O plástico
Roland Barthes, 1957
Tradutor(a):Rita Buongermino e Pedro Souza
Apesar dos seus nomes de pastores gregos (Polistirene, Fenoplaste, Polivinile, Polietilene), o plástico, cujos produtos foram recentemente concentrados numa exposição, é essencialmente uma substância alquímica. À entrada do stand, o público espera demoradamente, em fila, a fim de ver realizar-se a operação mágica por excelência: a conversão da matéria; uma máquina ideal, tubulada e oblonga (forma apropriada para manifestar o segredo de um itinerário) transforma sem esforço um monte de cristais esverdeados em potes (1) brilhantes e canelados. De um lado, a matéria bruta, telúrica e, do outro, o objeto perfeito, humano; e, entre estes dois extremos, nada; apenas um trajeto, vagamente vigiado por um empregado de boné, meio deus, meio autômato.
Assim mais do que uma substância, o plástico é a própria ideia da sua transformação infinita, é a ubiqüidade tornada visível, como o seu nome vulgar o indica; e, por isso mesmo, é considerado uma matéria milagrosa: o milagre é sempre uma conversão brusca da natureza. O plástico fica inteiramente impregnado desse espanto: é menos um objeto do que o vestígio de um movimento.
E como o movimento é, neste caso, quase infinito, transformando os cristais originais numa variedade de objetos cada vez mais surpreendentes, o plástico é, em suma, um espetáculo a decifrar: o próprio espetáculo do seu resultado. Perante cada forma terminal (mala, escova, carroceria de automóvel, brinquedo, tecido, cano, bacia ou papel) o espírito considera sistematicamente a matéria-prima como um enigma. Este “proteísmo” do plástico é total: pode formar tão facilmente um balde como uma jóia. Daí o espanto perpétuo, o sonho do homem perante as proliferações da matéria, perante as ligações que surpreende entre o singular da origem e o plural dos efeitos. Trata-se, aliás de um espanto feliz, visto que o homem mede o seu poder pela amplitude das transformações e que o próprio itinerário do plástico lhe dá a euforia de um prestigioso movimentar-se ao longo da Natureza.
Mas o preço deste êxito está em que o plástico, sublimado como movimento, quase não existe como substância. A sua constituição é negativa: nem duro, nem profundo, tem de se contentar com uma qualidade substancial neutra apesar das suas vantagens utilitárias: a “resistência”, estado que supõe o simples suspender de um abandono. Na ordem poética das grandes substâncias, é um material desfavorecido, perdido entre a efusão das borrachas e a dureza plana do metal: não realiza nenhum dos verdadeiros produtos da ordem mineral, espumas, fibras, estratos. É uma substância alterada: seja qual for o estado em que se transforme, o plástico conserva uma aparência flocosa, algo turvo, cremoso e entorpecido, uma impotência em atingir alguma vez o liso triunfante da Natureza. Mas aquilo que mais o trai é o som que produz derrota-o, assim como as suas cores, pois parece poder fixar apenas as mais químicas: do amarelo, do vermelho e do verde só conserva o estado agressivo, utilizando-as somente como um nome, capaz de ostentar apenas conceitos de cores.
A moda do plástico acusa uma evolução no mito do símili, é um costume historicamente burguês (as primeiras imitações, no vestuário, datam do início do capitalismo); mas, até hoje, o símili sempre denotou a pretensão, fazia parte de um mundo da aparência, não da utilização prática, pretendia reproduzir pelo menor preço as substâncias mais raras, o diamante, a seda, as plumas, as peles, a prata, tudo o que de brilhante houvesse no mundo. O plástico a preço reduzido é uma substância doméstica. É a primeira matéria mágica a admitir o prosaísmo é para ele uma razão triunfante de existência: pela primeira vez o artifício visa o comum, e não o raro. E, paralelamente, modifica-se a função ancestral da natureza: ela deixa de ser a Idéia, a pura Substância a recuperar ou a imitar; uma matéria artificial, mais fecunda do que todas as jazidas do mundo, vai substituí-la e comandar a própria invenção das formas. Um objeto luxuoso está sempre muito ligado à terra, recorda sempre de uma maneira preciosa a sua origem mineral ou animal, o tema natural de que é apenas uma atualidade. O plástico é totalmente absorvido pela sua utilização: em última instância, inventar-se-ão objetos pelo simples prazer de os utilizar. Aboliu-se a hierarquia das substâncias, uma só substituiu todas as outras: o mundo inteiro pode ser plastificado, e mesmo a própria vida, visto que, ao que parece, já se começaram a fabricar aortas de plástico.
(1) O termo francês vide-poches designa um recipiente onde, antes do deitar se colocam os objetos que normalmente são transportados nos bolsos: chaves, dinheiro, etc. (N. dos T.)
O texto acima foi reproduzido de BARTHES, Roland. O PLÁSTICO. In: Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza, Bertrand Brasil/Difel , 11ª edição, Rio de Janeiro, 2001. P. 111 – 113 e publicado com autorização da editora.
Texto indicado por Gilberto Paim.
Mais informações:
www.record.com.br/grupoeditorial_editora.asp?id_editora=7
Sobre o Autor(a):
O escritor, crítico literário, filósofo Roland Barthes (1915 - 1980) foi o pai da semiologia – a disciplina que estuda os signos, a partir do método estrutural da linguística de Ferdinand de Saussure.
Seu livro Mitologias, publicado em 1957, discute os aspectos da vida cotidiana que surgiam no período de grande vitalidade econômica e social do pós-II Guerra Mundial. Esse momento de introdução de novos materiais e técnicas na vida comum – entre os quais os diversos plásticos - que mudaram o mundo do consumo, teve em Barthes um de seus grandes intérpretes.
Formado em Letras Clássicas em 1939 e Gramática e Filosofia em 1943 na Universidade de Paris, Barthes trabalhou no Centre National de la Recherche Scientifique - CNRS. É autor de O Grau Zero da Escrita (1953), Elementos da Semiologia (1965), O sistema da moda (1967), S/Z (1970) Roland Barthes por Roland Barthes (1975), Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977) e A câmara clara (1980).
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