Design e artesanato parecem pertencer a mundos distintos, tão radical é a percepção de suas diferenças. O design é conceitual, generalista, voltado para a inovação e a produção seriada e uniforme. O artesanato é manual, especializado, sobrevivente de outros tempos, voltado para a produção em pequena escala com suas variações e irregularidades. No entanto, embora os produtos industriais sejam dominantes, os objetos artesanais continuam minoritária, porém persistentemente presentes. E não se trata apenas de reminiscências tradicionais, mas de objetos artesanais novos e únicos, feitos em suas oficinas por artesãos contemporâneos, com formação universitária, eventualmente em design.
Ao reaproximar criação e realização, cujo elo foi rompido pela indústria, os artesãos contemporâneos propõem uma abordagem diferente das relações entre artesanato e design. Suas novas realizações evidenciam a criatividade inerente aos ofícios artesanais direcionada à produção variada e em pequena escala; e (re) afirmam a importância, frequentemente esquecida, na elaboração do design, da familiaridade com os materiais e os métodos produtivos. Embora essa perspectiva seja limitada para a compreensão da complexidade do design contemporâneo, especialmente em sua relação com as novas tecnologias, ela contribui para a superação da oposição de natureza bélica entre design e artesanato legada pelo modernismo funcionalista de Le Corbusier, permitindo identificar relações de complementaridade entre ambos.
Antes de prosseguir, gostaria de abrir parênteses sobre a minha experiência profissional, pois a reflexão que venho desenvolvendo sobre as relações entre design e artesanato resulta de atividade como ceramista e de pesquisa sobre o ornamento, como um campo comum da arquitetura, design, artes aplicadas e artesanatos modernos.
Sou ceramista profissional há 27 anos. Mantenho oficina juntamente com Elizabeth Fonseca, minha esposa, em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, onde produzimos regularmente vasos, pratos, tigelas e castiçais, modelados em porcelana e queimados em alta temperatura, em forno elétrico. Nossa pesquisa de engobes e esmaltes é muito extensa. Temos predileção pelas formas simples e pelo contraste entre áreas cobertas por vidrados e/ou engobes e a superfície nua da porcelana. Nosso interesse se volta para as texturas que atraem o tato e aproximam o observador. Embora cada um de nós desenvolva seu próprio trabalho, concebemos e fazemos regularmente peças que são duplamente assinadas. Realizamos sem assistentes todo o trabalho de modelagem das formas, tratamento de superfície, pesquisa de materiais, controle de queimas etc. Nossa produção é pequena e, embora sejamos fieis a certas formas e procedimentos, está sempre em mutação.
Paralelamente à minha atividade como ceramista, fiz doutorado no Instituto de Letras da UERJ, em convênio com o Centro de História e Teoria da Arte, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris. O tema da pesquisa foi o debate moderno sobre o ornamento que, entre 1850 e 1950, envolveu teóricos da arte, arquitetos, designers, artesãos e artistas. A fermentação, a eclosão e a consolidação do modernismo estiveram intimamente associadas à reflexão sobre o ornamento.
No capítulo final do meu livro A beleza sob suspeita (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro) abordei as idéias do ceramista inglês Bernard Leach sobre as ricas possibilidades estéticas da cerâmica extremo-oriental de alta temperatura em contraponto às limitações muito acentuadas da cerâmica industrial da primeira metade do século XX. Sua defesa das qualidades da cerâmica artesanal foi muito contundente e influenciou várias gerações de ceramistas. O tema dos artesanatos modernos está presente, porém, em vários outros capítulos do meu livro. Procurei mostrar como as várias noções de ornamento desenvolvidas pelos protagonistas do debate estiveram comprometidas com diferentes atribuições de valor ao trabalho artesanal no mundo moderno, desde a função revolucionária dos artesanatos por John Ruskin, na segunda metade do século XIX, à sua severa desqualificação por Le Corbusier nos anos 1920 e depois.
Em oposição ao design industrial eficiente, neutro e uniforme, o arquiteto suíço, cuja influência foi determinante nos rumos tomados pelo modernismo brasileiro, considerava os artesanatos modernos imprecisos, subjetivos e anacrônicos. Ele reconheceu no artesão moderno um inimigo potencial do esfriamento racionalista das formas e materiais. A desvalorização dos artesanatos modernos tornou-se uma herança pesada do modernismo cristalizado no “estilo internacional”. Muitas décadas se passaram antes que a variedade e a irregularidade dos artesanatos modernos voltassem a ser apreciadas.
