Ano: II Número: 15
ISSN: 1983-005X
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Anni e Josef Albers em São Paulo
Ana Gonçalves Magalhães

As exposições Anni e Josef Albers – Viagens pela América Latina e Josef Albers – Homenagem ao Quadrado, em cartaz até o início de março na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Instituto Tomie Ohtake, foram uma ocasião única para compreender o processo de trabalho de um dos artistas mais importantes do grupo da Bauhaus de Dessau e professor da escola naqueles anos, Josef Albers, e sua série Homenagem ao Quadrado (1950-1976).

Na primeira mostra, reuniram-se os trabalhos em pintura, desenho e fotografia realizados por Josef Albers durante suas viagens ao México, ao Chile e ao Peru, bem como uma seleção dos trabalhos concebidos por sua mulher, Anni Albers, diante do impacto da descoberta da arte da tecelagem latino-americana. A segunda exposição concentrou-se exclusivamente na etapa final da evolução da obra de Josef Albers, apresentando ao visitante uma seleção de 45 telas de sua Homenagem ao Quadrado e uma edição de Interação da Cor, originalmente publicada pelo artista em 1963, resultado de estudos de superfícies de cor com a colaboração de seus alunos do curso de artes da Yale University.

Embora o público brasileiro tenha tido a oportunidade de ver algumas versões da famosa série de Josef Albers em edições da Bienal de São Paulo – a primeira participação do artista no evento se deu em 1957 com um conjunto de quatro versões de Homenagem ao Quadrado -, é revelador o quanto ela deve à sua convivência e seu deslumbramento com os sítios arqueológicos das civilizações pré-colombianas e as cores que parecem nos caracterizar enquanto unidade latino-americana. Além disso, essa oportunidade também é capaz de nos dar uma apreensão do que foi o trabalho de colaboração entre ele e sua mulher, Anni. Ver a produção desse casal de artistas lado a lado nos dá a real dimensão da complementaridade entre os dois e do exercício da arte em interação com o design, como propunha o currículo da Bauhaus, nos anos 1920.

A exposição na Pinacoteca iniciava-se com uma sala em que se viam os trabalhos de Anni, em desenho e em tecido, ao lado das investigações formais de Josef, no desenho e na pintura, nos quais percebemos um particular interesse dos dois artistas pela linha. Ao lado de algumas tapeçarias de motivos geométricos de Anni, vemos estudos em tecido, em que ela desenvolve formas e arabescos com a linha curva. Na parede oposta, os primeiros exercícios abstratos de Josef, com formas geométricas puras, também a partir da linha do desenho.

A seguir, passamos propriamente às viagens latino-americanas, sobretudo ao México, a partir de 1935, e a seleção de obras dos dois artistas permite-nos perceber de onde se extraem determinados motivos formais e cores. Uma etapa que parece ser importante para Josef chegar ao estudo dessas formas que ele (re)descobre nos sítios arqueológicos mexicanos compõe-se dos ensaios fotográficos que ele realizou dos lugares visitados.

Em duas salas diferentes da exposição na Pinacoteca, duas grandes vitrines apresentam conjuntos impressionantes desses estudos de Josef sistematicamente fotografando os sítios arqueológicos visitados, mostrando-nos primeiramente uma vista geral do lugar, e depois, em pequenos contatos recortados e colados lado a lado, motivos geométricos observados nas superfícies em relevo das construções, ou em ângulos fechados da tomada do conjunto dos degraus das pirâmides astecas. Daqui para sua série de desenhos em papel milimetrado com caneta pilot Tectônica gráfica (1942), a associação é imediata. Nesse momento, Josef parece estar ainda absorto nesses novos arranjos de formas geométricas que ele investiga, tal qual um arqueólogo/etnógrafo, para determinar o léxico fundamental de uma nova linguagem. Desse exercício sistemático, ele chega à forma fundamental do quadrado e às possibilidades de suas sobreposições.

Do mesmo modo procede Anni quando passa a colecionar peças de tapeçaria e tecelagem de incas, astecas e maias, procurando compreender os elementos sintáticos fundamentais das formas que constituem as tramas dos tecidos. Mas se a cor, principalmente aquela encontrada na primeira visita ao México, poderia ser entendida como conseqüência evidente do contato de Josef com esse contexto, é antes Anni quem a explora. Já na trama dos tecidos de seu período na Bauhaus vê-se, em seu trabalho, um desenho de linhas coloridas. Naquela mesma época, Josef trabalha sobre suas composições em vitrais, também coloridos, mas a cor, para ele, só passa a ser reempregada depois de ele entender o léxico das formas geométricas novas que explora no novo continente.

Anni e Josef constituem não somente um arquivo de pesquisas dessa nova arte que encontram no México, mas passam a colecionar cerâmica pré-colombiana e um acervo de tapeçarias e tecidos encontrados aqui. Dessas coleções derivariam ainda incursões do casal ao desenho de jóias e de mobiliário, dos quais alguns exemplares constavam da exposição.

