Ano: II Número: 20
ISSN: 1983-005X
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A Ópera do Malandro em análise semiótica
André Novaes de Rezende

Por volta da década de 1920, os sambistas do Estácio e de outros grupos do Rio de Janeiro foram os primeiros a, orgulhosamente, se denominarem “malandros”. Nos anos de ouro da malandragem, na década de 1930, a visualidade do malandro englobava alguns elementos característicos, tais como a camisa listrada, o lenço no pescoço, o tamanco e a navalha.

Alguns dos signos visuais do malandro dos anos 1930 permanecem no malandro dos anos 1940, outros não. O chapéu de palha é símbolo da malandragem deste período, como diz o samba “Risoleta” composto por Raul Marques e Moacir Bernardino em 1937. Por outro lado, o “Lenço no Pescoço”, do samba de Wilson Batista, não faz mais parte do vestuário do “malandro-regenerado” dos anos 1940. No seu lugar aparece a gravata. O tamanco dá lugar aos pés calçados. A camisa listrada, embora ainda permaneça em uso, com frequência compõe o figurino juntamente com um terno branco.

O terno branco é um signo do contraste. Em primeiro lugar, como o malandro surge dentro dos grupos negro-proletários (MATOS, C. 1982 p.41), existe o contraste do branco da roupa com o tom da pele escura. Alem disso, existe o contraste entre a “brancura” e a “sujeira”, o que cria um choque qualitativo entre a imagem da realidade sócio-cultural e a imagem idealizada pelo malandro. Em um ambiente urbano popular, a aparência “exageradamente bem-apessoada” denuncia a “fantasia de malandro”. A fusão destas duas qualidades visuais (a brancura e a sujeira) são coerentes com a realidade do malandro, enquanto habitante de uma fronteira social que divide a burguesia da marginalidade.

O disco A Ópera do Malandro, como um todo, é resultado do trabalho de dois grandes especialistas do imaginário da música popular brasileira. Chico Buarque de Holanda é responsável pela letra e música, enquanto Elifas Andreato é o responsável pelo design e pelo discurso visual.

É importante salientar que este “disco”, na verdade, é um álbum duplo. É composto por dois discos que são condicionados dentro de dois envelopes que se unem de forma articulada por uma lombada.

Isso possibilitou que Elifas Andreato explorasse o dobro da superfície que o envelope de um LP convencional apresenta. Assim sendo, a disposição da imagem convida o usuário a abrir o álbum e explorá-lo visualmente.

Dentro desta análise do disco enquanto objeto, podemos dizer que a noção de “dentro e fora” também faz parte do discurso visual e é muito bem explorada nesta relação do exterior e interior do álbum duplo. Aliás, esta relação de dualidade entre “dentro e fora” se repete diversas vezes nesta capa também no que diz respeito ao conteúdo semiótico de suas imagens.

Como podemos observar, o exterior do álbum carrega consigo uma imagem do ambiente urbano, que pode ser um banco de uma estação de trem, ou seja, um espaço público. No interior do álbum, podemos ver a imagem de um local privativo, possivelmente da morada do malandro.

Deste modo, fica evidente que as relações entre as imagens e as propriedades funcionais do objeto são desenvolvidas aqui de maneira a enriquecer as relações entre forma e conteúdo. Isso ocorre a partir do ponto em que se estrutura aqui uma unidade muito coerente entre os diversos signos que coexistem neste disco.

As características sígnicas das imagens desta capa, no entanto, também possuem suas relações internas. Com um mínimo de atenção, podemos afirmar tranqüilamente que o ponto central do discurso visual desta composição é o terno branco. Este terno branco também faz parte desta dualidade entre “dentro e fora” e é o agente principal de uma relação comparativa que ocorre em três momentos interligados. Estes três momentos lidam com propriedades sígnicas diferentes, mas contribuem para um significado comum.

1 - O terno branco em relação ao cenário.

É fundamental salientar neste ponto que, ainda que esta capa apresente uma imagem fotográfica, isso não ocorre de fato, pois também a fotografia está sendo representada.
Desde a segunda metade do século XX, a grande maioria das capas de disco coloridas tem sido produzidas por um processo industrial chamado Offset, em que quatro retículas de pontos coloridos são impressas e sobrepostas em uma determinada angulação para que se crie a aparência de uma imagem contínua. Elifas Andreato, ao comentar sobre esta capa de disco, explica que inseriu uma quinta cor no processo de impressão. Desta forma, o branco (que faz parte da cor do papel que receberá a impressão) ficaria mais destacado em relação às cores dos outros elementos ali representados. É importante notar que este não foi um recurso fotográfico (de responsabilidade do fotógrafo), mas sim um recurso do artista que tem o domínio sobre a sua obra como um todo. Embora Elifas fosse um artista plástico e exímio desenhista, aplicou sua arte aqui na forma de uma alteração num processo de impressão industrial. O realce da brancura do terno em relação às cores do cenário nos obriga também a considerar o significado das imagens que compõe este cenário.

2 - O terno branco em relação ao álbum (enquanto objeto).

Na imagem do exterior do álbum o cenário é um. Na imagem do interior, o cenário é outro. Isto está ligado com o disco enquanto objeto e também com esta dualidade entre “dentro e fora” que se apropria de sua fisicalidade. Tanto na parte externa como na parte interna do álbum, o terno apresenta a mesma brancura. Isso ocorre tanto na imagem que estaria representando o banco da estação de trem, como na outra, que representa a moradia do malandro. A brancura é a mesma, mas o terno é representado de maneiras diferentes em cada uma das cenas representadas. O modo como ele é representado em cada cena está ligado não apenas ao aspecto físico do álbum (“dentro e fora”), mas também às características sígnicas do próprio malandro.

