Cultura do Projeto e Sociedade, introdução
Gui Bonsiepe
O designer, teórico e professor Gui Bonsiepe antecipa para a Agitprop o texto de introdução de seu novo livro Entwurfskultur und Gesellschaft – Gestaltung zwischen Zentrum und Peripherie (Cultura do Projeto e Sociedade - projeto entre o Centro e a Periferia) , lançado em Zurique, na Suiça, e que será publicado no Brasil pela Editora Blücher.
Introdução
As reflexões sobre o discurso projetual aqui apresentadas foram organizadas de acordo com quatro vertentes temáticas que tocam alguns pontos, em parte polêmicos, no discurso do design. Primeiro, a relação entre visualidade e discursividade. Segundo, os enfoques projetuais na Periferia, sobretudo o papel do design para uma política autônoma de desenvolvimento. Terceiro, o papel controvertido da teoria da pesquisa do design (design research). E quarto, o contexto sociopolítico do trabalho projetual. Um denominador comum caracteriza essas quatro trajetórias, vale dizer, o denominador da latência, do não terminado, do potencial não utilizado, da abertura histórica. Esse denominador comum se rebela contra o lema da impossibilidade de alternativas que quer congelar um status quo social afirmativo e, portanto, colocar a atividade projetual em quarentena.
Depois de ter levado, durante décadas, uma existência marginal, o tema do design é hoje objeto de uma abundância transbordante de publicações, com suas manifestações caleidoscópicas da moda, da mídia e eventos até as disciplinas centrais, design industrial (ou projeto de produto) e design gráfico (comunicação visual ou programação visual). No âmbito das opções de escrever sobre design, as reflexões aqui apresentadas se caracterizam pela materialidade do projeto, com suas contradições inerentes, seus paradoxos, suas derrotas e seus – ocasionalmente – pequenos sucessos. Isso oferece a vantagem de frear especulações parafilosóficas e parasemióticas sem base concreta, sobretudo aquelas com intenções normativas. Os textos levam as marcas de sua origem: Eles foram formulados no contexto das relações tensas entre Centro e Periferia, na prática profissional, no ensino e na pesquisa dentro e fora de instituições acadêmicas. Com particular nitidez, a dimensão política do design surge no âmbito daqueles países que uma vez foram denominados com o termo – hoje historicamente superado – ‹Terceiro Mundo›. Eu suponho que a causa para esse fenômeno pode ser encontrada nas relações de dominação (pós-)colonial que continuam existindo de forma constante hoje em dia – relações que se trata de neutralizar e camuflar mais que explicar com o termo coringa ‹globalização›.
Na primeira parte trato de uma interpretação enfática do termo ‹democracia› e também de alguns atributos do design no futuro, que podem ser considerados como desejáveis, sem correr o risco de ser repreendido pela ingenuidade e suposta falta de realismo.
A segunda parte contém uma documentação detalhada do desenvolvimento de uma interface para um projeto de gestão cibernética realizado no início dos anos 1970 no Chile. Esta descrição não deveria ser mal interpretada como peça na cerimônia para enaltecer um ‹designer-ego›, e sim como exemplo para ilustrar o que pode significar uma política econômica orientada para interesses não só parciais e que significa uma defesa contra o desenvolvimento do subdesenvolvimento. Além disso, analiso a questão da identidade do design periférico, deixando aberta a pergunta se não se trata de um pseudoproblema desconhecendo as prioridades das atividades projetuais na Periferia. Nesse contexto surge também o tópico de dependência, vale dizer da consciência, de que devido a estruturas dominantes férreas – criadas em tempos coloniais – fica bloqueada a participação em questões importantes sobre o futuro da sociedade. Essa condition périphérique existencial condiciona também a atividade projetual.
Na terceira parte discuto o papel da visualidade para a distribuição e assimilação de saberes e também para a compreensão de assuntos complexos. O mesmo tema da visualidade se dedica à análise de patterns audiovisualísticos, que aparecem no cinema, na televisão e nos meios digitais, cuja microestrutura, porém, foi pouco pesquisada até o momento.
A quarta seção trata da temática em grande parte não esclarecida da teoria e da pesquisa do design e do fenômeno concatenado a este tema: da academização. Entre outros, aprofundo o papel precursor da hfg ulm (Hochschule für Gestaltung Ulm – Escola Superior de Design Ulm) cujo caráter de exceção estrutural, após cinquenta anos, precisa de algumas explicações.
Com respeito à terminologia, uso tanto o conceito ‹projeto› como o termo ‹design› que, como se sabe, não são coextensivos. ‹Projeto› se refere à dimensão da criação e formação de artefatos materiais e simbólicos, enquanto ‹design› significa um modo especial da atividade projetual do capitalismo tardio, tal como se difundiu globalmente a partir dos anos 70 do século passado.
Versões anteriores de algumas dessas reflexões e desses materiais foram apresentadas em conferências na Europa, Ásia e América Latina e parcialmente publicadas, porém nem sempre em publicações de fácil acesso. No transcurso dos anos 2008 e 2009, esses trabalhos preparatórios foram revisados, modificados, atualizados, abreviados, complementados e ampliados. Limitei os dados bibliográficos em grande parte às fontes citadas no texto e abstive-me de preparar listas mais amplas de literatura especializada, já que hoje estas informações podem ser facilmente obtidas pela internet.
A edição original alemã foi patrocinada pela Universidade das Artes de Zurique (ZHdK). Agradeço particularmente a Ralf Michel como membro da equipe dos coordenadores da coleção Textos sobre Design da ZHdK. Meus agradecimentos incluem as alunas e os alunos que participaram dos cursos de projeto e seminários teóricos, cujos resultados foram inseridos nesse livro. Silvia Fernández acompanhou desde o começo a elaboração do livro, sobretudo no que se refere à transformação visual do material. Ela também elaborou o primeiro esboço do conceito básico da diagramação. Suas pesquisas sobre design no espaço público serviram como ponto de partida para as reflexões sobre breakdowns no sétimo capítulo. Por isso me sinto muito grato a ela. Além disso, agradeço aos integrantes do estúdio marca em Buenos Aires que conseguiram desenvolver um projeto gráfico livre das acrobacias autorreferenciais de design.
Gui Bonsiepe
Florianópolis, agosto 2009
(1) O conceito ‹Periferia› não deve ser entendido no sentido urbanístico e tampouco no sentido geográfico, e sim como um conceito político, tal como é usado nas ciências sociais críticas na América Latina. Alude a relações de dependência perpetuadas às quais a Periferia está submetida. Como oposto dialético para a Periferia figura o ‹Centro› como soma das encarnações de estruturas de dominação. Defensores de interesses afirmativos consideram limitado o valor cognitivo destes dois conceitos; porém os argumentos apresentados, se é que existem argumentos, não me parecem convincentes.
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