Ano: II Número: 18
ISSN: 1983-005X
Detalhar Busca

O rosto da forma quando jovem
Sonia Fontanezi

"Uma exposição de cartazes é tão importante quanto uma exposição de obras de arte únicas".


Essa frase de Décio Pignatari abriu o texto de apresentação da mostra de cartazes poloneses, suíços e norte-americanos, organizada em 1966 pelo Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo e pela Associação Brasileira de Desenho Industrial no parque Ibirapuera. Em 1991, com a exposição de cartazes construtivos das décadas de 40, 50  e 60, realizada no MAC, podemos dizer que uma exposição de obras de arte únicas é tão importante quanto uma exposição de cartazes.

A mostra reuniu 65 cartazes e obras únicas, refletindo a clareza do pensamento visual do seu curador, Alexandre Wollner, herdeiro brasileiro da Bauhaus em Ulm, onde atuou de 1954 a 1958. Esse pequeno mostruário da produção construtiva denuncia a postura dos produtores visuais das décadas de 40, 50 e 60: recomeçar cotidianamente o homem, a linguagem, a escritura, em diálogo com a produção internacional.

As origens internacionais

O termo arte concreta foi cunhado em 1920 por Theo van Doesburg para substituir a denominação arte abstrata. O construtivismo surge influenciado pela ciência e pela máquina. Vladimir Tatlin cria uma zona extremamente fértil ao negar a pintura de cavalete, trabalhando objetos feitos com materiais industriais, que poderiam se situar entre a pintura e a escultura. El Lissitzky já explora as possibilidades da geometria, buscando relações óticas, sem referência com o objeto representado. O manifesto realista de Gabo e Pevsner de 1920, enfatiza a arte como atividade criadora da consciência humana e declara o espaço como elemento concreto, após 3 anos da Revolução Russa.

A estrutura neoplasticista de Mondrian, definida por ele próprio na revista De Stijl, elege o vocabulário da linha reta vertical e horizontal e as cores puras - o amarelo, o azul e o vermelho, a propósito do seu quadro Pintura I de 1921. Em 1919, Walter Gropius é indicado por Henry Van de Velde para o cargo de diretor da Escola de Arte Industrial em Weimar. Ocorre então um momento única na história da cultura do século XX, na Bauhaus de Gropius: a integração da expressão plástica com a arquitetura, com o espaço.

Sem dúvida, as raízes do pensamento e da produção concreta-construtiva brasileira, aliadas ao construtivismo russo, evoluíram e floresceram a partir desse momento extremamente rico.

A importância dessa arte de grafar sinais torna-se superlativa quando o cartaz tem origens na produção construtiva. Do ponto de vista das funções da linguagem, o cartaz tem predominantemente função referencial. No caso específico dos cartazes reunidos no MAC de São Paulo, a aplicação do sistema ideográfico cria evidência de auto-organização e não apenas se coloca a serviço da função referencial, mesmo quando essa é a intenção.

Hoje, com os recursos gráficos disponíveis, observa-se através dessa mostra trabalhos que, além ou aquém da função referencial, são os próprios referentes - adequação  plena do termo resgate que dá nome a esta seção da Design. São formas silenciosas, indignadas, brancas, surdas, irrevogáveis, ausentes ou presentes, mas, sobretudo, formas vitoriosas da linguagem.

O domínio do instrumento

Com traços de procedimento oswaldiano, os construtivistas impuseram-se o direito e o dever da construção da linguagem, com tal precisão, que chegam a nos restituir uma zona de repouso. Hoje, em pleno movimento digital da visualidade impressa, todas as imagens são possíveis, porque tudo é informatizável, transformado em operação de dígitos. Todas as escolhas são possíveis e não há escolha, não há decisão. A decisão é serial. O repertório do produtor está em descompasso com o conjunto de alternativas da tecnologia, como técnica, instrumento e produção.

Um grande contraste com a década de 1950, quando Alexandre Wollner e Geraldo de Barros recortavam as letras com estilete, pois podiam dessa forma controlar o desenho da letra, o tamanho, os espaços, num movimento em que, nem sequer o uso da letraset era cotidiano e possível.

