Ano: IV Número: 45
ISSN: 1983-005X
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É mais complexo ainda

Ethel Leon

Não acabei de ler Design para um mundo complexo, de Rafael Cardoso, autor que tantas contribuições tem dado à história do design. Esse texto não é, portanto, uma resenha.

Deu para perceber, do que li, que Cardoso abandona a postura de historiador, com sua preocupação de listar fontes e cotejar autores para enveredar pela trilha da ensaística, deixando os arremates frouxos. O próprio título, que remete à teoria da complexidade, não é discutido enquanto conceito. Nem seus criadores são citados, embora o texto trate de algumas das noções fundadoras desse pensamento.

Gostaria de discutir aqui apenas um trecho do livro, logo na página 28. Ali está dito que as atribuições de valor que resultam de experiências corporais tendem a permanecer estáveis no tempo. Elas derivam, diz o autor, “da sensação física de conforto e bem-estar, que advém do uso e não passa necessariamente por qualquer tipo de reflexão.” Valores desse tipo, segundo o autor, podem ser medidos e avaliados, de modo mais ou menos acertado, num laboratório de ergonomia.

Cardoso fala dessa "experiência emocional" (e corporal) como portadora de clareza, o que seria muito diferente dos conceitos funcionalistas de "adequação ao propósito". Embora não as cite, certamente o autor está próximo, aqui, das teorias da recepção, que passaram a relativizar o valor da obra independentemente de sua fruição. Ou melhor, que particularizaram e, nesse sentido, historicizaram a maneira como leitores, ouvintes – poderíamos estender para usuários – compreendem e transformam um artefato.

Em nome de uma visão mais matizada, que compreende qualquer produção em seus diversos momentos – produção, distribuição, consumo, esquecimento ou descarte; reavaliação e revival etc., gostaria de discordar desta visão de que experiências corporais são simples e longevas, enquanto o conceito de adequação ao propósito é complexo e efêmero.

Muitos dos historiadores que lidam com aspectos da cultura material insistem na historicidade das percepções e experiências. Vamos lembrar das cores, que têm hoje em Michel Pastoureau um de seus grandes nomes. Em seu livro Bleu, o autor mostra como de cor de segunda categoria, o azul passou ao longo de séculos, a ser considerada a mais bela das cores. Ou de Daniel Roche, que descreve os usos e os não-usos das cadeiras na Europa Ocidental. De objeto solene, a cadeira passa a item indispensável em qualquer ambiente. (E creio que nos restaria estudar com mais profundidade por que a cadeira é o objeto fetiche do projeto no século XX) (1). E tantos outros estudiosos da cultura material, entre os quais poderíamos citar vários brasileiros, a começar por Ulpiano Bezerra de Menezes.

Os leitores poderiam objetar que estas mudanças se deram no plano da longa ou da  média duração, se formos rigorosos aos termos da historiografia. Mas eu gostaria de me valer do conceito de memória (talvez diverso daquele empregado por Cardoso) (2) para lembrar pequenos gestos do nosso cotidiano e que têm mudado com rapidez desconcertante.

Por exemplo, o gesto que sinaliza um telefonema. Em cerca de 30, 40 anos, ele passou da mimese da discagem circular, para a extensão do polegar e do dedo mínimo, indicando o celular. Vi, recentemente, na casa de amigos, uma criança de 3 anos irritada ao pressionar o dedinho sobre a tela do computador e perceber que ela não se movia, como no i-phone.

O que significa ler hoje? Não estou falando da leitura como hábito, da capacidade corporal de atenção a um só objeto, que a turma da Pepsi (pedagogos e psicólogos) tanto estuda. Estou me referindo exclusivamente ao manuseio de objetos. Virar as páginas ou acionar a tecla do kindle? Não é uma constatação que a escrita manual está virando arte da caligrafia? Que os jovens abaixo de 15 anos só escrevem em teclados?

Cabo de martelo? Quem precisa deles na vida cotidiana repleta de stickers e objetos auto-adesivos? Um ambiente aconchegante?  Para quem, em que circunstâncias, como? Dificilmente podemos falar de aconchego como noção universal (3), entre outros motivos porque a relação corporal que esta noção implica é cambiante, cada vez mais rapidamente cambiante.

