A reprodução dos chamados papéis masculino e feminino continua, até hoje, regida por idéias biologicistas. A mulher é assim, porque assim é sua natureza, o homem idem. Talvez por estar no centro das identidades pessoais, a questão de gênero seja das mais difíceis de desnaturalizar. Pois é essa a tarefa central da belíssima pesquisa publicada no livro Gênero e artefato, de Vânia Carneiro de Carvalho.
Demonstrar a construção histórica dos papéis sexuais e dos artefatos ditos femininos ou masculinos é o empreendimento da pesquisa de doutorado de 2002, que se tornou livro em 2008, e que passa a ser fonte primorosa dos cursos de história do design brasileiro.
Por meio dela, aprendemos que os objetos que nos cercam, longe de serem neutros, são portadores de valores, garantidos por práticas sociais. Vânia Carneiro de Carvalho analisa a produção de espaços domésticos como a sala de jantar, o hall e o escritório, a sala de visitas, o quarto feminino dos palacetes e casas da Paulicéia, de 1870 a 1920. Discute de forma pormenorizada hábitos ‘masculinos’ e 'femininos', os papéis de cada gênero na casa e como eles se consubstanciam nos objetos. Em sua pesquisa, examinou documentos diversos, entre os quais ‘reclames’, revistas, jornais, manuais de etiqueta, coleções de fotografias, textos de viajantes e de ficção, o acervo do Museu Paulista e o do Museu da Casa Brasileira.
É justamente nesse período que as simples residências portuguesas são substituídas pelas mansões da burguesia paulista, que as cadeiras de palhinha (as austríacas Thonet e suas cópias) são substituídas por estofados, que os programas arquitetônicos residenciais se tornam complexos. É nesse período que nossa elite passa a decorar cada cômodo da casa de acordo com um estilo, adotando, no interior, o ecletismo o que vigorava no partido arquitetônico.
Sem a fácil tentação de repetir análises de fora, desde logo, a pesquisadora anuncia sua autonomia de pensamento. Ela foge da facilidade, por exemplo, de mostrar a cozinha, local feminino por excelência, e aponta como seria relevante comparar o gabinete médico à cozinha brasileira. Diferentemente dos Estados Unidos, onde o engenheiro foi o protagonista das mudanças e onde a automação e o planejamento industrial eram centrais; em desacordo com a Europa, onde os arquitetos redesenharam as cozinhas; no Brasil, sugere Vânia de Carvalho, a modernização das cozinhas teve como referência as transformações do consultório médico.
A pesquisa demonstra como a divulgação em revistas e jornais foi capaz de espraiar modelos que, a partir das elites, eram recriados por segmentos médios da população. E a imanência de atributos de gênero de objetos, garantidos, é claro, por práticas sociais. Assim, se analisam móveis, sua configuração, objetos e mesmo matérias-primas. O couro, por exemplo, se tornou revestimento eminentemente masculino, uma vez que herdado do escasso mobiliário colonial, em que assentos desse material se destinavam a funções públicas (e, portanto, dos homens).
As marcas femininas, impressas em trabalhos manuais, dizem respeito a uma camuflagem das coisas – os inúmeros porta-coisas, os panos ou trabalhos em macramê que escondem objetos mecânicos ou mesmo aqueles ligados ao trabalho servil. Ou seja, a distinção social - aqui estendida à consolidação dos gêneros masculino e feminino - preside certas práticas sociais que se manifestam e se reafirmam por meio dos objetos, estendendo-se a eles. Ou, dito de outro modo, mesas, cadeiras, espelhos, vãos, canetas e óculos ganham sexo e passam a ser indissociáveis de hábitos que ‘fazem’os gêneros.
O livro percorre aspectos da vida íntima e seu disciplinamento, seja na decoração, nas roupas íntimas, na simbiose entre as mulheres e homens e os objetos a eles associados; na relação construída de elementos da natureza e corpo feminino, presente de forma notável no Art Nouveau. Por meio dos objetos, pode-se observar o que a autora denomina de ações centrípetas dos homens e centrífugas das mulheres. Estas últimas, em vez de se formarem com perfis de individualidade, tão cara à época burguesa, transformam-se em agenciadoras das diferenças entre os membros da família.
A pesquisa exemplar de Vânia Carneiro de Carvalho constrói uma perspectiva e tanto para os historiadores do design, ao privilegiar o campo da cultura material. O trabalho deixa em aberto – pois não era mesmo seu objetivo – justamente aquele momento que a história do design brasileiro deve percorrer, ou seja, o outro lado do balcão. Se a preocupação dos estudiosos da cultura material repousa no uso e, nas sociedades capitalistas, no consumo dos objetos, a história do design, casada à história da arquitetura brasileira tem pela frente o desafio de explicar quem fabricou os objetos mostrados e analisados nesse trabalho. Como eram concebidos os móveis e objetos residenciais quando fabricados no Brasil? Que modelos eram seguidos ou copiados? Havia adaptações - visuais, produtivas? Se havia, quem as fazia, como eram decididas e por quê?
CARVALHO, Vânia C. Gênero e Artefato: o Sistema Doméstico na Perspectiva da Cultura Material – São Paulo 1870-1920. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008.
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