendem a autonomia dos contextos nos quais a prensa gráfica floresceu, outros advogam em função da descontextualização tornada possível pelo novo processo produtivo e pelas novas práticas de leitura e escrita. O debate pede um fim? Novamente: sustentemos pontos de vista alternativos em benefícios da própria leitura.
A seguir, com um mergulho nas transformações culturais e sociais da Reforma Protestante até a Revolução Francesa, os autores trazem à tona o conceito de esfera pública. Segundo eles – a favor e contra os argumentos do filósofo Jürgen Habermas sobre a especificidade desse conceito – a esfera pública já é uma realidade nos séculos XVI e XVII, e as mudanças ocorridas nesse período podem ser entendidas à luz dessa idéia. Divisamos desde já o tema da mídia como um novo poder e a relação intrínseca que ela estabelece com o desenvolvimento de outras tecnologias, entre elas o vapor e a eletricidade. Essa simbiose se torna mais clara à medida que percebemos o quanto elas participam de uma mesma “comunicação física” – os fios telegráficos, por exemplo, seguiram naturalmente os trilhos ferroviários. De certa forma voltamos a encontrar aqui relações entre sistemas que se condicionam mutuamente, e mesmo antes de conseguirmos falar propriamente em uma sociedade de massa o sistema da mídia já deve ser entendido como um todo complexo.
O capítulo sobre o vapor e a eletricidade é seguido por um dos pontos altos do livro, a narrativa em “Processos e Padrões” sobre a ‘história particular’ das tecnologias, desde das ferrovias até o gramofone (1). Os relatos se assemelham nesse momento a reportagens, sobretudo na maneira de concatenar fatos, personagens, declarações, publicações, artigos, assim como eventos e fatos curiosos datados e localizados com precisão. Nomes como Samuel Morse, Thomas Edison, Alexander Graham Bell, Alfred Harmsworth (primeiro visconde de Northcliffe), Marshall McLuhan, Guglielmo Marconi, Rupert Murdoch e John Reith são apenas alguns dos que figuram com frequência no livro, que a partir desse ponto não se restringe só aos acontecimentos na Europa e nos EUA, apresentando alguns dados relevantes à história da mídia em outros pontos do globo.
Apesar de muitas vezes jornalística a narrativa não abandona a insistente preocupação com a semântica dos termos surgidos a cada passo tecnológico e com a discussão gerada em torno deles. Palavras como ‘ciência’ ainda não eram usadas quando a eletricidade substituiu o vapor. No final do século XVIII, por exemplo, ‘invenção’, ‘descobrimento’ ou mesmo ‘brinquedo’ eram bastante comuns antes que fosse possível designar algo como ‘tecnologia’. Por outro lado descobrimos que ‘idade da Rede’ não é uma metáfora exclusiva do nosso tempo.
O esforço justificado dos autores em especificar o uso das palavras revela mudanças de perspectiva histórica ao longo do tempo. Mudanças traduzidas em ações, declarações e documentos históricos que nos fornecem indícios sobre o contexto social das revoluções no sistema da mídia e o modo às vezes surpreendente como elas foram percebidas; é possível dizer que as expectativas caminham com as tecnologias.
E assim outras três palavras nos dão um novo capítulo: ‘informação’, ‘educação’ e ‘entretenimento’. Novamente as transformações tecnológicas são de fundamental importância para entender as mudanças sociais nessas três áreas durante os séculos XIX e XX. A análise dividida temporalmente – como em “A era da difusão”, “A idade da televisão” e “A sociedade da informação” – visa esclarecer a maneira como esses três conceitos chegaram a ser entendidos atualmente. Percebemos que mesmo o nosso vocabulário mais cotidiano permanece um desafio para qualquer um que queira expô-lo com clareza. As palavras têm sua própria história dentro da sociedade. Como entendemos ‘informação’, ‘educação’ e ‘entretenimento’ hoje? Daí a pertinência de uma história social da mídia. E o que dizer, mais uma vez, de ‘história’, ‘social’ e ‘mídia’? Nessa ocasião podemos mencionar a defesa de outros recentes historiadores, entre eles Quetin Skinner, de uma história dos conceitos como condição de outros estudos históricos.
‘Convergência’ e ‘multimídia’ chegam ao final para coroar a análise, guiando-nos através do surgimento dos computadores e satélites, da corrida espacial e da Internet até o 11 de Setembro em Nova Iorque e o evidente papel da mídia na cobertura dos atentados terroristas e suas consequências. Papel esse que contemporaneamente parece mais sugerir o futuro ao tratar do dia e da semana do que descrever os fatos ocorridos. Como fazer história disso?
A segunda edição revista e ampliada do texto de Briggs e Burke é não só uma referência indispensável aos estudiosos do assunto, mas também fonte preciosa de informações e análises a todos os que permanecem inquietos com o nosso tempo. A importância do livro como catalisador de questões sobre a mídia é inégavel.
O que é a mídia? Como chegou a se tornar um novo poder? Por que, mesmo depois de séculos, ainda assim ela eventualmente nos assusta? Interrogações desse tipo não chegam a ser formuladas com propriedade sem a presença de uma publicação como essa. Complementada ainda por uma cronologia volumosa e uma seção de leituras adicionais pormenorizada, essa obra nos fornece o material útil não às respostas, mas à tarefa ininterrupta de formular as perguntas.
(1) Com apenas três páginas, a história da fotografia não teria sofrido uma grave omissão sem uma seção própria?
(2) Ver o artigo de Quentin Skinner, ‘On Intellectual History and the History of Books’. Contributions to the history of concepts, Rio de Janeiro, 1 (1): 29–36, mar. 2005.
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BRIGGS, Asa & BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. Tradução Maria Carmelita Pádua Dias. 2ª ed. rev. e ampl. 376pp.
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Felipe Kaizer é designer gráfico formado pela PUC-Rio em 2006. Desde a conclusão da sua monografia de graduação mantém o interesse pela filosofia e pela teoria política. Atualmente projeta livros e famílias tipográficas.