Ao estudar a sociedade de corte, o sociólogo Norbert Elias dá especial ênfase aos modos da mesa e diz: “Coisa alguma nas maneiras à mesa é evidente por si mesma ou produto, por assim dizer, de um sentimento "natural" de delicadeza. A colher, garfo e guardanapo não foram inventados como utensílios técnicos com finalidades óbvias e instruções claras de uso” (4).

No mesmo período temporal, encontramos hoje e encontravam-se na passagem da alta Idade Média para a sociedade de corte, diversos modos de sentar, comer, dormir, amar, etc. Não há uniformidade de hábitos corporais mesmo numa sociedade "menos complexa" do que a nossa.

Eu, que aprendi a escrever a máquina, sofri muito de tendinite na adaptação ao computador. Para minha geração, o teclado do computador tinha gravíssimos defeitos: não podia ser socado com a força manual, não fazia quase barulho, o que lhe retirava, por incrível que pareça, a concentração do texto e não era coadjuvante de gestos dramáticos de sacar o papel e rasgá-lo, ou fazer dele uma bolota e arremessá-lo a um cesto de lixo, cena corriqueira nas antigas redações de jornal. Estou certa de que hoje teria grandes dificuldades de datilografar em máquina mecânica. Ou seja, no decorrer de uma só vida, escrever significou a adaptação ao lápis, à caneta esferográfica, à caneta tinteiro, chique, cara e que exigia mais destreza e bela caligrafia, à máquina mecânica de escrever e ao teclado de computador, além do gesto corrido do dedo indicador na tela do celular.

Em toda essa experiência há poucos hábitos corporais que permaneceram, entre eles o fato de ser destra e meu aprendizado do alfabeto no teclado QWERT. Aliás, os designers que projetam a interface dos softwares apelam para a ideia de Raymond Loewy – most advanced yet acceptable (MAYA) e o lançamento de novidades costuma passar por esse crivo. Mas a noção de conforto (5) e adaptação aos instrumentos da escrita mudou completamente, convenhamos. E em muito pouco tempo, se pensarmos em periodizações históricas. 

Quanto à adequação ao propósito ou o mantra funcionalista, creio que devemos separar vários aspectos, sob o risco de jogarmos água, xampu (vejam bem, não é mais o sabão que ardia nos olhos) e criança fora.

A finalidade para os filósofos da Ilustração (pois é de lá que vem a noção de adaptação à finalidade e não da arquitetura moderna) não suprimiu os aspectos simbólicos de qualquer dos artefatos/artifícios. E mesmo os arquitetos modernos, Gropius e Le Corbusier inclusive, jamais formularam projetos que abdicassem da expressividade, ou, em outras palavras, de intencional semântica dos objetos.

E, por último, brevíssimo, prometo, comentário, sobre o fetiche da ergonomia, lá presente na citada frase do livro Design para um mundo complexo. Por que a ergonomia ganhou tanto espaço no mundo acadêmico/prático do design brasileiro?

Embora não saiba bem como ocorreu esse processo, desconfio da crença que atribui à ergonomia o caráter operativo/científico, capaz de comprovar por séries de testes etc. a resposta unívoca de usuários aos objetos. Mesmo nas pesquisas médicas (sobre alergias, por exemplo) jamais a especificidade histórica do paciente é descartada das interpretações. Não creio que a ergonomia destituída dessa historicidade possa afiançar inequivocamente qualquer afirmação universalizante. 

 

 

Notas

 (1) ) Assim como Tomás Maldonado explica o surgimento dos óculos e, especialmente das lentes para míopes, na passagem histórica dos séculos XIII e XV, cujas atividades passam a exigir acuidade visual, valeria investigar se os diversos atos de sentar não seriam expressão do avanço da atividade intelectual e da passividade no trabalho mecânico.

(2) Tomo o conceito de memória no sentido que Maurice Halbwachs a desenvolve, confrontando-a com a história. Esta começaria conscientemente ali onde termina a memória.

(3) Aconchegante é um tatami com mesinhas baixíssimas, uma copa alemã tradicional com aquele banco em L, de estrutura de madeira, um tapete macio para tantas milhões de pessoas acostumadas a rezar em mesquitas, a comer no chão?

(4) ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, volume I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 116. 

(5) A própria noção de conforto, tal como a conhecemos (próxima da ideia de comodidade), data do século XIX.

 


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