A coleção de ferramentas de Rubens Matuck
Fernando Mendes de Almeida
Uma visita ao ateliê de Rubens em São Paulo é coisa para ser feita com tempo e em capítulos. A conversa é interessantíssima, tentamos manter a atenção na extensa coleção de ferramentas...motivo da visita, mas o assunto desvia para os povos da Amazônia seguindo para a marcenaria ancestral praticada no interior da China e a influência das ferramentas chinesas na fabricação dos mais avançados formões suecos de hoje (Fig. 6), gravura, tipos de papel, encadernação, agricultura, madeiras... como se houvesse uma linha contínua ligando tudo. E para Rubens há!
Rubens é arquiteto de formação, mas percebeu-se artista plástico quando pensou no futuro profissional. Por artista plástico entenda-se: pintor, ilustrador, gravador, desenhista, ceramista e escultor (em madeira). Ele não para por aí: é também professor, autor de livros (alguns infantis) pesquisador de sementes, de madeiras, de instrumentos musicais e de ferramentas de marcenaria.
Eloquente e muito simpático, Matuck questiona o aprendizado de design tão ancorado na escola européia quando nossa biodiversidade e riqueza cultural estão aí para dar grandes lições sobre o saber-fazer.
Escrever um ensaio sobre essa coleção não é tarefa fácil, seja pelo número de instrumentos (em mais de 70 fotos registrei apenas uma fração do acervo), seja pela história que cada um deles tem para contar. Rubens me ajudou a separar os mais significativos.
Algumas das ferramentas se destacam pelo requinte de fabricação ou pelo desenho, outras pelo material usado ou por terem sido feitas por algum artesão em especial.
O termo mais adequado é instrumento de marcenaria, já que boa parte deles é feita de madeira e não de ferro, de onde vem a palavra ferramenta.
É notável a preferência do colecionador pelos instrumentos artesanais: “Ferramentas dessa natureza indicam detalhes anatômicos do corpo humano, o refinamento do desenho e a extraordinária intuição dos artesãos que passam suas experiência às novas gerações. A relação entre as peças e o corpo humano tem dois aspectos. Um é a individualidade do artesão que a constrói. O outro é que a mão, com o uso, vai amoldando a peça à sua forma, fazendo com que a próxima seja ligeiramente diversa e mais aperfeiçoada.” (Fig.1)
Os instrumentos
Na Fig. 2 um dos muitos serrotes japoneses da coleção, que exibem diversos tamanhos e formatos para vários tipos de corte. Esse é usado para abrir o corte na superfície da madeira. Como em todo serrote japonês, a lâmina é flexível. Ao contrário dos serrotes ocidentais, esses cortam na puxada para manter a lâmina esticada e precisa.
Rula, (Fig. 3). Instrumento para medir o perímetro da roda de carroça. A roda tem quatro elementos: o cubo central que recebe o eixo, os raios que ligam cubo ao aro de madeira e o aro de ferro que envolve o aro de madeira e prende todo o conjunto. Com a rula mede-se o perímetro externo do aro de madeira. O aro de ferro é cortado um pouco menor que o perímetro da roda de madeira. A barra de ferro é então envergada e tem suas pontas soldadas. O aro de ferro é dilatado no fogo para receber a parte de madeira da roda. Depois de resfriado, o aro comprime a roda apertando todos os seus encaixes de uma só vez, dando extrema resistência ao conjunto.
Caixa de abrir rosca (Fig. 4), fabricação européia do século. XIX. Parafusos de madeira já foram muito usados em marcenaria, seja na fabricação de grampos ou nos parafusos de bancada, como o que se vê na morsa frontal da bancada da Fig. 18.
Entre os formões, o que mais chama a atenção e a goiva araueté (goiva é o formão com a lâmina curva) de origem amazônica. (Fig. 5)
Confeccionada com dente de cotia no lugar da lâmina de aço e com o cabo de madeira (ipê amarelo) unidos por fio de bromélia. Um pedaço de casca de tatipé (árvore amazônica) faz as vezes de pedra de amolar. Um cordão trançado, também de bromélia, reúne as partes. “Na floresta temos que manter as mãos livres, o cordão serve para carregar todo o conjunto na cabeça”, diz Matuck. Interessante aqui é notar um instrumento de corte fabricado com elementos do mundo animal e vegetal, sem nada metálico.
