O novo incomoda. De tão verdadeiro que é, dizer isso já virou lugar-comum. Hoje em dia talvez a frase esteja um pouco esvaziada de sentido frente à avalanche de informações e “novidades” que nos estrangulam diariamente; de tantas que são, pouco interesse acabam despertando. Contudo, até pouco tempo atrás, quando a cadência das modas, manias e inovações não era tão frenética, a constatação de que o novo incomodava era inquestionável e irrefutável.
Não foi diferente quando, no alvorecer da década de 60, a revista O Cruzeiro lançou as “paginações bossa nova”. Muitos não gostaram da novidade e gritaram seus protestos. A grande maioria no mínimo achou tudo muito estranho e meio enigmático.
É fácil compreender, pois ser moderno na época significava bater frontalmente contra a tradição, qualquer que fosse; romper com tudo o que, de certa forma, já estava assentado e estabelecido como verdade e norma. Bem, depois de duas guerras mundiais arrasadoras e na iminência de uma nova guerra (agora nuclear); depois de tantas reviravoltas e relativismos científicos; depois de tantos avanços em todos os saberes e fazeres humanos e depois de tantas novas invenções e reviravoltas no meio artístico impossível não questionar e menosprezar antigas tradições.
E no meio jornalístico impresso da época a tradição mandava encher a página com o máximo possível de informações gráficas e textuais; a retórica e o estilo permitiam ao texto ser tão metafórico e rebuscado que valia qualquer recurso para se dizer algo, desde que se prolongando ao máximo e ocupando todo o espaço disponível. E a cor, bem... Há bem pouco tempo havia conquistado o mercado editorial brasileiro, de modo que quanto mais cores melhor. Era a estética do excesso a que todos se acostumaram. Em contrapartida, a estética da bossa nova era a favor do mínimo. Então, impossível não estranhar.
A mesma lei modernizante que vigorava em certos ramos das artes plásticas e da música popular também ditou regras para o jornalismo ilustrado: era preto no branco, comunicação imediata, o diagrama enxuto, o vazio expressivo, a palavra mínima, o menos que diz mais, o discurso direto, o texto telegráfico. Não importa que, na revista O Cruzeiro, o início da nova onda tenha sido um tanto tímido e localizado, pois como em toda grande revolução, o importante era que a idéia inicial já brotava, mesmo que em solo arenoso.
Além do mais, o Jornal do Brasil já havia feito a sua reforma por ordem de Amílcar de Castro, até com alguma fundamentação teórica do multifacetado Ferreira Gullar. A revista Senhor, inaugurada em 1959 e também feita por artistas plásticos implicados nas artes gráficas era o máximo em modernidade para a época - hoje cobiçada peça de colecionador, ainda surpreende pelo design gráfico de outro mundo. Manchete, que tinha poucos anos de circulação, acabara de investir pesado em seu parque gráfico, além de reformular suas regras de paginação. Esta revista, jovem e arrojada, era outro veículo da época inteiramente permeável às tendências da hora e ávida por novos profissionais. Em resumo, os artistas plásticos brasileiros, em especial aqueles do ramo construtivista, jamais tiveram tanto poder nas mãos e visibilidade como naquela época, mesmo que o público não tomasse consciência disso.
Não por acaso, a ordem era mesmo construir. JK deixava o comando, mas suas ordens permaneciam: Brasília, indústrias, urbanização, caminhões, tratores e estradas; auto-suficiência e progresso material (bem-estar e justiça social teriam de esperar a vez... E esperam até hoje!). Mas, afinal, as coisas aconteciam e eram palpáveis. O Brasil pouco a pouco deixava sua condição de colônia e inseria-se de igual para igual (ou quase) no congresso das nações. A linha de montagem era a revolução na indústria brasileira. Mas, como vimos, não só para a indústria. Seus preceitos de máxima rapidez, eficiência e economia de artifícios cativaram mais amplamente, servindo de inspiração também aos artistas e pessoal das comunicações, propaganda e marketing.
Lembremo-nos, por exemplo, dos rótulos e produtos bossa nova que surgiram na época, todos vinculados a tecnologia de ponta e ineditismo. A mensagem, qualquer que fosse sua natureza e objetivo, não podia mais ocupar-se com longas divagações e estruturas rebuscadas, pois a vida entrava em pulso cada vez mais acelerado e a concorrência também. Nesse contexto, bossa nova era sinal de atualidade, eficiência e antenas ligadas no espaço exterior, usando o mínimo de recursos expressivos.
O jornalista José Amádio, que desde 1950 dirigia a redação de O Cruzeiro, obviamente estava ligado nas movimentações de seu tempo. Bem articulado, com livre trânsito no meio artístico e em todas as mídias da época, ele soube aplicar e dirigir idéias diferentes, concretistas, na apresentação de suas reportagens. Contudo, para mantê-las vigorando ao longo de todo o ano de 1960, o jornalista-chefe precisou lidar com as críticas. Ao se defender, elaborou verdadeira cartilha de modernidade, educou seu leitor, ensinando-o a melhor maneira de ver e ler as novas reportagens.
