A cor no design
Michel Pastoureau, 2003
Tradutor(a):Gilberto Paim
Ainda falta ser escrita a história das relações entre o design e a cor. Por diferentes razões, cuja principal reside, como sempre, no pouco interesse que os historiadores manifestaram até hoje pela cor em geral, e por seu lugar na vida cotidiana e material em particular. A tirania exercida durante muito tempo pelo preto e branco na documentação e nas publicações explica em parte esse desinteresse. No entanto, há outras razões mais estreitamente ligadas à essência mesma do design, que sempre foi mais estratégia da forma do que da cor.
Quando observamos de perto, percebemos o quanto o design, compreendido ao longo do tempo, foi pouco inventivo no domínio da cor.
A própria Bauhaus -- contrariamente à idéia imposta pelos historiadores da arte – e todos seus discípulos mostraram às vezes limitações surpreendentes: o desconhecimento das questões éticas e fenômenos de moda, que condicionam todas as práticas sociais da cor no Ocidente; o recurso a uma estética preguiçosa, que aspira candidamente a “harmonizar” a cor e a função do objeto; a crença mais ou menos ingênua na verdade científica das cores e nas leis ópticas e químicas que permitem controlá-las; enfim, e sobretudo, a recusa a admitir que a cor é um fenômeno essencialmente cultural, rebelde a toda generalização, senão a toda análise e discurso.
1. O que se destaca quando olhamos os objetos domésticos produzidos em grande série no final do século XIX e início do XX, é a pobreza e uniformidade da palheta. Quase todas as cores se inscrevem no eixo preto-cinza-branco-marrom. As cores vivas e quentes são raras, e ainda mais raras as associações de cores fortemente constrastadas. A primeira idéia que vem ao espírito para tentar compreender essa penúria cromática é procurar do lado da química industrial das cores: teria sido ela incapaz de produzir em grande quantidade objetos de cores vivas, francas, luminosas, saturadas, diversificadas? Na verdade, não é nada disso. Desde o século XVIII o homem ocidental é capaz de fabricar de modo industrial a nuance exata de uma cor escolhida (o que tinha dificuldade em fazer antes). E, desde a metade do século XIX, também é capaz de multiplicar a quantidade de nuances para colorir qualquer objeto.
De fato, o problema não é nem químico nem técnico, mas ético. Se os primeiros aparelhos domésticos, as primeiras canetas, os primeiros telefones, os primeiros carros etc. são pretos, cinza, brancos ou marrons, e não verde-maçã, vermelho vivo ou amarelo-limão, os motivos são principalmente de ordem moral. Para a sociedade industrial do século XIX e início do XX, as cores vivas e francas, as cores quentes, as cores que atraem o olhar e captam a atenção são cores desonestas. Só se pode utilizá-las com parcimônia. As cores mais neutras e sóbrias, que participam da gama de cinzas e marrons, ou do universo do preto e branco, são consideradas, ao contrário, dignas, virtuosas, eficazes. A moral social recomenda o seu uso tanto no vestuário quanto nos objetos domésticos, e em tudo que é relacionado à vida cotidiana.
A atitude que moraliza a cor é ao mesmo tempo filha dos valores burgueses e – principalmente–- do grande capitalismo protestante. Em matéria de cor, os grandes capitães da indústria têm as mesmas idéias que os grandes reformistas do século XVI: todo cidadão honesto, assim como todo bom cristão, deve se afastar das cores agressivas, orgulhosas, chamativas; a policromia deve ser banida, assim como as cores quentes; o branco, o preto e o cinza, ao contrário, são as cores que melhor convêm em todas as circunstâncias, pois são mais discretas e humildes. O exemplo mais célebre desse comportamento é Henry Ford, puritano preocupado com a ética em todos os domínios. Apesar da demanda reiterada do público, apesar da política cromofílica de seus concorrentes, durante a maior parte da vida recusou-se a vender carros que não fossem pretos.
2. Para o design em seus primórdios, a moral social da cor é uma forte coerção que não pode ser ignorada. Durante várias décadas, ela impede que a cor do objeto seja adaptada à sua função (o que se busca com sucesso em relação à forma), entravando assim a instalação de um verdadeiro código funcional e limitando as ambições estéticas de criadores e fabricantes. As resistências que essa moral impõe a toda tentativa de se repensar as propriedades colorísticas dos objetos são tão fortes que, após a Primeira Guerra Mundial, as modificações de palheta (mais clara, mais franca, mais variada) que surgem no mercado – derivadas em grande parte das revoluções artísticas do início do século – parecem frequentemente brincadeiras ridículas, excêntricas e obscenas aos olhos do público. Elas permanecem marginais (o que se esquece de salientar) e ignoradas pela cultura de massa.