Outro exemplo de solução no emprego da letra em uma matriz geradora, ou arte-final é dado por Augusto de Campos, a respeito de sua série de poemas de 1953 - Poetamenos -  seus primeiros esboços eram datilografados  em letras coloridas, criando os planos de leitura indicados pela cor. O poeta desenhava as letras com as cores que o poema exigia, até que Maurício Nogueira Lima lhe informou que na Casa Franco, em São Paulo, havia papel carbono vermelho, azul, amarelo, verde ... Esses criadores são os mesmos homens que constroem os instrumentos.

No universo da produção gráfica cotidiana atual, tudo se passa como se estivéssemos exatamente no centro da profecia de Walter Benjamin, enquanto a quantidade ainda não atingiu a qualidade. Tudo se passa  " (...) Nesta escrita icônica, os poetas que, como nos primórdios (...) serão expertos da grafia, somente poderão colaborar se explorarem os domínios onde se perfaz sua construção (...) assumirão um papel em comparação com o qual todas as aspirações de rejuvenescimento da retórica parecerão dessuetos devaneios góticos" (Walter Benjamin 1926).

Hoje, a transição dessa fase, a curva que anuncia a explosão ainda está em seu estágio de cansaço de quantidade. No momento seguinte, provavelmente começarão as formas de linguagem pós-exaustão.

O método como caminho

Olhar para o conjunto das obras expostas no MAC proporciona um conforto visual sobre o qual todos os produtores visuais em formação deveriam ter o direito de repousar o seu modo de ver. Há em cada trabalho uma solidariedade interna, com leis próprias, e o modo de ser de cada elemento constitutivo depende da construção e das leis que a regem, estabelecendo contato direto com a nossa percepção da forma.

É curioso observar certas linhas de procedimento através da história da arte feita pela crítica, tomando por exemplo os termos abstração lírica e geométrica, representadas por Kandinsky e Max Bill, respectivamente. O trabalho dos artistas concretos pictóricos paulistas, muitas vezes ficaram à sombra do branco e preto de Max Bill e ao reflexo da cor de Alfredo Volpi. Alguns deles : Alberto Aliberti, Anatol Wladislaw, Antonio Maluf, Heinz Kuhn, Hermelindo Fiaminghi, Judith Lauand, Kazmer Fejer, Leopoldo Haar, Lothar Charoux, Luis Sacilloto, Maurício Nogueira Lima, Pedro Xisto.

A década de 1950 - momento especialmente paulista-internacional, em que não se duvidava da afirmação: "Não há forma subdesenvolvida" - ainda não é um reconhecimento nacional, em termos de afirmação cotidiana. Até hoje esse momento, muitas vezes não faz parte dos currículos de escolas de formação especializada. A produção concreta construtiva dos anos 1950 evidencia o percurso dos artistas concretos pictóricos, em estreita relação com os artistas concretos da palavra, questionando a sintaxe bidimensional, explodindo-a juntos, indicando rumos para a sintaxe tridimensional, apontando para o futuro.

Os pesquisadores desses ícones, como o próprio Alexandre Wollner, Otl Aicher, Geraldo de Barros, Max Bill, Almir Mavignier, Josef Albers e tantos outros que fazem parte da exposição no MAC, pesquisam sem nenhum segredo, no labirinto da descoberta, sem que os instrumentos e métodos tornem-se dificuldades para percorrer essa descoberta. O método é caminho, aquele que se faz ao caminhar.

O pintor concreto e mestre litógrafo Hermelindo Fiaminghi conta que nos anos 1950 o poeta Haroldo de Campos lhe passava um poema, para ser impresso com palavras espacializadas - um poema não alinhado na página, no suporte. Após encaminhar ao tipógrafo, o poema voltava alinhado linha por linha, letra por letra, palavra por palavra em texto corrido, da esquerda para a direita, com entrelinha a que o hábito de produção gráfica do tipógrafo estava acostumado. Fiaminghi ia então à tipografia e, aos olhos estranhados do homem, mostrava que a partir daquele momento, os grafemas, fonemas e palavras estavam livres no suporte e para o suporte. O tipógrafo, herdeiro da monotipia, através da produção concreta-construtiva, ampliou seu modo de percepção, com um modelo novo de construção espacial. As letras estavam livres do suporte, até para reafirmá-lo como elemento integrante da composição, na arte da reprodução e produção da matriz geradora.