Era, de fato, uma necessidade, pois já na primeira experiência bossa nova as caixas de texto reduziram-se drasticamente e as frases viram-se encurtadas ao essencial, fazendo ressaltar a quase pura visualidade do trabalho gráfico. José Amádio saiu-se bem, dizendo que a história não tinha lógica, “pois não há lógica na beleza; mas há verdade, porque tudo o que é belo é verdadeiro”. Já de início, como se vê, ele utilizou conceitos estranhos à função prioritariamente informativa do jornalismo.
Se, para a maioria, a função do jornalista era informar, a bossa nova havia chegado para mudar as coisas e permitir certas liberdades. Assim fazendo, a revista convidava o leitor a apreciar as diagramações em seu âmbito mais puramente estético. O que já era corriqueiro em peças de publicidade, que procuravam seduzir o leitor sensorialmente e de um só golpe, foi experimentado naquele novo formato e concepção de reportagem.
Em essência, enfocavam-se belas e jovens mulheres em ascensão no meio artístico, principalmente misses, vedetes e atrizes de cinema e teatro. As matérias eram, sob certa ótica, um tanto fúteis e auto-promocionais, vazias de conteúdo para um leitor mais tradicional e sisudo. Por tudo isso, à primeira vista não se sabia bem o que era aquilo: se eram reportagens em sentido estrito, propagandas comerciais ou nenhuma das duas. Reportagens corriqueiras não eram, pois não davam cobertura a importantes eventos político-sociais. Propagandas, tampouco, ainda que anunciassem uma artista em evidência, alavancando sua carreira. Para José Amádio, ao seu turno, era simplesmente um rompimento de fronteiras: arte e recentes teorias cognitivas a serviço das mídias impressas; busca de novas formas de expressão.
“A escultura, a pintura, a arquitetura, a música, a literatura – todas as artes evoluíram. Chegou a nossa vez. As reportagens regidas pela bossa-nova, que estamos divulgando, talvez espantem um pouco, mas se os leitores examinarem melhor verão que os elementos essenciais são os mesmos: a pessoa, suas fotografias e o texto explicativo. Só mudou a forma de apresentação. Entendido?”
E mudou bastante, a ponto de o jornalista-chefe ter de se explicar. E o fez evitando adentrar questões estéticas mais aprofundadas. O leitor médio certamente não estaria muito interessado nisso. O Cruzeiro era uma revista magazine convencional, já de longa história e com vários recordes de público, mas estava em período de crise e franca decadência por causa da concorrência crescente na imprensa escrita e forte apelo da televisão. Seria melhor não complicar muito as coisas e torcer para tudo dar certo.
Apesar das críticas, a nova concepção jornalística fixou-se como marco histórico dentro da revista, com direito a várias auto-referências, tais como essas frases publicadas em editorial de abril de 1960 a respeito das primeiras reportagens inovadoras: “faltou lógica, mas sobrou sucesso. Era o lançamento da bossa-nova no jornalismo, movimento que muitos criticam, mas todos comentam”.
Dois meses depois, houve até uma grande retrospectiva englobando todas as experiências visuais até então publicadas. Para tanto, igualmente empregaram-se recursos como alto-contraste, planos uniformes, esquematização e uso de caixas de texto incomuns. A matéria se estruturou como verdadeiro compêndio explicativo da bossa nova, dividida em seis partes bem definidas, cada uma com históricos e refinadas conceituações. Em suma, era uma aula de modernidade muito abrangente, entrelaçando campos do saber os mais diversos, primorosa na explicação do que seria aquele momento tão repleto de novas bossas.
Com o advento das reportagens bossa nova, jornalistas, fotógrafos e diagramadores ganharam autonomia e liberdade para criar, priorizando a pesquisa formal. Assim como os rapazes da música já estavam fazendo. Dos recursos utilizados, vê-se: elaborada e equilibrada integração texto-imagem; iconicidade conferida à letra impressa; “palavras em liberdade” de matriz futurista; bidimensionalidade de matriz construtivista; ampliação dos sentidos de leitura; textos “telegráficos”; tipografia inventiva; inserção da figura humana em ambientes criados graficamente; recortes e montagens fotográficas radicais; generoso emprego de espaços vazios; alto-contraste e efeito positivo-negativo.
Apesar de esparsas e distribuídas ao longo de 1960, as radicais invenções do período bossa nova deixaram suas marcas nos anos seguintes e espraiaram pela revista como um todo, até seu fechamento em 1975, refletindo-se num visual mais despojado e camarada. Finalmente o leitor podia respirar, folheando páginas bem menos poluídas visualmente.
Hoje resta-nos lembrar com saudosismo aqueles tempos heróicos em que as novidades publicadas numa revista eram notadas e provocavam reações apaixonadas nas pessoas. Eram, de fato, dias de síntese em que várias linguagens modernistas confluíam todas juntas sob a égide da bossa nova. Para muitos, foi quando o Brasil passou a existir de fato. Para os mais radicais, foi o único momento da história brasileira em que pudemos ser absolutamente modernos.
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José Estevam Gava é professor universitário e autor dos livros A linguagem harmônica da bossa nova (Unesp, 2002) e Momento bossa nova (Annablume; Fapesp, 2006)