Ano: IV Número: 48
ISSN: 1983-005X
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Cidade limpa ou democrática?

Ethel Leon

São Paulo troca de modelo de gestão. Uma das fortes questões da cidade que envolve designers é a do mobiliário urbano, aí compreendidas as placas de nomes de ruas e os projetos de sinalização. Espera-se que a nova administração da cidade reveja projetos urbanos que envolvem a expulsão de moradores pobres e o fechamento de pequenos negócios e que abandone a visão de cidade limpa.

Vamos lembrar dela: depois de ocupação abusada de enormes empenas de prédios  por painéis publicitários, muitos deles explorando o corpo das mulheres; da ‘livre’ competição de fachadas e letreiros, foi cumprido com entusiasmo o texto da lei da ‘cidade limpa’, de 2007.

Com esse nome, que remete a políticas higienistas forjadas no século XIX e recicladas ao longo dos últimos cem anos, não se poderia esperar outra coisa. Além da remoção absoluta da publicidade, houve ações policiais de expulsão dos cidadãos de segunda categoria para locais distantes dos olhares dos paulistanos bem nascidos.

Reequipar bairros abandonados como a Luz significou enfrentamento violento contra craqueiros, que continuam a vagar pela cidade. Talvez eles sejam incluídos nas estatísticas dos muitos moradores de rua que, segundo dados da própria prefeitura, somavam 14 478 pessoas em 2011 (1), e são o foco de inúteis e desumanas ações repressivas.

Quanto às mensagens comerciais, foi, de fato, um alívio, livrar-se das opressoras porque gigantescas e monótonas imagens da publicidade, que ocupavam empenas de prédios de vinte andares. No entanto, uma megalópole como São Paulo pode e deve ter publicidade nas ruas, desde que seus espaços sejam regulados pelo poder público, de modo a não comprometer uma série de aspectos da sociabilidade urbana, entre elas a boa visibilidade.

Tornar a cidade ‘limpa’ de anúncios desmesurados era fundamental para que a prefeitura fechasse os contratos milionários com empresas de mobiliário urbano, como aconteceu agora, cinco anos depois. São Paulo terá mil novos abrigos de ônibus, relógios e totens informativos, do pouco que se sabe da questão.  Dois modelos foram desenvolvidos por encomenda da JCDecaux, grande multinacional de móveis urbanos.  Um deles foi desenhado pelo arquiteto Carlos Bratke e será instalado nos canteiros centrais. Outro maior, criado pelo arquiteto Ruy Ohtake, ficará em praças e avenidas.

Nos 6.500 pontos de ônibus, responsabilidade do consórcio vencedor da concessão (Pra SP e é liderado pela Odebretch Transport, com participação da Rádio e TV Bandeirantes, Kalítera Engenharia e APMR Investimentos)  haverá painéis, com dupla face, de 2 metros quadrados, local de exibição de peças publicitárias. Em algumas regiões da cidade, os anúncios vão mudar ao longo do dia para atingir públicos diferentes. Ou seja, transeunte só é respeitado enquanto consumidor.

Por sorte, parece existir alguma preocupação com o bem público: a Companhia de Engenharia de Tráfico proibiu o uso de vídeos em totens urbanos, certamente acompanhando as regras de tantos países, cuidadosos com as distrações causadoras de acidentes nas vias públicas.

Relógios e abrigos de ônibus são plataformas para anúncios, geralmente campanhas internacionais padronizadas. É com essa verba publicitária que as empresas fazem a manutenção dos itens urbanos, que precisam ser limpos e consertados com frequência. Isso não quer dizer que esses equipamentos não possam prestar serviços de outra natureza, com mapas urbanos, mapas da vizinhança, fluxogramas das linhas de ônibus. Parece – parece porque a questão é tratada de forma sigilosa – que 14.700 totens  urbanos, sem publicidade, diz-se, cumprirão esse papel informativo.

Nada se fala sobre projetos decentes de sinalização viária e de nomenclatura urbana. Quantas e quantas vias de São Paulo, especialmente na periferia da cidade, não têm direito a um nome? Quanto desperdício na procura de endereços; que terrível ausência de mapas urbanos construídos com foco nos usuários?

Costumo presentear os taxistas com o Guia das Artes de São Paulo, projeto gráfico de Marília Cauduro Ponte, único mapa que localiza com propriedade os equipamentos culturais centrais da cidade. Um mapa cultural da cidade, aliás, foi projeto de João Baptista da Costa Aguiar, na gestão de Marilena Chauí à frente da Secretaria Municipal de Cultura nos idos dos anos 90. Não houve tempo para concretizá-lo e as gestões posteriores não o retomaram.

Além da informação há outras questões que dizem respeito ao design urbano: lixeiras, cabines telefônicas/totens de acesso público à internet; bicicletários, quiosques comerciais e de serviços, pontos de táxi.  E a água, uma cidade democrática não deveria ter pontos com bebedouros?

E os cartazes culturais? Haverá lugar para eles na cidade? Ou continuaremos circunscrevendo esta produção às galerias e espaços fechados?

