Ano: IV Número: 46
ISSN: 1983-005X
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O loft da mãe Lucinda

Ethel Leon

Ainda dá tempo de verificar, a novela Avenida Brasil da TV Globo acaba em poucos dias!

Os focos fechados da telenovela nos privam da vista geral da casa. Como no cinema de terror, podem-se entrever detalhes, que fascinam muito mais do que o todo.

Está lá um lindíssimo e descoladíssimo loft, como as imobiliárias gostam de chamar os apartamentos com poucas divisões internas.

O lar da moradora do Lixão é feito com materiais descartados, fundos de garrafa que fazem entradas pontuais e coloridas de luz, paredes de latinhas de alumínio que refletem a luz quase como numa casa noturna.

Protegido na intimidade por belíssima cortina de renda branca, o quarto dá a impressão de um suave baldaquim. Alguns móveis são feitos de caixotes. O fogão está perto da mesa de comer, como nos anúncios imobiliários. Colunas que sustentam a construção são revestidas de material têxtil. E a passagem interior/exterior é sutil, sem chaves nem cadeados. Uma casa numa ‘comunidade’, esse eufemismo que se usa para falar de favelas e bairros pobres.

Lá fora o horror de um lixão, em que homens, mulheres e crianças sobrevivem às custas do desperdício alheio. As condições abjetas de vida são estetizadas numa fumaça amarela, que torna a paisagem diáfana. Há, muitas vezes, um movimento de câmara lenta, que retira da cena qualquer traço do trabalho pesado, difícil e subumano.

O lar da mãe Lucinda, que abriga crianças abandonadas, tem comodidades como luz elétrica. Comida não falta, nem mesmo a mesa farta de café da manhã, com direito a leite, pão e frutas. Espaço para brincar há muito, dentro e fora de casa.

Quem mora em apertado ou apartado apartamento conjugado não terá inveja de tal moradia? A residência do lixão da novela Avenida Brasil é trendy, fashion. Parece ter sido projetado pelos irmãos Campana ou seus aparentados.

A operação de buscar na pobreza procedimentos projetivos/formais fecha seu ciclo. A favela inspira designers (poltrona Favela dos Campana, assentos feitos de sobras de tecido, reuso de materiais etc.) mas agora, em cenário da TV, é a produção de uma empresa italiana como a Edra, a pizzaria gaudinesca de Vitor Lotufo, os móveis de Léo Caraffa, os bric à brac de designers/autores, são esses todos  que refazem a vida dos miseráveis.

Estetizada por designers e pelos cenaristas da Globo, a pobreza brasileira precisa ser politizada, com o perdão de Walter Benjamin.

 


Comentários

claudia ferraz
16/10/2012

   sim, ainda dá tempo. tempo de entrar nessa casa onde a trama, ao que parece, encerra o crime misterioso que vai puxar os fios das tantas histórias...mas que lixo bacana, vestido de lifestyle, feito pra não chocar, aliás, feito pra inspirar ideias sustentáveis...lixão padrão ... receita de jeito ok de ser pobre e limpinho...oi oi oi...

Gilberto Paim
14/10/2012

Texto muito esclarecedor. Um decadentismo inspirado no improviso e na gambiarra? Difícil imaginar estilo mais perverso.

Natália Leon Nunes
13/10/2012

Bravo! De fato, a casa da Lucinda e o modo pelo qual é mostrado o lixão esvazia o sentido de pobreza e miséria do lugar. Vale lembrar que. sobretudo na primeira metade da trama, os flashbacks que mostravam memórias de Nina e Jorginho remetiam a um lixão no qual crianças brincavam. Era espaço de inocência, amor, com direito à casamento e roupas de festa feitas com retalhos, micanças, badulaques que deixavam as crianças lindas. É preciso mesmo politizar a estética!

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