Ano: II Número: 20
ISSN: 1983-005X
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Odiléa Toscano: do desenho ao design
Sara Goldchmit

Mais conhecida pelo design ambiental dos painéis e murais das estações Paraíso, Jabaquara, Santana e São Bento do metrô de São Paulo – ou por ter sido professora de programação visual na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo durante muitos anos – Odiléa Toscano já havia ocupado uma posição discreta, porém marcante, no panorama do design gráfico brasileiro nos anos 1960.

No conjunto da sua obra de design impresso, destaca-se a programação visual das capas da coleção Jovens do mundo todo. A série de literatura infanto-juvenil publicada pela Editora Brasiliense rendeu-lhe um prêmio na 1ª Bienal Internacional do Livro e das Artes Gráficas de São Paulo, em 1961, e divulgação internacional em revistas especializadas. Entre os trabalhos realizados no final dos anos 1950 e na década de 1960, sobressaem ilustrações para o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo e o design de algumas capas para a revista Visão. Nos anos 1970, foram destaque as ilustrações para os fascículos Nossas crianças, da Editora Abril, para a revista Bondinho e para a coleção de livros didáticos Criatividade em língua portuguesa.
 
Odiléa teve um desenho publicado pela primeira vez no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, em 1957. Ao ver o resultado das primeiras ilustrações impressas, percebeu que os clichês de metal renderiam melhor com desenhos de traços mais grossos, para que a impressão saísse mais escura e mais precisa. Assim, passou a desenhar com mais rigor, muitas vezes suprimindo a linha e construindo planos a partir de tramas feitas com bico-de-pena e nanquim. Os condicionantes da reprodução gráfica industrial encaminharam o seu gesto para a execução de um traço firme, paradoxalmente delicado, que a acompanhou dali em diante como a sua marca registrada. As tramas e texturas foram incorporadas como elementos gráficos que resolvem, em um só tempo, a caracterização das superfícies e o problema da qualidade do desenho impresso.

O interesse particular na série de ilustrações realizadas para O Estado de S. Paulo reside no fato de que, no jornal, Odiléa esteve mais livre para buscar uma subjetividade poética do que em outros trabalhos de cunho mais comercial. Os personagens, o espaço íntimo da casa e os objetos que habitam o cotidiano – observados sob um olhar crítico e por vezes irônico – afirmaram-se como temas fundamentais desde o início da sua produção.

O design da coleção Jovens do mundo todo revela, ao longo das quase quarenta capas produzidas, a maioria dos critérios e processos criativos de Odiléa. Um primeiro aspecto a ser mencionado é o comprometimento em colocar no desenho certos vínculos que localizam o assunto em determinado lugar e determinado tempo. Para tanto, a pesquisa em fontes visuais sobre os mais variados temas e períodos históricos incorporou-se como parte de seus procedimentos. O resultado que se vê, especialmente nas capas da coleção Jovens do mundo todo, é um desenho que fala de outros desenhos, lembrando que o momento presente decorre sempre de um passado, e que os homens estão interligados pela história das sociedades.

Verifica-se também o empenho em considerar a peça gráfica na sua totalidade. Os livros da coleção Jovens do Mundo Todo são entendidos como objetos tridimensionais e as capas, portanto, tratadas como um plano horizontal contínuo. A representação dos espaços reais no papel é para Odiléa um desafio constante. Ela não segue as leis da perspectiva clássica, mas obedece, antes de tudo, às necessidades gráficas da composição.

Ainda com relação à sintaxe, Odiléa trabalha principalmente utilizando cores chapadas para construir os planos espaciais, e emprega o traço preto firme nos elementos que escolhe detalhar. O corte é também uma característica marcante de sua linguagem, seja para a construção de planos de cor, seja no detalhamento minucioso das tramas recortadas em papéis coloridos. É importante ressaltar que a representação de estampas, tramas e texturas não é apenas um recurso recorrente de linguagem, mas fundante de todo o seu raciocínio gráfico. Essa aparente ornamentação não comparece gratuitamente; é veículo para a comunicação eficaz da idéia, de maneira sedutora, inclusive.

