Ano: VI Número: 56
ISSN: 1983-005X
Detalhar Busca





Narrativas sobre a casa

Ethel Leon

Em tempos de total abandono do espaço público, não é à toa que a casa ganhe tanta importância no mundo editorial.

Além das inúmeras revistas de decoração, dos blogs e sites sobre o assunto, os espaços de morar são objeto de escritas mais acadêmicas ou, ao menos, que têm essa ambição. É o caso do livro Tudo sobre a casa, de Anatxu Zabalbeascoa, editado pela Gustavo Gili.

O título é pretensioso. Mesmo os grandes historiadores quando elaboram suas narrativas, costumam reduzi-las a um período histórico determinado. Ou quando se aventuram em histórias mundiais, da Antiguidade a hoje, muitas vezes, acrescentam ao título os adjetivos ‘breve’ ou ‘resumido’.

Não é o caso da nossa autora, que escreve sobre os cômodos das moradias: banheiro cozinha, sala de jantar, dormitório, jardim e sala, remontando, em alguns casos, ao Egito, em outros a Grécia e Roma passeando pelo Renascimento italiano, pelas cortes francesas e pela Revolução Industrial britânica e europeia.

Como divertimento, o livro vale muito a pena. Ou como primeiro contato com a questão, para estudantes de arquitetura e design, já que o leque de curiosidades narradas deixa claro que a noção de ‘casa’ é histórica, mutável e complexa.

O grande problema é que a autora tenta alinhavar a narrativa a partir do conceito de ‘evolução’, anunciado na introdução: “Estas páginas tentam traçar a evolução de cada um dos cômodos que compreendem hoje uma casa”. Impossível, a partir dessa premissa, construir outra história que não a positivista, entendendo a história humana, apesar do reconhecimento de ‘retrocessos’ como uma escalada linear de progresso.

A partir dessa perspectiva muito se perde. Ao falar do banheiro, por exemplo, a autora deixa implícita que as operações realizadas nesse cômodo, tais como conhecemos hoje, pertencem a um mesmo universo. Embora, ao detalhar sua narrativa, falando dos banhos públicos, por exemplo, não confunda o banho e seus inúmeros cenários com o atual vaso sanitário.

Certas noções de hoje são lançadas ao passado, de maneira a formular anacronismos os mais diversos. Por exemplo, ela define a sala como lugar de lazer da família, como se sala, lazer e família fossem conceitos fixos, apesar de mencionar mais de uma vez o historiador Philippe Ariès autor da clássica História Social da criança e da família, em que justamente o que está em questão é a transformação das noções e práticas de família e de infância, da Idade Média à Moderna. A mesma coisa com a noção de privacidade, que, a rigor, só se desenvolve a partir da Ilustração.

Também merece reparo a perspectiva internacional da obra, traçada a partir de um imaginário renovado Tratado de Tordesilhas, que aceita o mundo colonial como depositário das grandes regras universais para a vida.

O arquiteto e professor João Sette Whitaker Ferreira prefacia o livro com bastante condescendência, e seu texto aponta uma série de questões para nós, brasileiros. Ele cita nosso grande estudioso da casa, que está muito distante de cometer anacronismos pueris, o professor Carlos Lemos, autor de grande número de estudos memoráveis e que sempre teve o rigor antropológico da observação. Muitos de seus livros estão esgotados, infelizmente, e mereceriam novas e belas publicações.

Por fim, um pequeno reparo, que talvez não se encontre no texto original em espanhol. Na página 113 está dito que “Fritz Hansen projetou para Arne Jacobsen móveis que são produzidos há mais de meia década”. É o contrário, Jacobsen era o designer e a Fritz Hansen a empresa. Mas esse é um mero detalhe. Quem dera fosse esse o grande problema dessa obra...

 


Comentários

Envie um comentário

RETORNAR