O formão que conhecemos como japonês e que Rubens logo corrige para formão de tradição oriental (Fig. 6), tem origem na China. Segundo Matuck, quinhentos anos antes do Ocidente, os chineses desenvolveram o domínio da composição do aço. Na lâmina do formão a face do dorso recebe o aço mais duro, responsável pelo corte, porém mais quebradiço. O aço duro é unido numa forja ao aço mais macio, que impede o aço duro de quebrar, além de facilitar o trabalho de afiação da ferramenta. O dorso do formão tem uma cavidade (Fig. 7) que facilita o apoio e a firmeza da ferramenta sobre a pedra, necessários para a afiação da lâmina, reduzindo o tempo gasto nessa tarefa.
A primeira goiva da Fig. 8 é uma ferramenta para escultura fabricada em São Paulo, mas mantida anônima. A loja que comercializa essa goiva preferiu se proteger comercialmente não revelando o seu fabricante. Na seqüência, duas goivas de procedência européia da década de 1940 e por último uma goiva atual fabricada com mola de suspensão de automóvel.
Na Fig. 9, quatro boquexins do restaurador Domonicus Zarand. Nota-se claramente o aperfeiçoamento da forma entre o primeiro e o último instrumento.
Embora seja impressionante a habilidade desse húngaro na construção dos boquexins e das topejadeiras (Fig. 10 e Fig. 11), Zarand dedicou-se exclusivamente à restauração, não tendo jamais construído um móvel.
Na Fig. 12, cinco boquexins industrializados. O primeiro deles, mais antigo, é uma ferramenta típica da construção de rodas de madeira. A lâmina reta aplaina e a lâmina em curva arredonda os cantos dos raios da roda. Na seqüência, algumas das boas marcas que estão no mercado e por último um Harris americano, industrializado e de madeira.
No boquexim da Fig. 13 nada mais que dois elementos, o cabo de madeira com dois orifícios e a lâmina. Com menos de 14 cm esse foi o único instrumento usado por Rubens para finalizar uma escultura de madeira com sete metros de comprimento. É, segundo Matuck, o expoente da simplicidade e da sabedoria no uso dos materiais.
As duas plainas apresentadas na Fig. 14 têm função e tamanho semelhantes. São usadas para aplainar topos, cantos, peças pequenas e podem ser usadas com uma só mão.
O marceneiro virtuose Morito Ebine esculpiu a plaina em aroeira e usou aço sueco para a lâmina. Plainas desse tipo não são ajustadas, são afinadas, como um violino - requerem intimidade com o instrumento, coisa que se adquire com a prática e a convivência. Para a afinação de uma plaina dessas usa-se um martelinho de madeira, como o da Fig. 15, feito pelo Rubens, para não machucar a plaina. Bate-se na cunha para prender a lâmina, na própria lâmina para aprofundar o corte ou na traseira da plaina para soltar a lâmina.
Plainas industrializadas (Fig. 14) cumprem perfeitamente bem as mesmas funções e são mais fáceis de usar, mas ensinam menos ao usuário sobre a sensibilidade do corte da lâmina na madeira.
A plaina da Fig. 16 apara a profundidade de um goivete. Ao contrário dos formões ou das plainas convencionais, uma plaina desse tipo é uma raridade numa marcenaria nos dias de hoje. As tupias manuais excutam a mesma tarefa mais rapidamente e não exigem grandes aptidões manuais.
Plaina caiçara (fig. 17), em sacambu e lignus vitae (madeira africana mais dura que existe).
De todos os instrumentos da coleção esse foi, sem dúvida, o que mais me impressionou. Plaina artesanal usada na construção de barcos no litoral de Santa Catarina. Uma mistura de sofisticação na forma e simplicidade no acabamento suavemente rústico.
Na frente da plaina o recorte sobre a sola abre o espaço para cavar o encaixe do chifre, que lembra uma vela de barco e, quando em uso, o rebaixo apoia a mão que segura o chifre. Funcional e intuitiva ela parece o próprio barco que auxilia construir.
