Moradias Transitórias
Nicola Goretti
A transitoriedade é um estado que nos define e acompanha, delimitada por o lapso temporal, e o tempo é a medida que utilizamos para determinar nossa permanência. Ambos formulam a equação da existência. Somos seres barrados pela consciência e pelos sentimentos, em que o instinto de sobrevivência conjuga-se, desde o primeiro momento de vida, com a transitoriedade do corpo, do pensamento, dos sentidos.
A questão do habitat nos assentamentos urbanos forma parte de um repertório de exigências elementares para a sobrevivência e, conseqüentemente, para o surgimento de novas sociedades. Esses núcleos habitáveis expressam desejos e sonhos de seus integrantes, permitindo a convivência e o encontro entre similares ao compartilhar espaços, objetos e desejos.
As muralhas e as pontes levadiças que protegiam as cidades antigas desapareceram. Essas construções espetaculares, que permitiam o resguardo dos núcleos urbanos desde a cultura mesopotâmia até as últimas cidades medievais, incentivaram, na realidade, a criação e proliferação das mesmas. Os inimigos permaneciam separados pelos grandes muros construídos ou pelos acidentes geográficos que funcionavam como limites territoriais. As sociedades nômades procuravam locais inexplorados, inicialmente, e assentamentos urbanos constituídos como segunda alternativa.
Na atualidade, é improvável alcançar espaços com uma configuração ‘natural’ e originária. São poucas as florestas intocadas, ou raras as selvas inexploradas. Fundar um lugar, ocupar, plantar, construir, projetar são seqüências amadoras que pertencem ao passado. Possivelmente a mais recente experiência é Brasília. Um ‘não lugar’ transformado em ‘lugar’ a partir da medida do homem. Um espaço racional onde seria possível um novo encontro entre as pessoas. Um espaço ‘moderno’.
Os mecanismos para tentar evadir-se do sentimento de transitoriedade se repetem em todos os casos. Eram e continuam sendo múltiplos e complexos, projetados no presente por meio da busca contínua de lugares disponíveis, espaços construídos e antropomorfizados.
Essa lacerante realidade está moldada pelo fenômeno perverso das migrações. Existem aqueles locais que originam movimentos programados de massas de pessoas, as migrações controladas. Existem outras, de maior violência e impacto social, provocadas por uma questão que define nossa modernidade: as fugas dos habitantes dos países ‘pobres’ em direção aos ‘ricos’. Uma realidade que é ainda mais atormentada pela sintonia cruel e ambígua dos controles fronteiriços.
Os temas referentes à habitação passam a ser a base de inúmeros estudos formais e mentais. Casa, ninho, caverna, como identificação material e simbólica das espécies vivas. Microarquiteturas como refúgios de intensidade primária, asilos para seres que se comunicam por meio de códigos mutantes e a aparição de novas ordens familiares organizadas fora das relações formais de parentesco.
Estas são algumas das questões que MORADIAS TRANSITÓRIAS pretende indagar. Fugir do mundo prevalentemente arquitetônico e tecnológico para entrar na construção artesanal e mecânica, nos universos dos dejetos e dos subprodutos industriais que a sociedade moderna cria e destrói. Pensar arquiteturas orgânicas, mutantes, flexíveis e lógicas, que permitam a mobilidade migratória das pessoas e a incorporação de seus refúgios dentro do tecido polimorfo das cidades, invadindo e transformando os espaços de coexistência.
Esses elementos de natureza lábil e dinâmica outorgam uma nova composição urbana e comunitária, colocando em risco os espaços presumidamente protegidos que surgem dia após dia. São zonas ‘imaculadas’ com edifícios luxuosos e jardins bem cuidados que confinam com vastos e miseráveis territórios sem qualidade de vida. São subúrbios indefinidos que fundam condomínios fechados e eletrificados como prisões, onde o mote de ‘seguros’ estimula os novos postulados contemporâneos de índole obscena e segregacionista.
Por um lado a cidade visível e ostentosa, governada por milhões de habitantes que tentam se comunicar com dificuldades. O crescimento populacional não garante a união comunitária, colocando-os diante da experimentação exasperante da solidão, ainda que acompanhados. Por outro, a cidade invisível, transitória e ambulante, um território impregnado de novas e pequenas arquiteturas sobrepostas e transitórias, esparramadas nos espaços livres que a cidade habilita, por obrigação e por distração.
O fato é que, apoiados em processos de negação recorrente, não conseguimos reter em nossas retinas essa realidade em transformação, percebendo-a unicamente de forma lateral e incompleta, como a visão distorcida provocada pelo uso de viseiras em cavalos e em outros animais de carga. As obras aqui apresentadas contam parte de nossa realidade, antecipando um futuro globalizado formado por guetos protegidos e espaços sem controle.
As moradas transitórias continuarão ocupando os interstícios do tecido urbano, continuarão fundando setores de cidades e definindo novas formas de viver porque, na realidade, são prolongações de nós mesmos, de nossos corpos e de nossos pensamentos.
Zygmunt Bauman define o fenômeno do habitat transitório como o verdadeiro gerador das cidades do futuro. Acrescenta, em tom otimista, que o único modo que teremos para compartilhar nossos espaços íntimos ? aqueles referentes ao afeto e ao amor ? será construindo os espaços cotidianos de convivência e de proteção, mesmo que transitórios e vulneráveis.
Uma questão irremediável que nos atravessa desde sempre.
