Quando começou a pintar em 1950, Mira Schendel havia obtido asilo no Brasil há apenas um ano e vivia em Porto Alegre. Suas primeiras telas eram naturezas-mortas inspiradas em Morandi, porém mais esquemáticas e soturnas. Aos 31 anos estava impregnada dos horrores recentes da guerra. Embora tenha sido batizada como cristã, o fascismo confiscou sua cidadania italiana no final dos anos 30, interrompendo seus estudos de filosofia, e lançando-a em existência nômade pela Europa Central. A artista nasceu em Zurique, mas seus pais judeus não puderam obter sua nacionalidade suíça devido à legislação fortemente xenófoba e anti-semita.
Após mudar-se para São Paulo em 1953, suas pinturas tornaram-se progressivamente mais abstratas e geométricas. A importância de sua arte não tardou a ser reconhecida no país que a acolheu: em 1954 realizou exposição individual no Museu de Arte de São Paulo e em 1955 participou da Bienal Internacional de São Paulo. A arte brasileira dos anos 1950 foi marcada pelos rigores do concretismo, movimento ao qual suas obras foram inicialmente associadas. No entanto, as premissas de objetividade e racionalidade partilhadas pelos concretistas estavam muito distantes das preocupações da artista, assim como a adesão, sobretudo dos artistas paulistas, ao culto do progresso industrial.
Em seu livro, Geraldo Souza Dias mostra que a criação plástica de Mira foi motivada ou estimulada por inquietações e especulações de natureza espiritual e filosófica, que extrapolaram em muito o concretismo e mais adiante o minimalismo, e costumam ser vistas com desconfiança por críticos e teóricos formalistas. A leitura atenta dos diários, cadernos e cartas da artista revelou ao pesquisador a forte preocupação da artista com o divino; um misticismo que se insurgia contra as codificações da Igreja; sua atração pelas religiões orientais, como o zen-budismo, e a psicologia de Carl Jung; e seu diálogo profícuo com intelectuais como Vilém Flusser, Jean Gebser e Hermann Schmitz.
Souza Dias se empenha em detalhar as questões místico-filósoficas que acompanharam a existência de Mira, fertilizando seu processo criativo gerador de obras contundentes, por vezes desconcertantemente simples. Suas numerosas monotipias em papel de arroz frágil e diáfano, expostas com ou sem a proteção de placas acrílicas atualizam o tema da transparência como epifania, essencial à estética cristã desde Suger, reinterpretado pela filosofia de Jean Gebser. Os desenhos e pinturas minimalistas de triângulos sobre fundos monocromáticos aludem à oposição de Schmitz entre sensações corpóreas epicríticas (agudas, pontudas) e protopáticas (suaves, difusas). Sua delicadíssima série de mandalas aquareladas reinterpreta temas junguianos.
A análise de Souza Dias contraria a compreensão formalista do modernismo como sucessão de movimentos artísticos (impressionismo, fauvismo, suprematismo, futurismo, cubismo etc.) continuamente impulsionados pelo esforço de superação de questões estritamente formais. O célebre diagrama evolutivo dos movimentos artísticos, incluído por Alfred Barr em Cubism and Abstract Art, ilustra de modo eloqüente a abordagem formalista. Clement Greenberg, o mais influente crítico norte-americano do pós-guerra, considerou a explicitação da planaridade da tela como o desafio crucial e inadiável de todos os artistas abstratos, em detrimento de considerações de outra natureza. Críticos e historiadores formalistas freqüentemente ignoraram ou desqualificaram os “conteúdos extra-estéticos” das obras de arte, inclusive aqueles indicados pelos próprios artistas em seus numerosos depoimentos.
Ao identificar e explicitar os temas místico-filosóficos que participaram da gênese da arte refinada de Mira Schendel, ao mesmo tempo precisa e espontânea, Souza Dias enriquece em muito o entendimento de sua obra e da experiência artística moderna. O livro alinha-se aos estudos de Meyer Schapiro, Robert Rosenblum, Maurice Tuchman e Thomas McEvilley, vertente da história e teoria da arte que certamente não ignora que O Espiritual na Arte, de Wassily Kandinsky, seja um dos textos fundadores do modernismo.
A edição fartamente ilustrada é belíssima, com mérito especial à impressão da premiada gráfica Ipsis. A reprodução de muitas obras que fazem uso livre de procedimentos tipográficos certamente encantará os jovens designers.
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DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel, do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
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Gilberto Paim é ceramista; autor de A beleza sob suspeita, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro e Elizabeth Fonseca e Gilberto Paim, Viana & Mosley Editora, Rio de Janeiro.