Ano: III Número: 29
ISSN: 1983-005X
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O Pensamento Matemático na Arte de Nosso Tempo
Max Bill
Tradutor(a):Aracy Amaral

Antes de tudo, devemos esclarecer que por pensamento matemático na arte não se deve entender medidas e cálculos aplicados à arte: o conceito não pretende ser tão restrito. Até hoje, toda obra de arte teve, em proporções variáveis, uma fundamentação matemática com base em partes e estruturas geométricas. A arte moderna conhece muitas formas de expressão regidas por métodos matemáticos que, como reguladores objetivos, asseguram à obra de arte seu equilíbrio e harmonia, assim como a vigilância sobre o sentimento individual garante diariamente a configuração lógica.
 
Estes métodos generalizam bastante desde o tempo em que as matemáticas constituiam o fundamento de toda expressão artística, comunicação secreta entre o cosmos e o culto: entretanto, seu repertório, contrariamente ao que se esperava, não se enriqueceu paralelamente desde a época do antigo Egito. A perspectiva, nascida no Renascimento, constitui talvez a única exceção. Sua origem remonta à necessidade de se conseguir um sistema que, por meio do cálculo e a figuração dos objetos, permita reproduzir fielmente a natureza num espaço artificial. A consecução deste fim pela perspectiva determinou mudanças fundamentais na consciência do homem; mas este progresso na metodologia das formas teve como consequência a transformação da imagem primitiva em uma segunda imagem, e, com isto, a decadência definitiva da arte tectônica e simbólica.
 
O impressionismo e, em maior grau, o cubismo voltaram a trazer elementos primaciais; a pintura apareceu sob a forma de imagem cromática sobre um plano; a escultura, como estrutura no espaço.
 
Assinalamos, contudo, que o ponto de partida fundamental para uma nova concepção deve ser atrubuída a Kandinsky, quem em seu livro "Uber das geistige in der Kunst", em 1912, postulou as premissas de uma arte na qual a imaginação gratuita seria substituída pelo pensamento matemático. Ele não deu esse passo, mas liberou os meios expressivos da pintura.
 
Se investigamos a essência de um quadro do Klee ou uma escultura de Brancusi, encontramos reminiscências do mundo real, recriadas em forma nova e ao mesmo tempo primitiva. Em Kandinsky nos achamos diante de fatos e objetos ainda inéditos, que talvez tenham significação num mundo desconhecido por nós, num mundo cuja essência não estamos ainda em condições de definir. Mondrian deu o passo decisivo, separando-se do que até então se entendia por arte. Seus ritmos podem nos fazer supor que nos achamos diante de objetos inventados, mas o certo é que eles não foram pensados sem este fim. Não é por acaso que suas últimas obras se chamam "Boogie-Woogie da Brodway" e "Boogie - Woogie da Vitória" e sugerem uma analogia, por sutil não menos real, com os ritmos de jazz. Sua construção ortogonal é sensorial, apesar da severidade dos princípios empregados. Se acreditássemos que Mondrian, ao deixar de lado muitos elementos extra-artísticos, tenha esgotado as últimas possibilidades da pintura, isto é, que chegou a uma meta, ficariam abertos dois caminhos para a evolução futura da arte: ou o retorno ao velho e conhecido ou uma aproximação a uma nova temática.
 
Não quero deixar de expressar o que penso sobre o retorno ao já superado nem deixar de esclarecer por que penso que este caminho não pode ser seguido por todos. No horizonte das expressões plásticas nascidas em nosso tempo existem intermináveis direções (e desvios). E é lógico que seja assim, pois a interpretação do fenômeno artístico varia segundo o ponto de vista adotado por cada um em relação aos problemas essenciais de nossa época. A concepção da arte de um religioso é diferente da de homem de ciência: a de um operário diferente da de um camponês, porque são distintas suas condições de vida, cultura e civilização. Os artistas não escapam a esta norma: a inelutável diversidade individual ou de grupo conforma, também aqui, orientações artísticas diversas.

Há quem exija que os problemas sociais e políticos sejam resolvidos através de sua exaltação e difusão artísticas. Por múltiplas razões confesso meu ceticismo em relação a esta esperança desmesurada. Esta tendência da arte atual, qualquer que fosse sua atitude para com o sistema social dominante, atitude de solidariedade ou repulsa, é sempre propaganda, mas não apenas isso: em função do caráter absoluto de suas normas, é também a maneira mais coerente e estimada de combater todo progresso espiritual. No fundo, é o caminho do retorno. E do retorno a antes de 1910.
 
Contudo, conservar-se placidamente estacionado nas modalidades artísticas criadas no transcurso destes últimos quarenta anos, também não significa caminhar em sentido muito oposto ao caminho de retorno. É o caso dos que preferem expressar-se "à maneira de" Klee, Kandinsky, Mondrian ou, o que é mais frequente, "à maneira de" Picasso, Braque, Matisse. Uma grande parte da produção atual, mesmo a de vanguarda se esgota criando "variantes" que substituem o genuíno e repetem indefinidamente o já conhecido. Não é lícito continuar artisticamente esse estado de coisas, pois é impossível conceber um estancamento numa atividade espiritual do homem.
 
