Ano: II Número: 13
ISSN: 1983-005X
Detalhar Busca

Identidade artesanal
Gilberto Paim

Livro: A theory of craft Autor(a): Howard Risatti Editora: The University of North Carolina Press

Postado: 20/01/2009

   

Os sinais de interesse pela aproximação entre design e artesanato são evidentes. Em São Paulo, o Museu A Casa realizou este ano a primeira edição do Prêmio Objeto Brasileiro com o objetivo de mapear e promover a interação entre design e artesanato. Em sua 22º edição o Prêmio de Design do Museu da Casa Brasileira afirma ter registrado o “resgate do artesanato”, ao lado de avanços tecnológicos. A feira Craft Design dirigida a lojistas completará sua 14º edição semestral em março próximo. Legítima ou ilegitimamente, empresas de móveis e objetos destacam em mensagens publicitárias as qualidades  “artesanais” de seus produtos como diferencial de qualidade.

O momento parece oportuno para refletir sobre a significação contemporânea dos artesanatos e sua relação com o design. A theory of craft, de Howard Risatti, professor de História da Arte, da Virginia Commomwealth University, é leitura muito proveitosa tanto para designers e artesãos quanto para promotores e críticos de sua interação. Risatti argumenta que, embora artesanato e design sejam responsáveis pela realização de objetos similares como, por exemplo, tigelas e cadeiras, seus meios são distintos assim como seus critérios e premissas.

A análise comparativa desenvolvida na seção 3, Issues of Craft and Design, fundamenta-se na identificação dos artesanatos estabelecida em Taxonomy of craft based  on applied function, um dos capítulos iniciais do volume. Os crafts compreendem recipientes como tigelas, vasos, jarras, copos, cestas, caixas etc; protetores (covers) como roupas, colchas, xales etc; e suportes como cadeiras, bancos, mesas, camas etc realizados artesanalmente em diferentes materiais, dentre eles, vidro, fibra, cerâmica e madeira. Segundo Risatti, é essencial para o pertencimento à categoria dos crafts a vinculação direta ou metafórica dos objetos com uma dessas três funções.

Fica assim evidente que artesanato e design estão comprometidos, ao menos em parte, com a elaboração de objetos que desempenham funções semelhantes na vida cotidiana ou ritual. Isso significa que o diálogo entre ambos pode ser muito fértil, mas desde que suas diferenças não sejam ignoradas ou anuladas. A percepção contemporânea dos artesanatos é frágil e imprecisa. São freqüentemente avaliados e criticados de modo equivocado, segundo critérios oriundos do design ou das artes plásticas, estes últimos abordados na seção Craft and fine art.

A diferença principal entre artesanato e design reside no modo como os objetos são produzidos. Os objetos artesanais são concebidos e realizados por uma mesma pessoa – Risatti considera essencialmente os studio crafts, enquanto os objetos industriais são concebidos por uma pessoa ou equipe e produzidos por outras pessoas ou principalmente por máquinas. Parte importante da significação dos objetos reside no seu modo de fabricação: “Devemos levar em consideração como os objetos são feitos e como a sua realização, enquanto processo consciente,  produz sentido, seja o objeto industrial ou artesanal.” (p.190)

Uma questão crucial para Risatti é a diferença entre artesania (craftsmanship) e  trabalho manual (workmanship), termos quase sinônimos na linguagem comum. Ele enfatiza, porém, que o conceito de artesania engloba tanto a capacidade de realizar quanto de criar o objeto. Não considera o artesanato como uma atividade estritamente manual, simultaneamente  oposta e complementar à atividade projetual do design. Desse modo, a modalidade “não industrial” de produção do design recorre ao trabalho manual, não ao artesanato, cuja matriz criativa se alimenta da experiência na oficina ou estúdio.

