Ano: II Número: 15
ISSN: 1983-005X
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Latas, selos e capas
André Novaes de Rezende

Um retorno às origens visuais da indústria fonográfica

Em tempos de informação digital, a identidade do aparelho portador da mensagem verbal, visual ou sonora pouco tem importância. Esta situação contemporânea é retrato de um momento cultural em que os hardwares, enquanto objetos culturais, tendem a aderir ao aspecto de fluidez que é característico aos softwares. Num passado não muito distante, as máquinas recebiam a informação que iriam processar e esta informação era substituída e atualizada de forma fluida, conforme a necessidade. Hoje, os aparelhos portadores de informação multimidiática são substituídos até mesmo antes que seja necessário substituir a própria informação que eles processam. A informação digital flui de um meio ao outro, sem que uma possível relação semântica se estabeleça entre o arquivo e o hardware.


Com este fluxo de hardwares competindo com o fluxo de softwares, não há como se constituir uma analogia suficientemente eficiente entre forma e conteúdo. No ambiente digital, qualquer tentativa de inter-relação entre linguagens é mera simulação. Não que isto seja ruim. É apenas uma característica do meio. O meio digital é um meio conversor e nivelador das linguagens verbais, visuais e sonoras e é assim que ele deve trabalhar para se manter eficiente naquilo que se propõe a cumprir.

Estes questionamentos tornam-se importantes para retomar uma investigação entre o consumidor e os bens de consumo, pois a qualidade de um bem de consumo também é avaliada de acordo com sua capacidade de criar um vínculo com o consumidor.
Na indústria cultural, a verdadeira correspondência semântica entre forma e conteúdo é, não por acaso, muito mais evidente nos meios analógicos. Os registros mecânicos originais, que estavam fundidos com a necessidade de responder questões fenomenológicas, mantiveram em seus resultados todos os vestígios de um pensamento investigativo.

Os primeiros aparelhos fotográficos serviram de ferramentas para pensar o fenômeno da fixação da imagem. Os aparelhos cinematográficos faziam o mesmo com o registro do movimento. Cabe a um invento de Thomas Edison a expansão do pensamento que cerca o fenômeno do registro do som.

Inventado em 1877, o fonógrafo registrava os sons que eram capturados por uma  campana de metal, gravando-os mecanicamente em um cilindro de cera. Em 1898 os fonógrafos passaram a utilizar cilindros removíveis, que podiam ser raspados e reutilizados.O fato de o aparelho fonográfico, então, permitir a substituição da mídia em que o som é registrado, abre espaço para que o fonógrafo torne-se um receptáculo de diversos cilindros. Com os cilindros intercambiáveis, a relação do usuário com o fonógrafo passaria a adquirir, além do caráter sonoro, o caráter tátil.A partir dos primeiros anos do século XX, os cilindros passaram a ser gravados industrialmente. Desta forma, fazendo parte de um catálogo, os cilindros poderiam ser encomendados. A simples possibilidade de utilização de diversos cilindros num mesmo aparelho gerou a necessidade de que estes cilindros fossem identificados visualmente, de acordo com seu conteúdo sonoro.

Inicialmente, os cilindros foram acomodados em latas, e estas latas recebiam um rótulo com o nome da empresa e um número referente ao conteúdo sonoro descrito no catálogo. Mas foi com o surgimento de um novo aparelho, o gramofone, que um novo passo foi dado em direção ao estreitamento da relação visual entre o usuário e a mídia em questão.

Junto com o gramofone, também nos primeiros anos do século XX, surgiram os discos de goma laca (shellac) que concorriam com os cilindros de cera. Diferentemente dos cilindros dos fonógrafos, estes discos giravam sobre um eixo fixo com uma velocidade de 78 rotações por minuto. Os discos propiciavam uma qualidade sonora muito maior, pois eram gravados industrialmente por meio de um processo mais elaborado. Este foi o seu diferencial.

Os “discos de duas faces” surgiram em seguida. Estes discos reproduziam, aproximadamente, quatro ou cinco minutos de música em cada face. Assim sendo, o seu conteúdo musical precisava ser melhor identificado. Coube aos selos dos discos informarem o conteúdo gravado, visualmente, de forma que o usuário pudesse orientar-se corretamente no momento do manuseio.

Até então, as gravações sonoras realizadas ao longo desta evolução tecnológica só tiveram uma referência visual a elas exclusivamente dedicada com o advento dos selos empregados nos discos.

Estes discos, por sua vez, eram condicionados em simples envelopes de papel pardo ou branco, com um espaço vazado ao centro, reservado para que houvesse a leitura das informações do selo.

Devido ao limitado tempo de reprodução musical disponível em cada lado destes discos, muitas obras tinham de ser gravadas em mais de um disco, e o conjunto de envelopes era condicionado e conservado por aquilo que foi chamado de “álbum”.

Estes “álbuns” possuíam o nome do artista e o título do disco impressos na lombada, de maneira que, quando estocados nas lojas, assemelhavam-se a livros em uma estante.

Podemos dizer que as gravadoras norte-americanas RCA/Victor e Decca, no final da década de 1920, inauguraram, muito timidamente, a exploração de imagens que podiam ser empregadas nestes envelopes que embalavam os discos. Mas a relação visual entre o disco e o usuário iria mudar radicalmente apenas a partir da década de 1930.