A pesquisa acadêmica me permitiu situar o ofício do ceramista num contexto mais amplo, e explorar as relações do movimento artesanal da cerâmica com a arquitetura e o design. Na ausência de um curso de cerâmica de nível superior, o aprendizado da cerâmica costuma ser essencialmente técnico. O conhecimento tácito necessário ao ofício da cerâmica artesanal é extenso, minucioso e muito absorvente, tendendo a nos isolar no ateliê.
Os ceramistas que montaram suas oficinas no Rio de Janeiro, em São Paulo e em várias outras grandes cidades brasileiras nos anos 1970 e 1980 se viram confrontados à absoluta falta de critérios para a apreciação do seu trabalho. Suas obras eram completamente inesperadas: a mais singela tigela artesanal provocava espanto e estranheza. Qual seria a sua legitimidade no mundo industrial, que havia deixado para trás a produção artesanal tradicional? Como lidar com a sua utilidade que contrariava preceitos da arte, então estreitamente associados à pintura e à escultura? Como apreciar a sua irregularidade que não se submetia à perfeição da indústria? A década de 1980 foi um príodo de exposições coletivas que promoveram a cerâmica artesanal -- amadora ou profissional, isso aparentemente não importava na época -- organizadas pelos próprios ceramistas ou marchands atraídos pelo novo filão. Havia então a consciência de uma aventura comum, que infelizmente foi se enfraquecendo com o tempo.
O relativo domínio do ofício da cerâmica exige muitos anos de prática. O conhecimento em profundidade das técnicas de modelagem, pesquisa de argilas e esmaltes, e controle da queima depende de milhares de horas de exercício, observação e pesquisa. Não se trata absolutamente de uma atividade manual que se aprende em algumas semanas, senão em poucos dias, de um “artesanato” no sentido infelizmente tão comum do termo.
Desvinculado da repetição de formas e procedimentos do passado, o ceramista moderno precisa reinventar um ofício e seus apreciadores. O esforço de longo prazo inclui dissipar mal entendidos sobre a irrelevância dos ofícios artesanais, evidenciar a especificidade da cerâmica artesanal em relação ao design e às artes plásticas, e estabelecer diálogo com curadores, pesquisadores, jornalistas, editores e museólogos em busca de apoio institucional. As qualidades da cerâmica artesanal contemporânea são melhor apreciadas quando suas diferenças e semelhanças com a produção industrial dominante são explicitadas. Isso é especialmente relevante, pois na ausência de apoio oficial à arte da cerâmica – o Museu Alfredo Andersen é uma rara exceção -- as cerâmicas artesanais contemporâneas são geralmente apresentadas em espaços expositivos ou de comercialização não especializados.
Embora as relações entre design e artesanato sejam mal percebidas no Brasil, existe um esforço mais ou menos recente para estimulá-las, que tem consistido na aproximação entre designers e grupos de artesãos, detentores ou não de um saber tradicional em vias de desaparecimento. O designer em questão é um arquiteto, designer ou estilista, com curso superior, porém não obrigatoriamente, considerado capaz de atualizar o objeto artesanal e adequá-lo ao gosto do consumidor urbano. Justifica-se a sua interferência sob o argumento de que os artesãos, duplamente ameaçados pela concorrência da indústria e pela desvalorização cultural de seu ofício, estão distantes dos consumidores potenciais e desconhecem as flutuações da moda. Algumas vezes o conhecimento tácito dos artesãos limita-se a procedimentos manuais simples que não constituem ofícios artesanais no sentido pleno.
Do encontro surgem protótipos estabelecidos pelo designer para serem repetidos pelo grupo de artesãos, por vezes adaptados aos processos artesanais de fabricação, por vezes não. A revitalização das técnicas artesanais tradicionais está longe de garantida, pois o seu sucesso depende muito da eficácia da rede de difusão comercial, que permanece, entretanto, precária. Como a valorização dos produtos artesanais avançou pouco, apesar da interferência dos designers, os artesãos precisam produzi-los em grande quantidade e de modo repetitivo, o que contraria sua natureza e corrompe a sua qualidade, alimentando um ciclo vicioso bem conhecido. A atividade artesanal torna-se um simulacro da manufatura, com a qual concorre sempre em desvantagem.
Embora o diálogo entre o artesão e outros profissionais seja valioso, acredito que obteríamos melhores resultados dos programas oficiais de design/artesanato se eles dessem prioridade à formação e ao aprimoramento profissional dos artesãos, capacitando-os a atuar também como designers de sua própria produção. A revalorização em profundidade do trabalho artesanal depende do estímulo ao seu potencial inovador. Aos ofícios artesanais, em seu sentido pleno, não pode faltar atividade projetual própria dirigida à produção em pequena escala, ao mesmo tempo elaborada e diversificada. Tanto melhor se a criação de novos produtos for empreendida pelos próprios artesãos como o pleno florescimento de seu ofício. Eis aí uma dimensão importante da atividade artesanal, que, infelizmente, costuma ser desprezada.