A indústria que transformou o mundo gerando imensas riquezas, reduziu drasticamente a atuação da artesania, estabeleceu a distinção entre o designer e o operário, e promoveu a  substituição do trabalho manual pela máquina. O Movimento de Artes e Ofícios na virada do século dezenove para o vinte, e os studio crafts a partir dos anos 1920, se empenharam, no entanto, em cultivar a artesania, mantendo o elo entre criação e realização, no qual Risatti identifica uma dimensão poética:

“Nadando contra a corrente, o artesão, ao seguir a tradição prática da artesania, concebe e executa. Mas isso significa mais do que uma simples unidade de operações. Pois contida nesta fusão, como tentei expressar relacionando o processo da artesania à poeisis de Aristóteles, reside um ato profundo de criatividade. Ao invés de separadas em estágios, concepção e execução estão integradas de modo que um feedback sutil ocorre quando as propriedades físicas dos materiais encontram a forma conceitual e a forma conceitual encontra o material físico. Nesse encontro, pensamento e realização, visualização e execução, theoria e praxis estão lado a lado, mão a mão. Quando isso acontece, quando idéias levam à manipulação de materiais e materiais condicionam idéias, um processo verdadeiramente dialógico e dialético acontece. Esse processo de mútuo condicionamento e modificação está no coração do ato criativo da artesania.” (p.169)

O designer desenvolve protótipos para serem realizados segundo técnicas e procedimentos industriais propícios à repetição em larga escala. Ao longo do século vinte os designers procuraram explicitar seu compromisso fundamental com a máquina (Le Corbusier) ou incorporá-lo à sedução do produto (Raymond Loewy). O artesão cria e realiza objetos segundo seu conhecimento tácito e familiaridade com os materiais, adquiridos ao longo de muitos anos de aprendizado e experiência profissional. Sua pesquisa formal pode eventualmente se aproximar da estética da máquina, mas não está intrinsicamente ligada a ela.

A série que resulta do protótipo elaborado pelo designer é extensa, padronizada e uniforme. Já o artesão produz em pequenas quantidades objetos que diferem entre si, freqüentemente irregulares, considerados imperfeitos segundo critérios industriais. Essas “limitações” estão no cerne do fazer artesanal e merecem ser cultivadas ao invés de ignoradas ou desprezadas. Segundo o historiador, elas contribuem modestamente para equilibrar a cultura contemporânea dominada pelos imperativos da racionalidade tecnocrática. Escreve: 

"Diferentemente da máquina caracterizada pelo poder ilimitado e produção infinita, a mão humana é limitada em tamanho, força, habilidade, resistência e velocidade. Estes limites não apenas estabelecem a escala dos objetos artesanais, mas por serem limites partilhados por todos os humanos, artesãos ou não, nos oferecem um sentido de como nos relacionar com outras coisas no mundo, artificiais ou naturais. A mão fornece uma medida básica universal do que constitui o humano em termos de escala, proporção, forma e material; ela oferece um padrão para avaliar a qualidade e diferenciar a abundância do excesso. (...) Assim, os artesanatos são um importante corretivo ou contrapeso à mentalidade institucional atualmente cada vez mais modelada pelo racionalismo mecânico-técnico-científico, que tanto contribui para o desencantamento do mundo e das coisas que estão nele; por desencanto entendo a eliminação da mágica e mesmo da maravilha do mundo pela contabilização de todas as ações e experiências em termos empíricos e racionais.” (pág.186)

Em Risatti, o “corretivo” artesanal não está associado à restauração nostálgica de procedimentos artesanais tradicionais. Ao contrário, sua análise baseia-se na diversidade das realizações dos artesãos contemporâneos que cultivam a experimentação e cujo compromisso com a funcionalidade é muito flexível. Ele considera muito positivo, por exemplo, que os integrantes dos studio crafts  tenham conquistado espaço como professores dos departamentos de arte de diversas Universidades norte-americanas a partir dos anos sessenta.

Os artesanatos modernos são percebidos com dificuldade no Brasil, numa espécie de limbo entre o folclore e o design produzido manualmente. Razão adicional para nos debruçarmos sobre a obra de Risatti, cujas chances de tradução para o português são infelizmente muito remotas. 

RISATTI, Howard. A theory of craft, function and aesthetic expression. EUA: The University of North Carolina Press: 2007.

Gilberto Paim é ceramista, e também autor de A beleza sob suspeita, Jorge Zahar Editor, e Elizabeth Fonseca e Gilberto Paim, Editora Viana & Mosley, Rio de Janeiro.

 


Comentários

Envie um comentário