As duas últimas salas da exposição da Pinacoteca concentraram-se quase que essencialmente sobre os trabalhos de Josef Albers do período imediatamente posterior às suas viagens ao México com Anni. Ali, vemos como o artista gesta sua série Homenagem ao Quadrado. Antes de chegar propriamente aos primeiros estudos de 1949, Josef realiza uma série de exercícios em que as formas ganham cor. Nesse caso, Josef parte de ensaios fotográficos de casarios mexicanos e o ritmo de suas janelas e portas. À medida que ele desenvolve essas experimentações coloridas, as formas geométricas se simplificam, até que se chegue à forma do quadrado sobreposto.

No Instituto Tomie Ohtake, o visitante teve duas salas, uma em frente à outra, com 45 versões selecionadas da série de Josef (na segunda sala, apresentou-se também a versão pertencente ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, adquirida em 1970). As obras foram organizadas em ordem cronológica, de modo que na primeira sala, estava o conjunto mais próximo do contexto das viagens ao México, e na segunda, a seleção de versões realizadas a partir dos anos 1960. Esta distinção de tempos é importante, pois só assim conseguimos perceber de maneira muito clara qual é a real dimensão da cor nas pesquisas de Josef Albers.

Nas versões do contexto mexicano, a sala torna-se solar, de uma leveza inigualável, há mesmo quase uma plenitude e os quadrados sobrepostos parecem flutuar no espaço em sua transparência. Já as versões dos anos 1960 são principalmente realizadas a partir da exploração de cores mais frias, tons de verde e cinza, azul escuro e eventualmente roxos profundos. Aqui se instaura uma austeridade e o sentido do conjunto nos faz pensar num espaço quase sagrado. É como se as obras se abrissem como vitrais de uma catedral, de fato. Entre as duas salas, então, há uma contraposição entre espaço laico e espaço sagrado, entre paixão e racionalidade, se assim podemos dizer.

E nos damos conta que, afinal, Homenagem ao Quadrado é mais um discurso sobre a cor e seus efeitos sensoriais do que propriamente a forma quadrado. Ela é reduzida à sua condição mais essencial justamente para fazer reverberar a cor, para percebermos suas ressonâncias e os efeitos espaciais que é capaz de criar. Assim, se à primeira vista, Josef Albers parecia se aproximar das questões e investigações formais de Kasimir Malévitch – com seu Quadrado preto sobre fundo branco (1913) -, sua vinculação com as pesquisas de outros dois colegas de Bauhaus, Wassily Kandinsky e Paul Klee, torna-se mais evidente.

Entretanto, a qualidade e natureza das cores experimentadas por Josef, bem como por Anni em suas tramas de tecido, claramente passa pela vivência no novo continente e o aprendizado das culturas asteca, maia e inca. Nesse sentido, o casal de artistas parece retomar a via do Primitivismo – fenômeno tão difundido nas vanguardas das duas primeiras décadas do século XX -, mas também com uma nova postura, em que eles não tentam mais adequar essa nova linguagem a um léxico europeu pré-existente e sim constituir uma espécie de língua híbrida.

É preciso ainda considerar a influência de Anni sobre o trabalho de Josef. A beleza maior de poder ver de perto os estudos de cor e forma, bem como as telas da série de Josef é perceber a trama dos tecidos das telas por ele utilizadas – que em alguns casos ajudam a compor mesmo a obra – e as texturas das superfícies empregadas pelo artista. Muitas das pinturas de Josef são feitas sobre placas de compensado e isto dá uma qualidade mais artesanal à superfície das obras. Aqui também emerge a prática de Anni, que com suas tapeçarias, trabalhava sobre a constituição da superfície manualmente. As superfícies aparentes, materialmente presentes das obras de Josef são, de certo modo, um resquício da atividade manual do artista. Fica claro o estreito trabalho de colaboração do casal e o papel instigador e reflexivo de Anni.

Essa colaboração viria a ser celebrada quando os dois artistas criaram a Fundação Anni e Josef Albers, em 1970, em Connecticut, de onde vem praticamente todo o acervo emprestado para as duas exposições paulistanas. A Fundação também foi responsável por consolidar a influência que Josef Albers, principalmente, teve sobre as vanguardas norte-americanas desde os anos 1930, quando ele e Anni são contratados como professores no Black Mountain College na Carolina do Norte. Basta pensarmos na “pintura de campos de cor” (como diria Greenberg) de um Mark Rothko – e antes dele, Clyfford Still -, e já nos anos 1960, as experimentações coloridas de um Frank Stella ou de um Sol Lewitt nos primórdios do Minimalismo.


Ana Gonçalves Magalhães é professora da Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica do MAC-USP.

 


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