Uma outra aproximação entre design e artesanato é aquela que identifica, no interior da fábrica, o papel do técnico/artesão na elaboração de protótipos criados pelo designer. Confirma-se a contribuição do artesão ao processo industrial, assim como os diferentes papeis do artesão e do designer. Ao designer cabe desenvolver conceitualmente o projeto e ao artesão gerar a sua forma primordial, ao menos enquanto dispositivos de prototipagem de última geração não são introduzidos na fábrica.
O pressuposto de que a atividade artesanal é incompatível com a atividade projetual está muito enraizado na nossa cultura. Estaria a capacidade projetual do artesão limitada às possibilidades do seu próprio fazer, incompatível com as exigências múltiplas e incessantes do mundo moderno? Esta pergunta advém da minha própria experiência, pois tenho tendência a limitar meus desenhos às peças que sou efetivamente capaz de realizar, embora sempre me esforce para ampliar conhecimentos e habilidades.
Na nossa cultura, a negação da capacidade projetual do artesão é, porém, muito mais radical. Cabe ao artesão executar ou repetir protótipos criados por designers. A lógica dissociativa parece ter vencido até mesmo na pequena oficina onde criação e produção deveriam permanecer ligadas. Graças à notória desvalorização nacional do trabalho artesanal, radicalizamos de modo caricatural a dicotomia cultivada pela cultura ocidental entre atividades manuais e mentais, da qual John Ruskin foi um crítico poderoso. Isso não se faz, porém, sem prejuízo para os artesanatos e o próprio design.
Ao menos nas escolas de design cariocas, a formação é essencialmente conceitual e dissociada da realidade dos processos produtivos. Raramente as escolas de design brasileiras dispõem de oficinas de cerâmica nas quais os alunos podem conhecer as qualidades específicas dos materiais, processos de modelagem, obtenção e aplicação de cores e esmaltes – o mesmo vale para as oficinas de marcenaria, vidro, tecelagem etc. Certamente o propósito das escolas de design não é desenvolver em seus alunos o conhecimento tácito complexo e diversificado dos ofícios artesanais. No entanto, a ausência de experiência prática está longe de ser uma vantagem profissional para o designer de produto. Isso explica, ao menos em parte, o hábito recorrente da indústria de cerâmica brasileira de adquirir design no exterior, senão meramente de copiar produtos já em circulação, sejam eles industriais ou artesanais.
Estou convencido de que a criação e a inovação baseiam-se em grande parte no conhecimento das qualidades essenciais dos materiais e processos produtivos. Não nego que alguns projetos desvinculados da experiência possam ampliar de modo inesperado as possibilidades da cerâmica, mas suas chances são remotas.
Gostaria de comentar dois textos, respectivamente de Adolf Loos e Anni Albers, protagonistas do movimento moderno, que abordam a vinculação entre o conhecimento tácito e a atividade projetual, assim como a contribuição dos artesanatos modernos à experimentação modernista e ao design. São eles Cerâmica, de Adolf Loos, e Construindo Tecidos, de Anni Albers, ambos publicados na seção Repertório de Agitprop.
Cerâmica, do arquiteto e designer Adolf Loos (1870-1933) foi publicado em 1904, quatro anos antes de seu célebre manifesto Ornamento e Crime. O modernismo então embrionário se empenhava em formular suas premissas ascéticas contra a longa crise ornamental gerada pela revolução industrial, que se manifestava na acumulação fantasmagórica de padrões decorativos nos artefatos e na arquitetura. Em sua batalha tenaz contra a proliferação decorativa, inclusive do art-nouveau, Loos publicou dezenas de artigos em revistas especializadas e jornais de grande circulação. Considerava sua atividade crítica tão importante quanto suas atividades como arquiteto e “instalador de ambientes” (expressão que ele preferia a decorador).
Para Loos os ornamentos eram intoleráveis estética e eticamente. Ele os considerava incompatíveis com as aspirações modernas de autonomia e liberdade, pois manifestavam formas variadas de submissão: submissão do artesão ao arquiteto e ao artista; submissão dos materiais aos desenhos realizados nas pranchetas ou escolhidos nos repertórios ornamentais; submissão das formas do presente aos padrões decorativos do passado.
