Ano: V Número: 49
ISSN: 1983-005X
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Rubros signos

Ethel Leon

Vermelha deveria ser nossa bandeira nacional. Afinal, a resina obtida de árvore rara, ardentemente cobiçada pelos mercadores do século XVI, é que deu o nosso nome, Brasil.

O vermelho, símbolo de poder, cor por excelência, foi responsável pelo desmatamento de nossas florestas costeiras. Ele era mais precioso do que qualquer madeira, mesmo as de lei.

Daí se vê que o vermelho e suas implicações não são coisa frívola. Sua simbologia, suas aplicações, matérias-primas, usos e referências têm interesse para os que gostam de história. A cor rubra pode ser tratada não como fenômeno da luz, natural, mas dentro de hábitos, costumes, signos sociais.

Não à toa o historiador, Michel Pastoreau escreveu no Dicionário das Cores de Nosso Tempo: “Falar de cor vermelha é um pleonasmo. O vermelho é a primeira de todas as cores”.

Ela é ambígua como nenhuma outra. Pode exprimir a sexualidade e a santidade, segue Pastoreau: a simbologia do vermelho é associada ao sangue e ao fogo. Pode haver bom e mau sangue, assim como bom e mau fogo, daí a ambivalência do vermelho. O vermelho pode remeter ao sangue purificador de Cristo, mas também às brasas e chamas do Inferno.

As prostitutas, na Idade Média, eram obrigadas a portar alguma veste vermelha. Mas até o século 19 as noivas também se vestiam de vermelho em muitos locais da Europa e na China. A cor está nas fachadas de motéis, mas também nos mantos papais e cardinalícios.

O púrpura é, certamente, a cor adequada para chamar atenção. Na vida cotidiana, ele é o PARE dos sinais de trânsito e é o deixe passar dos carros de bombeiros ou das cruzes das ambulâncias, que copiaram o sinal da Cruz Vermelha. O telefone vermelho marcou as tensas relações diplomáticas da Guerra Fria.

Mas, e aí está seu fascínio, é também sinônimo de mistério, de segredo, de intimidade. Quantas caixas pretas ou marrons, ao serem abertas, revelam um interior de veludo carmim? Faqueiros, estojos de jóias, perfumes caros, facas de colecionadores, vinhos caríssimos são embalados dessa maneira, com o vermelho oculto, secreto, para íntimos.

 Presença obrigatória em inocentes personagens infantis – vamos lembrar de Papai Noel e Chapeuzinho Vermelho – ganha clima de horror no conto de Andersen Os Sapatinhos vermelhos, que, ao serem calçados pela protagonista, fazem que ela não pare de dançar, obsessivamente. Para interromper o bailado incessante, a coitada tem de amputar seus próprios pés.

Com toda a ambivalência do vermelho, sobrou para os ruivos, objeto de fascínio e de temor. Para muitos pintores, Eva era ruiva (e a maçã, claro, vermelha), assim como muitas Vênus, a mais conhecida delas a de Botticelli.

Judas também ostentava cabeleira vermelha. Ruivos são perseguidos até hoje na Inglaterra, país onde se concentra a maioria das ‘cabeleiras de fogo’. E na Holanda celebra-se todo ano o dia dos ruivos na cidade de Breda.

A mais chamativa cor de todo o espectro do arco-íris serviu, por muito tempo, para pavonear uniformes militares, antes que a guerra se tornasse quase sinônimo de invisibilidade.

As legiões romanas ostentaram estandartes vermelhos. Muitos dos chefes legionários tinham elementos rubiáceos em seus uniformes. Na formação dos exércitos nacionais, era presença garantida, tanto para sobressair no campo de batalha quanto para ostentar a vitória nas grandes paradas.

Napoleão instituiu a fita vermelha da Legião de Honra. Antes dele, foi na Revolução Francesa que o vermelho ganhou a conotação de luta contra a tirania. Se, a partir daí, a cor se juntou ao azul e branco para dar a bandeira da França, nas lutas de 1848 e na Comuna de Paris, em 1871, o vermelho emplacava solitário, representando os proletários.