Bancada de marceneiro (Fig. 18), em piquiá, fabricação Morito Ebine.
A bancada de marceneiro não está aqui por engano, é a ferramenta mais importante numa oficina. Nela prendemos todo tipo de peça de madeira para termos as duas mãos livres para o trabalho; essencial numa marcenaria, quase tudo se passa sobre ela.
Essa configuração de bancada é conhecida como europeia ou, mais especificamente, escandinava. Tem a morsa frontal em forma de ombro com o parafuso aplicando pressão diretamente sobre a peça e não paralelamente, como é mais comum nas morsas.
Glossário
Boquexim: Instrumento de corte, próximo da plaina, que serve para obtenção de formas orgânicas.
Goivete: Cavidade retilínea que se faz sobre a superfície de uma tábua.
Morsa: Aparelho que se movimenta pelo auxílio de um parafuso e que serve para prender uma peça de madeira sobre ou na lateral da bancada.
Tupia: Máquina usada para desbastar madeira aplicando-lhe um perfil determinado.
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Comentários
rubens matuck
13/08/2014
muito obrigado pelo respeito e o carinho comigo e com as "meninas"depois deste artigo a colecao andou um pouco e no ano que vem vou mostrar todo meu trabalho de madeira,vou te convidar,um abraco querido
Jayme Baccari
25/04/2010
Fernando,
Parabens pela matéria. Também sou colecionador de ferramentas antigas de marcenaria.
Visite meu site:
www.ferramentasantigas.com.br
Abraço
Jayme Baccari
MARIO A COSTENARO
24/06/2009
BOA NOITE . TENHO FERRAMENTAS ANTIGAS COMO A SUA COLEÇAO . PARA VENDE CONTATO F 80702304 OU94850330 OBRIGADO
claudia moreira salles
25/05/2009
Fernando,
Que privilégio ver as imagens destas ferramentas acompanhadas de tuas explicações.Parabéns pela iniciativa.
Um beijo,
Claudia
Ulisses Mello
22/05/2009
Parabéns pela matéria Fernando. Este tipo de material é precioso em nosso país onde pouco se valoriza o trabalho meticuloso e raro na arte de lidar com a madeira.
Registros sistemáticos sobre o assunto são e sempre serão de grande valia aos neófitos e graduados no ofício. São portas mais abertas ao que desejarem seguir esta trilha.
Amigos são testemunhas de nossa história de vida e fico feliz em continuar testemunhando seu esmero e dedicação.
Um forte abraço
Abel Prazer
20/05/2009
Memória
O multifuncional Rubens Matuck, citado no ensaio, assina a página Projeto da publicação Instrumentos Manuais de Marcenaria e Carpintaria, editada em jan.82 pela Prefeitura de São Paulo, sendo, naquele ano, o também ilustre Mário Chamie o titular da Secretaria de Cultura, responsável pela edição.
Tulio Mariante
19/05/2009
Fernando,
Li e gostei muito do artigo sobre as ferramentas. É uma matéria que, mais do que divulgar a coleção, exalta a atividade da marcenaria e do marceneiro. Parabéns. Tulio
MOEMA LINBERG
19/05/2009
PARABÉNS FERNANDO PELA EXCELENTE MATERIA.
NOVOS CAMINHOS SÃO SEMPRE O GRANDE SEGREDO!!!!
BEIJOSSSSSSSSSSS
MOEMA
Aristeu Pires
19/05/2009
O Fernando é um grande (e raro) estudioso da Arte da Marcenaria. Não apenas um estudioso teórico e sim um exímio marceneiro e designer que não restringe suas criações ao resultado visual, mas, simultanemente ao conforto que todo móvel deve oferecer.
No futuro, quando os cabelos registrarem as marcas da vivência, muitos irão chamá-lo de mestre. De fato, a semente já está germinada.
Obrigado pela aula, Mestre Fernando.
Julia Krantz
18/05/2009
Mais uma vez o Fernando nos dá um presente ao escrever de forma tão didática e entusiasmada sobre a pesquisa de um artista essencial como Rubens Matuck. Emocionante.
Julia Krantz
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