Os ornamentos eram frequentemente realizados por artesãos experientes a partir de projetos concebidos por artistas e arquitetos, profissionais com mais prestígio social embora incapazes de encontrar as soluções adequadas aos materiais utilizados e às necessidades modernas de seus clientes. Segundo Loos, arquitetos e artistas costumavam pensar exclusivamente em termos gráficos, mergulhados nos repertórios ornamentais das bibliotecas das escolas de artes decorativas, mundo distante das oficinas artesanais. Os projetos eram autoritariamente impostos aos artesãos, sem que estes pudessem contribuir senão de modo mecânico para a sua realização.
No entanto, quando livres da influência de arquitetos e artistas os artesãos se mostravam capazes de criar uma linguagem moderna para os objetos. Embora não estivessem preocupados em criar móveis e objetos radicalmente novos, eram insuperáveis, segundo Loos, na criação de formas genuinamente modernas, simples e despojadas. O seu segredo estava no alto grau de intimidade com os materiais e processos produtivos. Uma linguagem não ornamental própria à modernidade, livre da interferência dos artistas decorativos, desenvolveu-se silenciosamente nas oficinas artesanais de vidro, cerâmica, marcenaria, joalheria etc..
Em Cerâmica, ele apresenta o ceramista como um “mestre-artesão” que sonha com as cores que só podem ser obtidas por meio da queima. Como aprendemos em outros de seus artigos, o “mestre-artesão” é também o marceneiro que realiza sob encomenda móveis funcionais de esmerada qualidade; o joalheiro que obtém o máximo efeito com o mínimo de ostentação material; o alfaiate que alcança por meio do corte uma elegância sóbria e cosmopolita. O artesão moderno é um profissional essencialmente urbano, experiente, capaz de dialogar de igual para igual com os seus clientes, senão de orientá-los em suas escolhas. As suas realizações surpreendentemente despojadas trouxeram para a trepidante vida moderna uma serenidade que, segundo Loos, é o seu perfeito complemento.
Em Construindo tecidos, de 1946, a tecelã e designer alemã Anni Albers abordou o tema da contribuição da experimentação artesanal ao design industrial. O modernismo começava então a se consolidar como estilo internacional. Albers questionou o enrijecimento da oposição entre design e artesanato, propondo que a experimentação das oficinas artesanais fosse reconhecida oficialmente como indispensável à evolução da indústria têxtil.
Formada pela Bauhaus, onde se especializou em tecelagem, Albers explorou em suas criações o princípio modernista segundo o qual a beleza têxtil moderna surge da exploração das qualidades essenciais às fibras e das variações estruturais da trama, em detrimento da estamparia e seus padrões decorativos.
Anni e o marido Josef Albers, pintor e teórico da cor, imigraram para os Estados Unidos em 1933, fugindo do crescente anti-semitismo alemão. Ambos se tornaram professores do Black Mountain College, então uma pequena escola de arte experimental que abria as portas no estado da Carolina do Norte. Albers utilizou em suas criações fios naturais como algodão, lã, linho e ráfia, e sintéticos, como celofane, fibra de vidro, rayon e lurex, explorando de modo pioneiro as possibilidades estéticas e construtivas da trama têxtil. Além de desenvolver projetos para a indústria, ela realizou artesanalmente peças únicas, dentre tecidos, tapeçarias e painéis.
Assim como diversos artistas modernistas em rompimento com a tradição européia, Albers buscou inspiração na cultura de povos distantes. Era apreciadora da arte latino-americana, especialmente da riquíssima tecelagem peruana, que conheceu em suas diversas viagens ao continente. Construindo Tecidos gira em torno da hipotética apreciação dos tecidos industriais modernos pelo tecelão peruano tradicional, cujas realizações Albers tanto admirava. Ela imagina o seu encantamento com a rapidez e o volume da produção moderna, assim como com a variedade das novas fibras e acabamentos. Mas supõe também a sua grande decepção com a aridez e a monotonia das tramas industriais, que constituem a própria essência da tecelagem.
Nos anos 1940, a experimentação com a trama, abandonada pela indústria em busca de funcionalidade e uniformidade, prosseguia apenas nas pequenas oficinas artesanais:
"Em seus teares, livres das imposições do projeto, esses tecelões estão trazendo de volta as qualidades que resultam da relação imediata com o material e o processo de trabalho. As suas tentativas novas e perspicazes para usar as qualidades superficiais da trama resultam numa nova escola de design têxtil. É, principalmente, graças ao seu trabalho que as texturas estão se tornando novamente objeto de interesse."