As Moradias
Emiliano Godoy projeta ‘Dirigible’, uma casa de ‘Tarzan’, moderna e poliédrica, dependurada em qualquer lugar que poderia ser natural ou artificial. Uma série de triângulos de madeira, encadeados, forma o espaço suspenso, recusando a possibilidade da vida na cota ‘zero’. Uma escada de corda liga os dois âmbitos. Abaixo/acima. Inferior/posterior. Inferno/paraíso.
A obra de Nora Correas nos traz a condição do habitante ‘sem teto’ por meio de imagens que refletem sobre a população deslocada e a perda dos seus direitos. ‘Sin Destino’ mostra a conexão louca entre o poder econômico, a violência da pobreza e o nomadismo. Seis balsas cruzam um mar de cor marrom. Sobre elas seis sobreviventes dentro de sacos de dormir. Os sacos, estampados com imagens de moedas e notas de possíveis países de origem ou destino, marcam a tragédia. Sem porto seguro, navegam.
Domènec brinca com a noção da repetição. Emula, em pequena escala, o desejo da morada, ao traduzir uma miniatura de um edifício de Brasília, um bloco da Superquadra 108 Sul. A escala é a humana. A fachada se ‘abre-se’ possibilitando a entrada de um corpo, para dormir, descansar ou beber, num espaço mínimo de 1,80m de comprimento. Saudade e transposição convertem um edifício em ‘Superquadra casa-armário’.
Gustavo Diéguez e Lucas Gilardi são arquitetos, fundadores do estúdio a77. A temática funcionalista toma conta da obra em ‘Plug Out Unit Brasil’, uma unidade habitável, reversível e maleável. Uma consciência de mutação permanente outorga poesia e ingenuidade ao trabalho da dupla, estimulando a transformação de determinados espaços por outros. Quartos de dormir viram cozinhas e pequenas salas em lugares externos, de acordo com o deslocamento simples de algumas peças e mecanismos. Buscar os lugares e os materiais em desuso ou recuperar as caixas que continham outros objetos é o que importa.
Jum Nakao e Pop Carvalho traduzem um mundo imaginário de possíveis costuras, dando forma a objetos e guarida a corpos. Costuras, uma depois da outra, milhares de costuras. Os retalhos de tecidos coloridos fazem esse proceder, como uma operação similar a do pensamento e das idéias, dos esquecimentos e dos reencontros. Corta-se, une-se e desune-se, costura-se e descostura-se. ‘Paisagem urbana’ é uma carroça para catar lixo, uma vestimenta envolvente, uma capucha gigante que esconde e leva o que encontra pelo caminho, como as lembranças e os pensamentos.
Ana Miguel intensifica um dos cinco sentidos, anulando momentaneamente os outros sentidos em sua obra ‘Rosa morada (máquina de audiotransporte 2)’. As palavras são ‘o único que sentimos’. As palavras nos invadem e nos completam, substituindo o tato, a visão e o olfato. Elas nos transportam a mundos de segurança e de perigo, mundos impossíveis onde encontraremos felicidade e desespero. Um casco cobrirá completamente nosso rosto, unido a uma mochila que colocaremos nas costas. Ambos estarão conectados ao ‘fio da vida’, um cabo por onde a voz é transportada. Será uma casa que levaremos nas costas.
Ralph Gehre recupera seus livros de infância. A obra Adulterações objetivas - Tomos I a XVIII transforma 18 páginas de 18 tomos de Tesouros da Juventude. Uma página por tomo é escolhida para falar sobre a transitoriedade, a proteção, o amor e a perda. Com traço mágico e belo, esconde e transforma as imagens, as letras, as frases. São cortes de bisturi que extirpam, com força vetorial ou com pinceladas cegas, o que se deseja ocultar ou transformar, e consertam o que se deseja lembrar ou recuperar. O papel traduz esse impulsivo proceder, trazendo de forma reiterada o eco das palavras escritas e os sonhos de juventude.
Mana Bernardes e Quito repetem insistentemente a silhueta humana, em escalas reduzidas, por meio da utilização do papel. Trinta e seis pares de silhuetas (corpo cheio, corpo vazio) são reproduzidos em sua obra ‘No papel não caberia o que no corpo já não cabia, na poesia caberá!’, formulando a idéia de que o corpo é, na realidade, nossa morada, um espaço poético em construção permanente. As lâminas em papel traduzem o ritmo da seqüência vital, marcando um caminho ziguezagueante e peremptório. Em cada superfície (em cada corpo), as palavras se transformam em poesia, desenhando uma alma invisível que atravessa a obra.
Lucy e Jorge Orta expõem um trabalho com características ‘situacionais’, pois não se trata de uma arte que possa ser encontrada somente em museus. Ela é extraída (e mostrada) nos mesmos lugares onde nasce e se transforma: a rua. A falta de um lugar onde viver e a conseqüente busca por um território próprio e autônomo constituem o primeiro elemento que estes artistas introduzem em seu trabalho. Sendo o corpo humano o verdadeiro ‘alvo’ em cada combate, será o primeiro a ser defendido e preservado. Urban Life Guard – Ambulatory Sleeper, Connector Mobile Village I e Body Architecture – Foyer D são indumentárias ambulantes para o habitat errático, armaduras leves que funcionam como um kit de sobrevivência, aderidas ao corpo como uma segunda pele. A palavra que está impressa sobre a superfície do tecido é o elemento de ‘nexo’, de comunicação direta e visível, similar às tatuagens que gravamos na superfície de nossos corpos. São palavras de protesto e de reivindicação, tentando superar a simples condição de enunciado para se transformar em manifesto. Vestindo-os, homens e mulheres sem teto perderão sua infame condição de ‘inexistência’ que a sociedade lhes outorga, tornando-os mais visíveis e menos transparentes.
Nicola Goretti é o curador da exposição Moradias Transitórias.
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