O mesmo peso das dimensões éticas e conservadoras da cor se encontra então em vários outros domínios da vida social e cultural. O cinema a cores, por exemplo, poderia ter sido comercializado antes se as pressões morais não tivessem entravado sua concepção e difusão: as imagens animadas e coloridas destinadas às massas, eram demais para os moralistas da sociedade! Também aqui o freio foi mais ético do que técnico ou financeiro. No entanto, é no vestuário, o código social por excelência, que as resistências morais à cor foram exercidas de modo mais durável e vigoroso. Foi preciso esperar a segunda metade do século para que a palheta das roupas de homens e mulheres clareasse, intensificasse e se diversificasse com sucesso.
Para o design, assim como para as roupas, as válvulas que permitiram explodir o velho sistema moral preto-cinza-branco-marrom foram encontradas nos tons pastéis (“cores que não ousam dizer seu nome”, segundo a bela expressão de Jean Baudrillard). Mais decentes do que as cores vivas e saturadas, mais sedutoras do que os cinzas e marrons, tiveram papel considerável – e pouco conhecido – nas mutações cromáticas do século XX. Muito mais significativas do que as revoluções radicais proclamadas por todos os movimentos artísticos e pictóricos, como o futurismo, cubismo, construtivismo, dadaísmo e surrealismo. Pois foram as cores pastéis pobres e feias – azul celeste, amarelo pálido, verde amarelado, rosa, violeta, bege etc – que, entre 1880 e 1950, no campo do verdadeiro consumo de massa, tornaram possível a eclosão, na segunda metade do século, de nossas cores “verdadeiras”, densas, luminosas, constrastadas, alegres, tônicas, por vezes agressivas. Qual historiador, qual sociólogo ousará um dia lhes fazer justiça?
3. A fé na ciência e a busca positivista da verdade da cor são atitudes que também explicam o modo ingênuo e pouco antropológico com o qual o design pensou frequentemente os problemas da cor. Procurando adequar a forma, a cor e a função dos objetos, ele acreditou até bem recentemente numa realidade natural e psicológica da cor. Como se realmente existissem cores puras e impuras, cores quentes e frias, cores próximas e distantes, cores dinâmicas e estáticas, cores excitantes e tranquilizantes.
Esquecendo-se do caráter estreitamente cultural da percepção e do caráter totalmente convencional do simbolismo da cor, o design tentou muitas vezes construir códigos universais em torno de uma pretensa “verdade ontológica” da cor. Esses códigos – e as explicações que os acompanham – não somente fazem hoje sorrir historiadores e antropólogos, mas sobretudo provocam a rejeição dos consumidores, contrariando a pretensa finalidade de harmonizar satisfação prática e estética. Tudo que tem a ver com água nem sempre pode ser azul; tudo o que tem a ver com o fogo, vermelho; com a natureza, verde; com o sol, amarelo. Nem todos os quartos dos hospitais precisam ser brancos; todos os carros velozes vermelhos; todos os brinquedos infantis amarelos ou alaranjados etc.
Do mesmo modo, demasiado crédito à teoria científica (seria preciso dizer pseudo-científica?) das cores primárias (amarelo, azul, vermelho, estas duas mostruosamente expressas de agora em diante pelos termos cyan e magenta) e cores complementares (verde, violeta, laranja) limitou as ambições cromáticas do design industrial, para não dizer que fez com que perdessem o rumo. Essa teoria, elaborada por pintores e cientistas a partir do século –XVIII e retomada pelos artistas dos séculos XIX e XX, não se apoia em nenhuma realidade social ou cultural da cor. Além disso, ela é contrária a todas as práticas da cor anteriores à época contemporânea, conflitando assim com as crenças e sistemas de valor profundamente arraigados à sensibilidade ocidental, sendo mal recebida, senão mal vivida pelo público.
Típico, nesse sentido, é o caso do verde. A ciência e depois a arte moderna (pensemos, por exemplo, em Mondrian) lhe recusaram o estatuto de cor de base; elas o rebaixaram ao nível de cor complementar, de cor de segunda geração apresentada unicamente como produto da mistura entre o amarelo e o azul (o que não era verdadeiro na Idade Média ou Antiguidade). Ora, esse estatuto desvalorizado do verde, ao qual o design aderiu completamente – a ponto de transformá-lo em cor de segunda classe – contraria todas as tradições e usos antigos. No Ocidente desde a época feudal, para os saberes, mentalidades e sensibilidades tradicionais, não há apenas três cores básicas, mas quatro: azul, vermelho, amarelo e verde. A estas quatro cores é preciso acrescentar o preto e o branco que, durante séculos, senão milênios, integraram a ordem das cores, constituindo polos essenciais de todos os sistemas de cor.
