Acaba de ser lançado pela Companhia das Letras o livro As Coisas de Georges Perec (tradução de Rosa Freire de Aguiar), autor de A vida, modo de usar (trad. Ivo Barroso) da mesma editora e de muitos outros romances, a maioria ainda não acessível em português.
As Coisas é um livro que deu o que falar. Romance, ou melhor, novela praticamente sem enredo, apenas o grande enfado de um jovem casal, Jerôme e Sylvie, recém-formado em psico-sociologia, proto-disciplina que lhes serve para aplicar questionários em pesquisas de mercado, extremamente desinteressantes.
Na vida vazia dos dois protagonistas, só resta a perspectiva de ter objetos, listá-los obsessivamente.
A tentativa de escapar desse mundo da nova classe média francesa dos anos 1960 (anteriores a maio de 68) é uma ida frustrante para a Tunísia, na qual Sylvie passa seu tempo a ver objetos.
O escritor e ensaísta Orham Pamuk diz em seu texto O escritor ingênuo e sentimental que “as descrições de coisas num romance são (ou deveriam ser) o resultado e a expressão da compaixão pelas personagens.” E talvez esta conclusão se aplique a As Coisas.
O livro foi comentado por Jean Baudrillard em O Sistema dos Objetos (Perspectiva). Nele, segundo o semiólogo, transpareceria a emergência da economia de signos, quando os objetos deixam de simbolizar uma relação humana, mas são desejados e consumidos arbitrariamente, sem nada significar.
A narrativa, segundo Baudrillard, daria conta de mostrar o vazio da existência dos protagonistas que sequer têm individualidade, são o casal, assim se vêem e se fazem ver.
Para Baudrillard, o texto é um perfeito exemplo para entender o consumo contemporâneo, não como satisfação de necessidades, que não é, mas como prática idealizada, razão do viver fragmentado e frustrado. Por isso, As Coisas é daquelas leituras básicas do mundo do design.
Em uma entrevista, Perec disse que nada entenderam aqueles que viram em seu livro a dissecação da sociedade de consumo. Talvez muitos enxergassem nele mais uma demonstração sociológica da geração dos anos 1960 do que uma peça literária, com seu embate específico.
Como muito bem qualificou o escritor e tradutor Ivo Barroso (que também traduziu o fenomenal A Coleção particular, publicado pela Cosac Naify), Perec é um Proust da sucata.
Da sucata literária, pois refaz e cita muitos outros textos, o que torna a leitura de seus livros uma espécie de expedição arqueológica literária.
Mas, talvez, a melhor aproximação que se possa fazer da obra de Perec com o design é sua busca (assim como de Raymond Queneau e Italo Calvino, entre outros) de difíceis limites e coações que baseiam o programa de seus textos.
Em um deles, La Disparition, Perec consegue a proeza de só escrever com palavras que não têm a letra E, talvez a mais recorrente vogal da língua francesa.
Também – observação é de Ivo Barroso (http://gavetadoivo.wordpress) – sua precisão absoluta na descrição de utensílios e ferramentas das mais variadas estirpes faz compreender que as palavras e os sinais gráficos, assim como as peças de encaixe e as matérias-primas de um projeto são sempre particularíssimas.
Ao contrário do que muitos ingênuos acreditam, literatura e design se fazem com limites e coerções.