Nas capas da revista Visão, também é possível identificar a problematização do campo  da capa, onde o uso da sangria é colocado em evidência. A cena representada parece ser um recorte retangular da realidade – visível ou imaginária – que envolve o assunto em pauta. Com um design ancorado na ilustração, Odiléa utiliza a figura para estruturar o espaço da capa.

A modernização dos processos gráficos no fim da década de 1960 e nos anos 1970, assim como a ampliação e diversificação da oferta de materiais para layout conduziram a linguagem de Odiléa a novos patamares de expressividade. Como se vê nas ilustrações para a revista Bondinho, os novos materiais como letraset, filmes coloridos transparentes, canetas hidrográficas etc., deram a resposta exata para o que ela estava buscando, pois o recorte e a colagem manual – recursos que sempre fizeram parte de seu repertório – passam então a contar com maiores possibilidades de cores, novas texturas e transparências. Em consonância com a linha informal da Bondinho, Odiléa pode assumir o bom humor de maneira mais irreverente do que nos demais trabalhos. Além disso, o aspecto intuitivo das colagens foi deixado mais evidente, mostrando que, muitas vezes, é no jogo do próprio fazer que se descobre como fazer.

Nos fascículos Nossas Crianças, a transmissão de conhecimento por meio do desenho deveria ser, antes de mais nada, didática e cientificamente correta. Mais uma vez nota-se uma atitute inevitavelmente comprometida com os temas que, nesse caso, giravam em torno dos problemas infantis de saúde. Desfrutando de certa liberdade dentro das restrições dadas pelos assuntos, Odiléa conseguiu enxergar o potencial gráfico que cada matéria poderia propiciar. O traço em nanquim continuou a ser empregado nos contornos das figu-ras, assim como as tramas geradas pelo seu emaranhado. Mas, com a utilização dos novos materiais disponíveis mencionados anteriormente, em especial os filmes transparentes coloridos, as ilustrações ganham maior variedade tátil e profundidade.

Para a elucidação de aspectos da doença ou de sua cura, o caráter narrativo dos desenhos é comum, assim como o uso de setas e palavras – como ocorre habitualmente nos infográficos. De maneira semelhante à coleção Jovens do Mundo Todo, em Nossas Crianças verifica-se, novamente, a força das escolhas cromáticas precisas, que auxiliam não apenas a comunicação, mas também a construção do espaço gráfico de maneira muito coerente. Nesses fascículos, é impossível não se surpreender pelo vigor do desenho sintético, claro e repleto de significados, que cresce e estrutura a página – notável também no design dos livros didáticos da série Criatividade em língua portuguesa.

Vê-se que, desde cedo, o desenho de Odiléa esteve condicionado pelos meios industriais de reprodução gráfica e pelos contextos de mercado para os quais destinavam-se os produtos ilustrados. A função comunicativa da imagem foi sempre considerada primordial. Ao mesmo tempo, nota-se no conjunto da obra um esforço em considerar a peça gráfica na sua totalidade: seja em uma capa de livro, pensada como objeto tridimensional, seja em uma página dupla de revista, onde a figura conforma o campo. Todos esses fatores mostram como o seu desenho se aproximou da noção de projeto, representada pela palavra design.

A força da linguagem gráfica de Odiléa reside na união consciente do seu projeto pessoal de desenho – com todas as referências, estímulos e procedimentos que lhe são tão caros – ao projeto social inerente à atividade do design.


Para saber mais:

GOLDCHMIT, Sara Miriam. Odiléa Setti Toscano: do desenho ao design. São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo; Universidade de São Paulo, 2008. Dissertação de Mestrado. (http://www.saragold.com.br/download/goldchmit_odilea.pdf)


Sara Goldchmit é designer gráfica, mestre em design pela FAU-USP e autora do blog Design Diário (http://www.designdiario.com.br).

 


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