Mas, quais são então as possibilidades reais de uma evolução? As possibilidades expressivas da pintura-escultura já foram suficientemente investigadas e podemos dizer, agora com certa segurança, que os meios de expressão estão liberados em escala muito ampla ainda quando sejam escassos os pioneiros os que assim o evidenciam em sua obra. A forma em si mesma já não pode ser motivo de discussão. As novas interrogações se referem principalmente ao conteúdo, pois o que resta averiguar é se o conteúdo é invariável, ou seja, se seus elementos expressivos têm uma validade absoluta ou se são só inspirações espontâneas em circunstâncias especiais. Inclino-me a pensar que a segunda alternativa seja a que mais se ajusta à realidade atual da arte. O conceito se esclarece se se pensar que uma grande parte das obras atribuídas a influências matemáticas distam muito de ser exemplares em seu gênero, tudo parece focalizá-las mais como resultado de aspirações espontâneas em circunstâncias especiais que como consequência de uma depurada compreensão dos meios usados.
 
Creio que é possível desenvolver uma arte de ampla base matemática. Não ignoro a onda de protestos que tal enunciado pode levantar. Em geral, declara-se que a arte não tem nada que ver com a matemática, que esta é árida, antiestética, pura questão do pensamento, alheia totalmente à arte. Para a arte seria somente importante o sentimento; o pensamento, contraproducente. Mas o certo é que nenhuma das duas concepções é justa, porque a arte precisa, ao mesmo tempo, do sentimento e do pensamento. Um velho exemplo, nunca suficientemente citado, temo-lo em Johan Sebastian Bach que com a matéria som e meios matemáticos, cria construções perfeitas, e em cuja biblioteca encontraríamos, certamente, junto às escrituras teológicas, textos de matemática; numa época em que esta havia deixado de ser utilizada.
 
É necessário repetir sempre, mesmo quando a insistência possa parecer pueril, que o pensamento é um dos traços fundamentais do ser humano. O pensamento possibilita a ordenação dos valores sentimentais e torna possível a criação da obra de arte. O elemento de toda obra plástica é a geometria, relação de posições sobre o plano e no espaço.
 
A matemática, além de ser um dos reguladores principais do sentimento primário, e, consequentemente, um dos meios mais eficientes para o conhecimento da realidade objetiva é, ao mesmo tempo, ciência de relações, de comportamento de coisa a coisa, de grupo a grupo, de movimento a movimento. E já que ela contém estes princípios fundamentais e os relaciona entre si, é natural que tais acontecimentos possam ser apresentados, isto é, transformados em realidade visual.
 
Estas representações matemáticas nós as conhecemos, há tempo; podem ser observadas no Museu Poincaré de Paris. Delas, como dos princípios matemáticos de quem procedem, emana um cativante sentido estético. Estes casos extremos em que a matemática se manifesta plasticamente ou aparece como cor e forma sobre um plano, significa, na busca de novas formas de expressão, o que, em uma época, significou o descobrimento das esculturas negras para os cubistas. Mas assim como estas não puderam ser imitadas de um modo mecânico e liberal pela arte moderna, assim também não foi possível seguir em igual sentido os modelos matemáticos. Seu descobrimento e as sugestões plásticas das edificações técnicas e das fotografias aéreas levaram os artistas ao construtivismo, quer dizer, à busca de uma nova expressão em acordo com os sentimentos tecnicistas de nossa época.
 
Ao mesmo tempo, a matemática traz novas e inauditas proposições. Seus limites perderam sua primitiva clareza e já são irreconhecíveis. Mas o pensamento humano em geral (e o matemático em particular) necessitam, diante do ilimitado, um apoio visual. É então que a arte intervém. Desde este momento a linha clara se torna indefinida, enquanto o pensamento abstrato, invisível, surge como concreto, visível. Espaços desconhecidos, axiomas quase inacreditáveis, adquirem realidade e se começa a caminhar por regiões que antes não existiam; a sensibilidade se amplia; espaços até há pouco desconhecidos e inimagináveis começam a ser conhecidos e imaginados.
 
O pensamento matemático na arte não é a matemática em sentido estrito; pode-se dizer que o que se entende por matemática exata é aqui de pouca utilidade. É muito mais, é uma estrutura de ritmos e relações, de leis que têm fontes individuais, da mesma maneira que a matemática tem seus pontos essenciais no pensamento individual de seus inovadores. Assim como a geometria de Euclides é para o homem de ciência de hoje de um valor mais que relativo, sua importância é limitada para a arte. O princípio do infinito-finito, meio vital de ajuda para o pensamento matemático e físico, o é também para a criação artística. Nesse sentido é fácil constatar que hoje nascem na arte novos símbolos que já desde antigamente tinham uma ressonância sensorial, mas que, como certamente nenhuma outra possibilidade de expressão do ser humano, preenchem o mundo sentimental de nosso tempo. O misterioso da problemática matemática e o indeclarável do espaço, a proximidade ou a distância do infinito, a surpresa de um espaço que começa e termina de forma diferente, a limitação sem limites exatos, a multiplicidade que, apesar de tudo, forma uma unidade, a igualdade de forma que varia com o aparecimento de um único acento, o campo de forças composto de variáveis, as paralelas que se cruzam e a infinitude que torna a si mesma como presença, e ao lado novamente, o quadrado com todos os seus fundamentos, a reta que não é perturbada por nenhuma relatividade e a curva que em cada um de seus pontos forma uma reta; todas estas coisas, que aparentemente não têm nenhuma relação com a vida diária do homem, são apesar de tudo, de fundamental importância.
 