Albers conclui:
"A indústria deveria dispor de tempo livre para essas experiências de construção têxtil e, como solução prática mais fácil, incorporar artesãos como pesquisadores no seu esquema. Ao incluir a inventividade construtiva e imaginativa do tecelão, assim como o seu tear manual de vastas possibilidades, o progresso têxtil pode deixar de ser parcial para se tornar realmente equilibrado."
A sábia compreensão de Loos e Albers sobre a contribuição dos artesanatos ao movimento moderno e à evolução do design se contrapõe frontalmente à visão ainda dominante que insiste na irrelevância, anacronismo e ausência de inventividade da produção artesanal. Mas não devemos perder de vista que ambos se referiam aos ofícios artesanais cujo aprimoramento e inventividade exigem muitos anos de experiência, e não às atividades manuais fragmentadas e repetitivas, facilmente assimiláveis, e de alcance muito limitado.
No campo da cerâmica, a idéia da oficina artesanal como laboratório experimental do design foi encampada pelos países escandinavos, cuja indústria soube cultivar, de modo exemplar e pioneiro, a complementaridade entre artesanato e design. Nesses países que se industrializaram tardiamente em relação à Inglaterra, à França e à Alemanha, grandes fábricas de cerâmica e porcelana como Royal Copenhagen, Bing e Grondahl na Dinamarca; Gustavsberg e Rorstrand na Suécia, e Arabia na Finlândia, mantiveram ateliês para artistas ceramistas em suas instalações. O trabalho artístico obteve apoio regular e desfrutou da evolução tecnológica conquistada pela grande indústria. Em contrapartida, paralelamente ao desenvolvimento de sua obra, os ceramistas criaram regularmente projetos dirigidos à produção em série. A qualidade excepcional da cerâmica industrial e artesanal dos países nórdicos deve-se a esse diálogo muito fértil entre artesãos e a grande indústria.
Gostaria de finalizar mencionando os vasos e tigelas cinzentos da linha Maresia, criada pela ceramista brasileira Carina Ciscato, radicada em Londres, para a Habitat, cadeia internacional de móveis e objetos, reconhecida pelo design de qualidade e acessível. Estive na Inglaterra em março para realizar uma exposição numa galeria de arte e pude conhecer ao vivo as peças desenhadas pela Carina, que são realmente muito bonitas, ao mesmo tempo robustas e irregulares, no entanto diferentes de sua linguagem mais pessoal que explora a fluidez e a fragilidade da porcelana. Ela fez no próprio ateliê os protótipos dos vasos e tigelas Maresia que seguiram para a Tailândia onde são produzidos por uma fábrica de cerâmica de alta temperatura. A autoria do design está indicada na base de todas as peças.
Em entrevista para Agitprop, perguntei à Carina se é comum na Inglaterra, país com tradição artesanal moderna em cerâmica muito forte e respeitada, que os ceramistas sejam contratados como designers. A sua avaliação é que se trata de uma aproximação recente, pois a própria Habitat foi processada há alguns anos atrás pelo ceramista Edmund de Waal, por copiar indevidamente algumas de suas peças.
No mundo onde a produção industrial domina, é inevitável que os artesanatos se deixem influenciar e dialoguem com ela. A surpresa atual parece residir no fato de que, legitima ou ilegitimamente, a cerâmica artesanal contemporânea vem inspirando a produção industrial. São muitos os exemplos de formas e procedimentos até recentemente exclusivos da produção artesanal, que estão sendo assimilados ou simulados pela indústria, que precisa apresentar cada vez mais variedade, como condição essencial à sua sobrevivência.
As irregularidades de forma e acabamento tão desprezadas pelo modernismo funcionalista como evidência do caráter “regressivo” e “imaturo” dos artesanatos estão sendo paulatinamente incorporadas pela indústria. Do mesmo modo, alguns procedimentos técnicos instáveis que ameaçavam a uniformidade da produção. O interesse contemporâneo pelo “artesanal”, embora impreciso, torna a multiplicidade das realizações dos ceramistas potencialmente atraente para a indústria. As oficinas artesanais estariam se transformando em laboratório informal da indústria? É uma hipótese a ser investigada. Ela abrange tanto a aproximação entre designers e artesãos, quanto a assimilação da experimentação artística e artesanal pela indústria.
No entanto, o diálogo entre as oficinas artesanais e a indústria só tem chances de prosperar genuinamente se o campo próprio aos artesanatos modernos for devidamente reconhecido, valorizado e estimulado. Caso contrário, a idéia visionária de Anni Albers sobre as oficinas artesanais como laboratório tende a se realizar de modo perverso e predatório.
Palestra proferida pelo autor no 2º Congresso Nacional de Cerâmica, em Curitiba, novembro de 2008.
www.gilbertoeelizabeth.com.br