O kindle e as traças
Ethel Leon
O kindle, suporte eletrônico desenvolvido pela Amazon, nunca foi meu objeto de desejo. Principalmente depois que li o artigo de Victor Margolin que publicamos aqui...
É aflitivo saber que uma empresa pode apagar seus arquivos na hora que quiser, colocando em risco sua biblioteca.
Acontece que ganhei um kindle de presente. E como a maior parte dos mortais, fiquei fascinada com mais esse objeto da era da informação. Por vários motivos.
Um deles foi sua leveza. O novo kindle pesa tanto quanto, digamos, as Cartas a um jovem poeta de Rilke, o Vidas Secas de Graciliano, A Metamorfose de Kafka. Fininho, levinho, mas aí entra o fetiche, pode armazenar 3500 livros! Certamente, muito mais do que vou conseguir ler nos próximos 20 anos.
A leveza do artefato e também sua tela sem brilho tornam esse dispositivo o companheiro ideal para viagens. Nada de carregar peso na bagagem. Nada de escolher o livro pelo tamanho e ainda correr o risco de acabar sua leitura bem antes do retorno, o que obrigaria à compra de novo volume.
Outra vantagem do baixo peso é o conforto das mãos e dos punhos. Alguém já tentou ler Passagens de Walter Benjamim sem apoiá-lo numa mesa e sem ganhar uma tendinite daquelas?
Mas o que definitivamente me cativou no kindle foi a possibilidade de receber amostras dos livros sem qualquer compromisso de comprá-los. As amostras têm 90 páginas e, desse modo, é difícil fazer uma escolha errada : depois das 50 primeiras páginas, já sabemos se o livro é bom ou não.
Empolgada com as amostras grátis de livros, desandei a pedi-las freneticamente. Comecei a achar o kindle a melhor das invenções. Retirei do baú a cantilena eco-amigável que recomenda a substituição da propriedade pelo aluguel; do material pelo digital... Li com avidez trechos de livros de estudo, romances, manuais de culinária, guias de viagem, biografias.
Até que percebi que o botão de pedir amostras na interface do kindle fica muito próximo do botão comprar!
Os leitores já imaginam o meu susto ao perceber que adquirira mais de 900 dólares em livros que nem eram exatamente os que desejava. Danei a cancelar as compras e me senti feita de boba pela Amazon. A proximidade dos botões soa proposital e eu mesma me perguntei se não deveria comprar alguns títulos daqueles, já que nem eram caros e...
Logo depois me corrigi. Lembrei dos designers amigos que se indignam com as falhas de projeto, especialmente essas que induzem a erro do usuário. Não só desfiz as compras, mas mandei email esbravejante para a Amazon.
Dias depois, para minha tristeza, vejo que a tela do kindle quebrou. Entrei em contato com o serviço de atendimento da Amazon e fui atendida em chat da rede por um indiano chamado Sudipto. Extremamente polido, com um inglês pra lá de perfeito, acabou percebendo que eu deveria falar com a Amazon dos Estados Unidos, uma vez que o modelo desse meu kindle só era vendido no território americano.
Robin era o nome do atendente, muito menos educado, com inglês bem mais coloquial. Sumariamente ele me disse que o kindle teria de ser trocado nos EUA e nunca enviado para o Brasil etc..
O mundo global, pensei. Atendentes indianos com inglês bem melhor que os norte-americanos. Restrições de circulação de mercadorias, apesar de todo discurso do fim das barreiras...
E mais, uma pequena biblioteca eletrônica inutilizável...Olho para meus livros, alguns já bem amarelados, outros sem capa e creio preferir a lenta ação dos fungos e das traças ao poder centralizado de uma livraria virtual.
PS Digo isso sem convicção. Tão logo chegar o novo kindle, vou voltar a baixar amostras e comprar arquivos digitais.
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