Ano: II Número: 13
ISSN: 1983-005X
Detalhar Busca

Rio e Oscar, diferenças no projeto
Fernando Mendes de Almeida

A publicação na Agitprop dos dois textos do Tenreiro (Agitprop n. 12) despertou meu interesse em discutir aspectos da produção de alguns móveis modernos brasileiros.

Na Mendes-Hirth fabricamos sob licença a cadeira Rio (que já se chamou cadeira Verão), do Bernardo Figueiredo, e já fabricamos também a cadeira Oscar, do Sergio Rodrigues, sob encomenda do próprio autor. São duas cadeiras bem diferentes em desenho e construção, mas com propostas similares de uso. São pequenas poltronas, leves, delicadas, com assentos e encostos trançados em palhinha natural, e foram criadas entre as décadas de 1950 e 1960.

Não me proponho aqui a qualquer avaliação sobre as qualidades formais de cada uma, nem a comparação entre as duas nesse sentido (até porque acho lindas todas as duas), mas um breve comentário sobre o projeto e a viabilidade de fabricação de cada uma delas, detalhes que não são percebidos pelo olhar comum, mesmo que interessado, mas que Tenreiro observou tão bem no texto O desenho do móvel.

Olhando a Rio e a Oscar, nota-se logo que são cadeiras complexas, e que foram projetadas para fabricação no grande estilo da fina marcenaria, mas há grande diferença entre construir uma e outra.
 
Vamos examinar, em primeiro, a cadeira Rio, de Bernardo Figueiredo:
 
Bernardo Figueiredo se lançou com sucesso no design de móveis nos anos 1960, mas projetava suas peças como arquiteto, desconectado dos afazeres da marcenaria, e teve como suporte as mãos habilidosas dos mestres da oficina do Joaquim Milhazes para tornar realidade suas criações.

Todo o processo de usinagem das peças da cadeira Rio é artesanal, quase impossível de ser executado por uma tupia. Nas extremidades do assento e do encosto (det.1), as grandes superfícies curvas nas peças de dupla curvatura (as peças são cortadas em curva tanto em vista quanto em planta) têm de ser esculpidas na serra fita, grosadas, limadas e aplainadas com boquexim (ou spokeshave) em horas de trabalho manual.

Feitos o assento e o encosto, passamos para a etapa de uni-los (det.2) por meio de uma delicada operação cirúrgica de ajuste entre as duplas curvaturas dos dois quadros que se encaixam num arco que não é nem mais o arco do encosto nem o do assento. Essa etapa é percorrida na base de juntar, ver onde está o excesso de madeira que impede a junção, aplainar, juntar de novo, marcar o excesso, aparar, testar... até que as duas superfícies de contato se casem perfeitamente.. Um trabalho sem fim.

Passadas essas duas etapas, temos de fazer encaixar essa que agora é uma única peça (assento e encosto unidos) na estrutura dos pés e braços. O feitio dos braços é o mesmo de uma pastilha de Mentex esticada, não há superfícies planas, elas se afinam do centro para as quatro bordas. As travessas laterais do encosto são engastadas nos braços (det.3) num corte com ângulos duplos (o ângulo da curvatura do encosto mais o ângulo entre o encosto e os braços) que tem de ser marcado na superfície abaulada dos braços. Mais uma etapa de “tentativa e erro” que deve terminar num encaixe perfeito.

O resultado de tanto trabalho, verdade seja dita, é uma cadeira confortável, elegante, leve e bem estruturada, mas é evidente, para mim, que o Bernardo Figueiredo, ao criar uma peça de fabricação tão exclusivamente artesanal, não compreendia bem os processos da marcenaria.
 
Vamos à cadeira Oscar de Sergio Rodrigues:
 
A cadeira Oscar tem todas as curvas que a imaginação do Sergio é capaz de desenhar e obviamente não é uma peça de fabricação simples, mas é possível observar que, para armar os quadros laterais da cadeira, os encaixes entre a travessa lateral e os pés, frontal e traseiro (det.4), têm três faces, o que é bem mais trabalhoso de fazer do que um único corte reto. As três faces do encaixe, porém, fazem sentido tanto estrutural quanto formal. Com esse desenho, nem a madeira dos pés, nem a madeira da travessa enfraquecem. Montados os quadros laterais, pode-se passar a tupia para arredondar todo o contorno da peça sem que as beiras do encaixe se quebrem. Além disso, com essa configuração, o encaixe fica mais reforçado para transferir o peso que a travessa recebe do assento e transfere para os pés.

Quanto ao aspecto formal, esse encaixe harmoniza o casamento entre os pés, a travessa e o desenho que elas formam depois de unidas.

Os braços da Oscar são as peças mais trabalhosas da cadeira, com contornos sinuosos, espessura que varia das extremidades mais finas para o centro mais grosso e um delicado rebaixo na face superior. Todas as furações de encaixe dos braços são feitas quando a peça é ainda um bloco de madeira de faces ortogonais, o rebaixo da face superior (det.5) também é feito nessa hora, ou seja, as operações que necessitam de precisão podem ser executadas antes dos cortes das curvas, facilitando tanto a marcação dos encaixes quanto o apoio da peça na máquina.

Juntando os braços ao quadro, cuja montagem foi descrita acima, temos duas laterais independentes que serão arrematadas à mão no pequeno encontro entre a frente do braço e a ponta superior do pé frontal (det.6). Apesar da complexidade dos braços, consegue-se planejar suas operações de fabricação, mesclando-se o uso de máquinas e pequenos ajustes com o uso de ferramentas manuais.

Os quadros de assento e de encosto, apesar de terem dupla curvatura, podem ser usinados na tupia, já que suas seções são pequenas e não exigem grande esforço das fresas. Com os quadros e as laterais prontos, passamos para a montagem final, unindo-se as duas laterais com as seis travessas transversais previamente usinadas. Os quadros de assento e encosto podem receber a palhinha e, posteriormente, são montados na estrutura.
 
Conclusão

O processo de construção dessas duas cadeiras vai muito além desse resumo aqui ilustrado, mas, em linhas gerais, o que observo na construção da cadeira Oscar é um processo de linha de montagem, na qual se preparam partes independentes que serão unidas na montagem final do produto; enquanto na cadeira Rio o processo é acumulativo, as partes da cadeira vão sendo unidas ao longo de toda a fabricação do produto. Ou seja, só é possível que  um marceneiro trabalhe em uma cadeira de cada vez.

A cadeira Oscar (para mim uma das mais belas criações de Sergio), com todas as suas curvas e sutilezas de acabamento, é um produto que impressiona pela sua complexidade construtiva, mas não onera a fabricação tanto quanto parece, grande sacada do Mestre Rodrigues.

Glossário:

Tupia: Máquina usada para desbastar madeira aplicando-lhe um perfil determinado.

Grosa: Lima grossa para desbastar madeira.

Lima: Ferramenta manual de aço lavrada de estrias e usada para desbastar ou raspar matérias duras.

Boquexim: Instrumento de corte, próximo da plaina, que serve para obtenção de formas orgânicas.

 


Comentários

RIcardo Graham Ferreira
06/12/2009

Muito interessante esta matéria. Especialmente para quem está envolvido em processos construtivos, conhece as ferramentas e já ficou estudando estas peças.

Julia Krantz
02/02/2009

Excelente matéria, muito elucidativa e verdadeira! Julia Krantz

Envie um comentário

RETORNAR