Hoje faz 40 anos que o governo socialista da Unidade Popular foi derrubado por uma ditadura militar. Pouco se sabe da importância do design (na época do desenho industrial) na construção do que seria o socialismo implantado por meio do voto.
Pois o designer e teórico Gui Bonsiepe participou de forma central deste governo, ao fazer parte do Grupo de Diseño Industrial do Instituto de Investigaciones Tecnológicas (INTEC), de Santiago do Chile.
Lá ele realizou alguns projetos, como a da colher medidora de leite em pó, distribuída para as 800 mil famílias que recebiam o leite gratuitamente.
Num primeiro momento, a equipe do Instituto pensou em embalagens de pequenas quantidades, de 5 a 20 gramas, que dariam a medida exata para que o leite ingerido pelas crianças não fosse diluído de forma errada. Esta solução seria cara, pois envolvia altos custos de compra de máquinas. Outras formas de garantir o uso adequado do leite foram pensadas e descartadas até que se chegou à simples colher com cabo reforçado e superfície plana, que facilitasse a retirada do excesso de leite.
Até aí nada de muito complexo. Um artefato simples, dirigido à população de baixa renda.
No entanto, estava em curso no Chile governado pelo presidente Salvador Allende um projeto muito mais ambicioso, do ponto de vista tecnológico, uma espécie de internet antes do microcomputador, um sistema capaz de administrar em tempo real as indústrias estatais do país. Trata-se do projeto Cybersyn, concebido pelo papa da informática da época, o inglês Stafford Beer.
Essa experiência foi relatada pela pesquisadora norte-americana Eden Medina no livro Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende's Chile (Revolucionários Cibernéticos. Tecnologia e política no Chile de Salvador Allende), publicado pelo MIT Press, em 2011.
A ideia central de Beer era implantar um sistema eletrônico, cujos componentes estivessem integrados por uma rede de comunicação nacional. A longo prazo, pensavam os estrategistas do governo Allende, entre os quais o ministro Fernando Flores, esse dispositivo da tecnopolítica seria uma ferramenta da igualdade social. Ela daria ao governo o controle das 80 a cem maiores indústrias do país, ao mesmo tempo em que abriria espaço para a participação dos operários e trabalhadores de forma desburocratizada.
Se algo não pudesse ser resolvido localmente, a sala de gestão cibernética (Opsroom) seria o espaço de decisão do governo central. Esta sala, as interfaces gráficas e todo o sistema de monitoramento foram construídos de forma a transformar enormes conjuntos de dados em informações facilmente compreensíveis.Tudo nela foi projetado pela equipe de desenho industrial do INTEC, coordenado por Gui Bonsiepe.
Tratou-se de grande projeto de interface para o centro da gestão econômica do país, desenvolvido entre os anos de 1971 e 1973.
O sistema funcionava com diagramas desenhados a mão e máquinas de escrever para os textos. Tudo era fotografado e ficava disponível para as sessões dos gestores da economia, de um dia para o outro, em forma de slides.
Além dessa complexa interface visual dos dados coletados das empresas e de outras variáveis econômicas e políticas, a equipe de design foi responsável pelo hardware da sala, que compreendia sete poltronas dispostas em círculo, cada uma delas com um painel de comando para as informações que eram projetadas. A equipe desenvolveu todo o desenho que permitia visualizar rapidamente as situações de problemas e crises nas indústrias; e um painel de projeções do futuro.
Pouco antes de funcionar no Palácio de La Moneda, sede do governo da Unidade Popular, houve o golpe militar que colocou na chefia do governo o general Pinochet. Só recentemente, com o trabalho de Eden Medina, esta história saiu do esquecimento. Também Gui Bonsiepe a relata detalhadamente em seu livro Design como prática de projeto, publicado em 2012.
Contra o senso comum de que design é sinônimo de mercadoria inútil, o projeto da Opsroom é um gigantesco lembrete de que bens materiais, digitais, a informação pública e seus equipamentos são tarefas que podem ser realizadas por designers na perspectiva democrática de conquista de direitos.