3 - O terno branco em relação ao malandro.

Quando se adiciona a qualidade da brancura ao contexto desta capa, este malandro passa a ter no terno branco sua maior marca. Basta notar que, dentro do quarto sujo e bagunçado, o terno branco possui um lugar especial. Podemos dizer que o terno branco é a marca da busca incondicional pela elegância, marca do esmero e da boa aparência.  Esta busca, como foi visto anteriormente, é uma característica histórica e marcante deste personagem.

O malandro é representado dormindo. O mais interessante é que isso se repete tanto na parte externa do álbum como na parte interna. Mais interessante ainda é notar que esta é a única representação figurativa que se repete intencionalmente na relação entre “dentro e fora”. O malandro que dorme na cama de seu quarto é o mesmo que dorme no banco do trem. O fato de ele ser representado dormindo contribui para um desfecho semiótico deste discurso visual. Considerando que esta seja a única repetição intencional de elementos sígnicos, com exceção do aspecto qualitativo da brancura do terno, isso nos leva a concluir que aqui talvez o homem não seja tão importante quanto o próprio terno branco que ele veste.

Vale notar que o malandro que aparece “por trás” do terno branco também recebeu a quinta camada de cor durante a impressão, para que ficasse apagando em relação à brancura do terno. Sem o terno branco, o malandro é apenas parte do cenário.

Podemos concluir que o disco é um extraordinário “portador de linguagem”. Além das convenções que determinam o seu uso (a maneira como o sentido do tato e da visão devem se relacionar com seu aspecto físico), nele também habitam a linguagem musical, verbal e visual.

Estas linguagens estão sempre relacionadas com algum contexto cultural. Este contexto tem suas convenções internas, o que acaba por caracterizar cada uma destas linguagens de uma maneira muito específica.

Voltando o olhar sobre o contexto cultural brasileiro, podemos notar que, antes que existisse o samba gravado num disco de samba, existia o samba nos terreiros, ruas e casas de bairros populares. Antes que existisse qualquer manifestação visual do samba nas capas de disco, estas manifestações existiam no aspecto visual das casas e ruas, na indumentária das tias baianas, nos trajes dos sambistas, nas formas dos instrumentos musicais etc.

O disco A Ópera do Malandro traz consigo não só aspectos convencionais relativos às linguagens musicais e visuais, mas traz consigo aspectos convencionais da própria constituição sócio-cultural do malandro. Trata-se não só de um importante documento visual da indústria gráfica brasileira, mas também de um documento que conserva a imagem de uma figura social típica de nossa cultura.

Referências bibliográficas:

ANDREATO, Elifas. Elifas Andreato: Impressões. 1.ed. São Paulo: Globo, 1996. p.180.

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Rocco, 1997, 239p.

FRANCESCHI, Humberto. M. A casa Edison e seu tempo. 1.ed. Rio de Janeiro: Sarapuí, 2002. 312p.

FROTA, Wander N. Auxílio luxuoso: Samba símbolo nacional, geração Noel Rosa e indústria cultural. 1.ed. São Paulo: Annablume, 2003. 252p.

LAURENTIZ, Silvia R. F. Contribuições dos meios de produção à linguagem visual: uma análise sintática pelos princípios semióticos – Campinas. 1994. (Dissertação – Mestrado - Universidade Estadual de Campinas).

LAUS, Egeu. A capa de disco no Brasil: os primeiros anos. ARCOS. Rio de Janeiro, n. único (1), 136: 102-126, 1998.

_____________. Os 50 anos das capas de disco no Brasil. Veredas, 71: 24-28, 2001.
MATOS, Claudia. Acertei no milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 222p.

NIEMEYER, Lucy. Elementos de semiótica aplicados ao design. 1.ed. Rio de Janeiro: 2AB, 2004. 76p.

PARANHOS, Adalberto. Ode à malandragem. Nossa História, 4: 16-22, 2004.

SALVADORI, Maria A. B. Capoeiras e malandros: pedaços de uma sonora tradição popular (1890-1950) – Campinas. 1990. (Dissertação – Mestrado - Universidade Estadual de Campinas). v.2.

SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. 1.ed. São Paulo: Iluminuras, 2001. 431p.


André Novaes de Rezende é Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pelo Mackenzie e doutorando do programa de Artes Visuais da Unicamp. É professor do curso de Design da Facamp.

 


Comentários

Robinson Brunetto
22/08/2009

André. Muito interessante essa análise semiótica para este ensaio. Nela é desenvolvido um discurso que nos mostra como o terno branco se tornou o símbolo do malandro e qual o significado dele, cujo foco central é a dualidade de sua imagem. Também gostaria de estender este comentário ao que foi explicado sobre utilização de uma 5ª camada de cor na imagem. O interessante nisso é a utilização de um recurso de tratamentos de imagens para acentuar a imagem do terno branco enquanto símbolo do malandro. Hoje certamente a técnica não seria a mesma devido ao avanço da tecnologia e, talvez nem conseguiríamos o mesmo resultado com programas de tratamento de imagens. O que quero deixar claro aqui é não importa qual técnica foi utilizada e se uma é pior ou melhor que a outra, mas sim a utilização de uma técnica para acentuar a percepção em relação a um objeto enquanto símbolo.

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