São forças que manejamos como forças primitivas, às quais está sujeita toda a ordem humana, contidas em toda ordem reconhecível.

A consequência de todas estas coisas é uma nova contribuição ao conteúdo da arte de nossos dias, porque elas não são o puro formalismo como erroneamente se as enxerga, não somente formas de beleza, mas sim formas convertidas em pensamento, ideia, reconhecimento; não somente substâncias existentes na superfície, mas sim ideia, primária estrutura do mundo, de comportamento de acordo, com a imagem universal que hoje nos propomos a realizar. Mas nunca uma imagem debilitada, uma cópia, mas sim um sistema novo, comunicação de forças  elementares de maneira parceptível. Poder-se-ia dizer que com isto a arte se converteu num ramo da filosofia numa parte da representação da existência. Mas eu creio que a filosofia, como uma forma especial do pensamento, precisa da literatura para ser inteligível. Sem a palavra, o pensamento é insuficientemente expressivo para a sensação. Por isso, a arte teria que incluir o pensamento numa forma diretamente perceptível.
 
Deste modo, um determinado pensamento poderia ser transmitido diretamente, claro que com algumas possibilidades de incompreensão, mas com a vantagem de oferecer ao pensamento uma relativa estabilidade e permanência.
 
Quanto mais exatamente se comunique o pensamento, quanto mais unitária seja a ideia fundamental, mais próximos nos acharemos do pensamento metódico, mais perto estaremos da estrutura primária. A arte, por sua vez, se tornará muito mais universal. Mais universal, porque expressando-se sem rodeios poderá ser entendida sem rodeios, diretamente.
 
Poderão dizer-me que isso não será arte. Com o mesmo direito se pode assegurar: só isto será arte. Afirmação contra afirmação. Com igual critério, estendendo isto a outro terreno, poderia dizer-se que somente a geometria de Euclides é geometria e não a nova de Lobachevsky e Riemann. O aparecimento desta nova arte pelo resultado de uma visão, que se move numa zona que, num sentido, não oferece muita segurança, mas que, em outro, é um convite ao desconhecido, ao descobrimento de novos campos de visão e de percepção sensível. A diferença entre a ideia tradicional de arte e a definida por nós pode ser, mais ou menos, a mesma que aquela existente entre as leis de Arquimedes e a astrofísica de hoje. Arquimedes é ainda muito decisivo em muitos casos, mas não já em todos. Fídias, Rafael, Seurat criaram obras de arte de seu tempo com os meios de seu tempo. Mas aquele campo de visão se ampliou hoje: a arte toca já regiões antes proibidas. Uma destas se serve do pensamento matemático, que, apesar de seus elementos racionais, tem componentes da visão universal capazes de levar-nos aos limites do inexplicável.

Sobre o Autor(a):

O artista plástico suíço Max Bill (1908-1994) formou-se em arquitetura na Bauhaus Dessau. Integrou o grupo Abstraction-Création, (Paris, 1932-1936) e afiliou-se à concepção de arte concreta (1936) cunhada por Theo Van Doesburg (1930).

Lecionou na Technische Hochschule, em Zurique durante a II Guerra Mundial, tornando-se designer industrial e gráfico. Fundou o Instituto para Cultura Progressiva em 1947, além de dedicar-se à sua carreira de artista, expondo com Joseph Albers e Jean Arp.

Foi convidado para assumir a direção da nova escola alemã, a Hochschule für Gestaltung, Ulm, que mudou os rumos do ensino de design em boa parte do mundo, com grande influência em escolas latino-americanas e indianas.

Max Bill é autor do livro O Pensamento matemático de nosso tempo (1949), do qual foi retirado esse excerto.

A obra de Bill teve enorme influência entre artistas concretistas brasileiros, entre eles o designer Alexandre Wollner, a escultora Mary Vieira e o pintor e designer Almir Mavignier. Vencedor do grande prêmio de escultura da I Bienal de São Paulo, com a obra Unidade Tripartida, que faz parte do acervo do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, Bill esteve no Brasil em 1953, quando teve contato com nossos meios artísticos, e criticou duramente a arquitetura de Oscar Niemeyer por seu caráter não-seriado.

O texto acima foi retirado de Projeto Construtivo na Arte: 1950-1962 (supervisão, coordenação geral e pesquisa: Aracy A. Amaral) Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna; São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977.

 Agitprop agradece a professora Aracy Amaral pela cessão dos direitos de tradução do texto.

 


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