Escrava do espectro e da classificação espectral das cores, a criação industrial frequentemente se enganou recusando ao preto e ao branco o estatuto de cores integrais, opondo sistematicamente o mundo da cor ao mundo do preto e branco. Assim procedendo, ela se chocou contra taxinomias mais antigas do que o espectro, de dimensão cultural muito mais profunda. Também aqui, a sensibilidade do público foi irritada, contrariada, confundida.
4. Outro fator que limita ambições e sucessos do design industrial em matéria de cor consiste nos fenômenos de moda. Estes mostram o quanto é difícil impor gostos e escolhas, e sobretudo, o quanto estes últimos são efêmeros, sutis, inapreensíveis. Nem verdadeiramente individuais ou coletivos, não se submetem exclusivamente às abordagens psicológica ou sociológica.
Para o designer, produtor e codificador de cores, os parâmetros mais difíceis de dominar são o distanciamento e o desgaste. Uma cor ou associação de cores, só é de fato atraente e valorizada porque se afasta de outras cores e associações de cores, de hábitos e práticas disponíveis e abundantes, e não como gostaria o design, porque está em harmonia com a forma e a função do objeto.
Produzir em grande quantidade uma cor ou associação de cores – finalidade genuína da criação industrial – equivale evidentemente a condená-la a não ter sucesso ou a um sucesso muito efêmero. No campo da moda, os movimentos pendulares são rápidos e caprichosos, e talvez ainda mais em relação à cor do que em relação a qualquer outro elemento. Quando todos os carros eram pretos, o máximo do chic era ter um carro vermelho, azul ou verde; e quando todas as cores ficaram vivas o fino do fino era possuir um carro preto. As pesquisas dos designers e as leis da produção de massa nunca conseguiram escapar dessa armadilha, especialmente tortuosa e perigosa, pois numa mesma época e lugar, cada meio, faixa etária, grupo ou sub-grupo social ou profissional tem seus próprios valores, difíceis de serem compreendidos de fora, impossíveis de serem canalizados ou fixados, pois estão prontos para se inverter, se destruir ou se metamorfosear sob a menor excitação ou carícia.
Eis porque o historiador tem razão em dizer que quase todas as tentativas do design para dominar esses fenômenos de moda no domínio da cor resultaram em fracassos ou semi-fracassos. Os verdadeiros sucessos só foram possíveis quando as finalidades e a ética da criação industrial foram pervertidas, ou seja, quando se renunciou à produção de massa e ao preço baixo – duas imposições fundamentais do verdadeiro design – propondo ao mercado objetos domésticos concebidos desde o início como signos de classe. Preso ao turbilhão dos ciclos de moda, às leis econômicas e aos caprichos do esnobismo, o design -- assim como todas as formas de criação contemporânea -- nunca saiu engrandecido dessa atitude. “O feio vende mal” (Raymond Loewy), está certo, mas fazer o belo para fazer dinheiro não seria uma feiúra de outro tipo?
Apesar do retrato um pouco sombrio – e necessariamente simplista – da história da relação entre o design e as cores, do fim do século XX aos anos 1980, é claro que houve também alguns autênticos sucessos. Os profissionais formados pela Bauhaus, por exemplo, depois que se instalaram dos Estados Unidos a partir dos anos 1930 lançaram no mercado de consumo de massa produtos de cores simples, sedutoras e “funcionais” (quem saberá um dia definir esse termo?) que encontraram a adesão do público.
No entanto, a meu ver, um dos grandes méritos do design e da criação industrial não é esse, mas saber proclamar a função social primordial da cor: classificar. Quaisquer que tenham sido os usos até agora, quaisquer que tenham sido os códigos utilizados, antes de mais nada, a cor serve para classificar, arrumar, etiquetar, organizar, opor, associar, hierarquizar. Essa função taxinômica da cor concerne tanto os homens quanto as idéias, os lugares assim como os objetos, os textos assim como as imagens. No Ocidente, ela está presente em todos os tempos e culturas. Desse modo revela a vaidade de toda abordagem estreitamente científica ou puramente artística da cor. Esta não pode ser definida, compreendida ou estudada, senão em relação ao que faz dela o homem vivo em sociedade. A história das cores só pode ser uma história social.
O texto acima é o capítulo Design, de Les couleurs de notre temps, Michel Pastoureau, Christine Bonneton Editeur, Paris, 2003. A atual tradução foi autorizada pelo editor.
Mais informações:
www.editions-bonneton.com
Sobre o Autor(a):
Internacionalmente conhecido por seus trabalhos sobre a história da cor no Ocidente, Michel Pastoureau é professor na Sorbonne e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, onde é titular da cátedra de História da simbólica ocidental.
|
|