Interpenetração de linguagens

Nesse percurso é que acontece um momento privilegiado da história da arte como sistema de linguagem : a pintura caminha em direção ao dígito, à letra como arquitetura e as letras caminham em direção à forma, reafirmando também a representação como forma de vida própria.

Augusto de Campos caminha do seu Ovonovelo de 1954, chegando em 1972 ao irredutível VivaVaia, enquanto Ronaldo Azeredo em 1957 faz com que o sol atravesse a se ponha na página, em seu Ruasol. Haroldo de Campos ensaia suas Galáxias, desde o Xadrez de estrelas e Décio Pignatari, desde os seus movimentos do Carrossel em 1950, aponta para  a sua definitiva Noosfera de 1973 - quando então liberaria os neurônios, as estrelas e as letras, do cérebro para o cosmos.

As coincidências formais do momento construtivo são de ordem estrutural. Elas se revelam na sintaxe de Otl Aicher (cuja obra Alexandre Wollner, tão apropriadamente, homenageia ao organizar essa mostra). Lothar Charoux, Judith Lauand e mesmo em Waldemar Cordeiro, singular em grande parte de sua obra. Obras criadas por Wollner em relação analógica com Albers, Mondrian e Malevich. A importância desse referente também é claramente observada na comunicação visual (design bidimensional) a partir dos anos 1950, assim como no desenho industrial (design tridimensional), para os quais apontaram os trabalhos de Almir Mavignier, Geraldo de Barros, Abraham Palatinik, assim como a tridimensionalidade em forma de escultura em Franz Weissmann, Lygia Clark, Amilcar de Castro, Hélio Oiticica.

A mostra é um testemunho de homenagens recíprocas, registradas na história da escritura. As obras devem ser vistas diretamente, sem a intermediação de qualquer tela, pois, ao olhar o conjunto, compreendemos que alguma coisa nos interessa profundamente quando as propriedades da linguagem desempenham um papel fundamental, quando um pensamento visual tornado concreto se apresenta diante de nós com a força equivalente à própria linguagem.

Esses criadores atingiram um momento extremamente fértil, através de sua produção, em ressonância internacional. Depois desse ponto - em que a estruturação da obra não representa, mas apresenta um edifício de ciência acabada - o que então se chamava de arte tornou-se sistema de produção de significado, portanto linguagem, apontando ainda hoje para o futuro.

A exposição Cartaz Construtivo no MAC foi apresentada de 31 de outubro de 1991 a 7 de março de 1992. Curadoria: Alexandre Wollner. Pesquisa Vera Novis. Trabalhos de Alexandre Wollner, Almir Mavignier, Antonio Maluf, Camille Graeser, Eduardo Ramirez Vilamizer, Franz Weissmann, Friedrich Vordemberge-Gildewart, Geraldo de Barros, Goebel Weyne, Hélio Oiticica, Hércules Barsotti, Hermelindo Fiaminghi, Ivan Serpa, Jean Arp, Josef Albers, Kohei Sugiura, Lothar Charoux, Lúcio Fontana, Luis Sacilotto, Lygia Clark, Lygia Pape, Mary Vieira, Max Bill, Maurício Nogueira Lima, Mendel&Oberer, Otl Aicher, Richard Paul Lohse, Robert Jacobsen, Victor Vasarely, Waldemar Cordeiro, Willys de Castro.


Sonia Fontanezi é artista gráfica e pesquisadora de linguagens intertextuais e novas tecnologias.

O artigo acima foi publicado na revista Design&Interiores n. 29 , 1992, ps 72 a 77.

 


Comentários

Envie um comentário

RETORNAR