A primeira capa trabalhada graficamente e projetada especificamente para exercer uma correspondência semântica com o conteúdo musical do disco, foi criada em 1939 pelo artista Alex Steinweiss.

Steinweiss foi aluno de Leon Friend, autor do primeiro livro sobre design gráfico na América do Norte, e pupilo de um consagrado designer de pôsteres, o austríaco Joseph Binder. Com o álbum Smash Song Hits by Rodgers and Hart e um voto de confiança da Columbia Records (empresa que o contratou com apenas 23 anos de idade), Steinweiss criava o primeiro álbum de discos de 78 rotações com capa trabalhada graficamente, o que revolucionaria a maneira como a indústria fonográfica mundial viria a encarar as capas de disco.

Baseando-se na tradição de um outro meio, o pôster, Steinweiss incorporou às capas de disco um valor subjetivo através da criação de imagens originais, cuja finalidade semântica estava vinculada a uma eficiência narrativa de seu projeto gráfico.

Steinweiss afirma que é muito difícil tentar ilustrar a música, pois esta é uma arte abstrata. Mas existe um compositor desta música. Ora Steinweiss se apropriava de elementos da vida dos compositores, ora a própria música já fornecia uma história. 

O que importa aqui é a identificação da necessidade de incorporar ao disco uma imagem original, exclusivamente dedicada a estabelecer uma correspondência entre o visual e o sonoro. Aqui está a grande descoberta e a grande virtude de Alex Steinweiss na história da indústria fonográfica.

A partir do momento em que trabalhos gráficos originais são desenvolvidos para os álbuns que embalam os discos, o consumidor passa a estabelecer relações mais diretas entre o som e a imagem que o acompanha. Assim, as formas de relação do consumidor com o disco intensificam-se de maneira complementar e se manifestam igualmente através dos sentidos do tato, da audição e da visão. O disco torna-se um suporte de códigos que se relacionam intersensorialmente com o consumidor.

Quando isso é efetivamente colocado em prática, nasce um novo objeto cultural completamente original. A partir de Steinweiss, esta busca pelo apelo visual das capas de disco modificaria mais uma vez a relação do disco com o consumidor, reconfigurando-o enquanto bem de consumo e proporcionando novos avanços aos meios de produção de seu tempo.

Dos discos de 78rpm, passando pelos LPs, fitas cassette, e Cds, a necessidade de que a imagem complementasse a mensagem musical se confirmou. O que ocorreu, acompanhando a evolução tecnológica, foi a variação da dimensão da superfície dedicada à visualidade.

O auge desta evolução, pelo que podemos constatar até então, é a desmaterialização da superfície física do registro sonoro. Como foi apontado inicialmente, o “fonograma digital” independe de uma única superfície física. Esta falta de corpo físico para o suporte da música afeta diretamente a maneira como o consumidor se relaciona com ela.

Recentemente, está havendo um movimento de retomada e culto ao disco de vinil. Juntamente com esta retomada, observa-se também que outros produtos analógicos, considerados tecnologicamente superados, ainda se mantêm em produção. Segundo dados obtidos da reportagem do site g1.globo.com, de 21/04/2007, a fábrica Leson fabrica 500 mil agulhas para LP por ano no Brasil, a Menno fabrica mil unidades de mimeógrafos e a Videolar fabrica 700 mil fitas para áudio todos os meses.

No que diz respeito ao contexto tecnológico, este é um sintoma que indica que o consumidor contemporâneo ainda apresenta certa relutância em desprender-se por completo do mundo analógico. Uma hipótese para este comportamento é, aparentemente, a permanente carência do consumidor por uma interface que exija uma intervenção humana mais ativa.

A reprodução mecânica do som e o fato de o conteúdo do disco de vinil não ser facilmente extraído de sua forma física, valorizam a ação humana. Há um ato quase ritualístico em retirar o disco da estante e colocá-lo no toca-discos para apreciar sua capa ao som da música que ela acompanha. E a capa representa aqui o elo entre o consumidor e o real produto em questão: a música.


(1) Dados obtidos da reportagem do site g1.globo.com, do dia 21/04/2007 - 11h39 - Atualizado em 23/04/2007 - 11h25 - Empresas lucram fabricando ‘velharias’

Referências bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica, In_____. Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política:
ensaios sobre literatura e história da cultura.
São Paulo:
Brasiliense, 1985. vol. I. p. 165-196.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985. 92p.

FRANCESCHI, H. M. A casa Edison e seu tempo. 1.ed. Rio de Janeiro:
Sarapuí, 2002. 312p.

LAURENTIZ, S. R. F. Contribuições dos meios de produção à linguagem
visual: uma análise sintática pelos princípios semióticos –
Campinas.
1994. (Dissertação – Mestrado - Universidade Estadual de Campinas).

McKNIGHT-TRONTZ, J; STEINWEISS, A. For the record: the life and work
of Alex Steinweiss.
1.ed. New York: Princeton Architectural Press,
2000. 212p.

 

André Novaes de Rezende é Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pelo Mackenzie e doutorando do programa de Artes Visuais da Unicamp. É professor do curso de Design da Facamp.

 


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