Creio que todos esses aspectos da cidade foram negligenciados no contrato de 25 anos (sim, 25 anos!) que a Prefeitura estabeleceu com consórcios vencedores de concorrência pública para manter os móveis da cidade.

São Paulo precisa urgentemente de limpeza, não apenas a manutenção cotidiana, mas projetos para reduzir e reciclar o lixo urbano, melhorando, inclusive a condição dos lixeiros, atletas forçados a lidar com um sistema arcaico de coleta.

Do ponto de vista visual, precisamos de uma cidade democrática, com amplo acesso à informação e com publicidade, sim, ela faz parte de nossas referências. Quem sabe uma conversa do poder público com as agências não poderia melhorar o nível dos anúncios de rua? Na história do design, vemos grandes designers que trabalharam com meios publicitários. Mesmo hoje no Brasil, aparecem, raramente, é verdade, anúncios inteligentes, que traduzem propostas artísticas para a vida comum.

Os suportes de publicidade também podem oferecer trabalhos de serviços públicos, de campanhas de interesse geral. De novo lembro Marilena Chauí, que organizou concurso para outdoors celebrando a Declaração do Universal dos Direitos Humanos. Tomara que o novo prefeito tenha sido seu aluno.  

 

Nota

1) Os número oficiais sobre população de rua, estão acessíveis em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/censo_1338734359.pdf

 


Comentários

Bitiz Afflalo
27/12/2012

Erthel. O projeto cidade limpa não foi uma exigência das grandes empresas de mobiliário urbano. Pode ter sido de alguma, mas da Clear Channel eu sei que não foi. Eles também tinham outdoors e trabalharam muito para que a propaganda fosse permitida em lugares especificos. Mas não conseguiram. O mercado de outdoor era, em São Paulo dividido entre grandes empresas como a Publitas e a Clear Channel, e numerosas empresas- fundo de quintal, que nem alvará ou endereço certo tinham, e por isso muito difíceis de fiscalizar.

Ethel Leon
21/12/2012

Liliana, Certamente me faltam dados sobre o passado. Mas eu disse que o projeto cidade limpa REMETE a políticas higienistas. A palavra limpeza tem um significado construído ao longo dos últimos cento e tantos anos. Não é à toa que a mesma expressão seja usada para expulsar moradores de rua. São duas ações do mesmo governo. Creio que 'limpar' a cidade daquela horripilante liberdade total dos anunciantes era uma exigência das empresas de mobiliário urbano. Senão, como elas cobrariam das campanhas publicitárias que já estavam muito bem alocadas em gigantescos paineis de prédios? Mas, de fato, precisamos de mais dados, inclusive das políticas das gestões anteriores, como você aponta. Que tal você escrever a respeito?  

Bitiz Afflalo
21/12/2012

Bom saber sobre a concorrência! Finalmente. Esta é a segunda, pois a primeira, organizada no governo da Matha Suplicy, foi suspensa no último momento. Trabalhei na equipe que preparava o projeto para a Clear Channel. Chegamos a ter dois projetos completos para a concorrência. Seu artigo destaca alguns exemplos do que eu chamo de design para a cidade, e que normalmente, por serem projetos mais complexos, que demandam equipes transdisciplinares, são, em geral, negigenciados pela midia e pelas instituições de ensino. Que o novo projeto de São Paulo desperte o olhar para tantas açoes de design urbano, como você lembrou.  

Liliana
20/12/2012

Ethel, achei interessante você tratar desse assunto. Porém pelo que sei (posso estar enganada), esse projeto de limpar a cidade não tem um apelo higienista do século XIX. Ele se tornou assim com o passar do tempo. Quando foi proposto, ainda era na gestão da Marta. E disputas políticas e comerciais impediam o debate e a aprovação de qualquer lei que regulasse e amenizasse a selvageria das imagens que cobria edificios de todos os tipos e a paisagem urbana em geral. A lei foi aprovada, na minha opinião, porque o prefeito Serra abandonou a gestão municipal e Kassab, sem impedimentos no legislativo conseguiu costurar o acordo. Porém foi seu único feito notório em 6 anos de gestão. Acho que aplicaram a lei igualmente para todos os lugares de São Paulo, periferia e centro, bairro pobre, bairro rico, loja grande ou pequena, para facilitar o cumprimento da mesma. Mas não é o adequado: ela precisa ser realmente revista para ser mais flexivel nas regiões comerciais. Porém, Ethel, pelo fato do projeto estar tramitando com diferentes nomes em diferentes governos, faz com que eu desconsidere a conexão entre a cidade limpa e a "revitalização" do centro (com a qual discordo radicalmente e concordo com você). Enfim, gostei das informações sobre o novo mobiliário urbano, ninguém está discutindo isso e é de grande interesse para o design público sem dúvida.

WILSON CESAR
20/12/2012

Ethel, Vemos que o vínculo do design com a publicidade, muitas das vezes, se resume a um mero ferramental utilitário, o que não vai ao encontro da essência projetual da profissão. O poder de transformar dados em informação e, por sua vez, em conhecimento, para o bem social, é tarefa das mais urgentes, pois com o crescimento do número de habitantes nas grandes metrópoles, e isso é progressivo, nos coloca cada vez mais frente à uma necessidade de organização visual.

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