Nesse registro da luta política, serviu de emblema a Garibaldi e ganhou expressão mundial com a Revolução Russa. Desde então, vermelho é sinônimo de comunista, socialista ou, no mínimo, não conformista.Tornou-se quase um monopólio da esquerda, vale lembrar o livro de Mao Tsé Tung e o seu Exército.

Curiosamente, apesar de associado aos revoltosos, não perdeu a capacidade de atribuir distinção, é só lembrar das Ferraris. Quem pode ter uma, lá ia querer pintá-la de cinza?  Entre nobres franceses, o vermelho era uma das cores prediletas. As roupas deveriam ser tingidas com corantes caros, que não desbotassem facilmente.

E o vermelho era legislado: segundo os códigos editados nos reinados de Francisco I e Henrique IV, a aristocracia usava o púrpura, extraído de minérios ou de plantas raras e os plebeus só podiam ter acesso à garancina, extraída de uma planta rubiácea chamada garança. O rubi, que vem do latim ruber, vermelho, é uma pedra de grande uso para expressar o poder.

A herança deste símbolo de autoridade ficou no tapete vermelho, até hoje estendido para alguém que se quer homenagear. Mas que vermelho? Púrpura, carmim, escarlate, rubro, berne, magenta, granadino. Há, talvez, tantos nomes para vermelho quanto os diferentes tons desta cor.  

A dificuldade de obter bons pigmentos (de diferentes origens, minerais, vegetais e animais) fez dele um símbolo do luxo nobre, presente nas melhores tapeçarias medievais e nos tapetes orientais.

Conseguir uma boa tonalidade em vidros e cerâmicas foi uma busca incessante da alquimia e da química. Os corais foram estudados por séculos e um intenso debate dividia entre os que atribuíam sua existência ao mundo mineral e aos que o viam como animal. Do mar também se descobriu que de uma concha chamada pórfira se extrai a tintura rubra.

O cinábrio, mínio, óxidos de chumbo e óxidos de ferro, entre os minerais; a cochonila-do-carmim, inseto no mundo animal, além do coral (que é animal, a querela chegou ao fim); a garância, a cúrcuma, o brasil, entre os vegetais, foram e são algumas das matérias-primas do vermelho.

De muitos anos para cá, o cádmio é responsável pela cor nos plásticos. E vem sendo perseguido pelos ambientalistas que recomendam o uso de pigmentos terrosos, menos agressivos.

Símbolo do amor e do sacrifício para judeus e gregos, a cor púrpura tem em muitas culturas distintíssimos representantes. Basta ver as bandeiras das nações: nove entre dez países têm elementos rubros em seus emblemas de pano.

A mais elegante delas é a do Japão, um círculo vermelho sobre o tecido branco. Bangladesh deixou a bola vermelha sobre fundo verde. Menos bonita que a japonesa, essa bandeira bem poderia nos representar.

O verde das matas e o vermelho do fogo que as ameaça, por exemplo. Ou para adotar um tom mais ameno, a cor poderia significar pitanga, goiaba, moqueca, açaí, cacau, caju. E também bromélias, pomba-gira, pinturas corporais indígenas. Jatobá e jacarandá e, é claro, muitos de nossos mais populares times de futebol.

 

O texto acima foi adaptado de matéria publicada na revista Florense. Agradecemos o editor Renato Henrichs pela autorização da republicação.

 


Comentários

Moema Cavalcanti
23/02/2013

Grande Ethel! Sempre se aprende muito com você. É sempre bom ter você por perto

Alita Kraiser
23/02/2013

Texto super interessante e muito didático, fiquei com sensação de querer mais...

Heloísa C. Dallari
22/02/2013

Belíssimo texto. Sempre admirei o fato de a bandeira nacional não ostentar o vermelho, mas você me fez repensar tal fato. Obrigada pelo texto tão elucidador.

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