Ano: I Número: 4
ISSN: 1983-005X
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Uma mostra à la Carta de Atenas

Ethel Leon e Heloísa Dallari

O que significa expor design? A questão vem-se apresentando para os museus que enfrentam o tema, desde que o MoMA, na década de 1930, incorporou bens do cotidiano em sua coleção ou desde que se fundou o South Kensington Museum, em Londres, nos idos de 1850. No Brasil temos poucos espaços que se ocupam permanentemente da questão e algumas exposições temporárias que, no entanto, não têm tido expografias discutidas. O Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, se propõe a expor, pela primeira vez, o conjunto de seu acervo, rompendo com a visão cronológica e optando por recortes de ‘funções’ da casa, como guardar, sentar, decorar, servir, descansar e dormir.

Nos últimos anos, a abertura de muitos museus de design como o Vitra Design Museum, o Design Museum de Londres, a neue Sammlung de Munique, a coleção do Centro Português de Design, os muitos museus empresariais (Alessi, BMW, Kartell, Thonet etc.) entre outros, acendeu a discussão, que se aproxima de muitas revisões dos lugares e papéis dos museus contemporâneos.

Em primeiro lugar, o que é expor design? O que se está expondo? Os artigos e produtos presentes na vida cotidiana? O projeto intelectual que subjaz a cada um deles? A relação entre o projeto e as técnicas construtivas? As diversas modalidades de apropriação desses objetos? As razões mercadológicas que determinaram sua existência?

A visão expográfica das artes decorativas construiu algumas tradições, entre elas a ordenação cronológica e tipológica dos modos criativos. Indissociáveis da pesquisa que relê o passado, alguns desses museus tentam leitura hipertextuais remetendo certos objetos a outros, explicitando uma teia de significados.

Toshio Watanabe, um dos curadores do Victoria and Albert Museum , por exemplo, mostra como a pesquisa em profundidade sobre aquilo que se denominou genericamente de orientalismo vem reconfigurando o museu e suas exposições, ao discriminar com especificidade as origens das peças e o diálogo entre a Inglaterra vitoriana e o Japão tradicional, por exemplo.

Na apresentação da mostra do Museu da Casa Brasileira, a questão dos ‘usos e costumes’ parece ser a tônica: “revela elementos da memória material da casa brasileira e nos aproxima do cotidiano para observar hábitos, rever identidades, avaliar praticidades e perceber a transformação das diversas técnicas e materiais através do tempo”. Ou seja, parece que a mostra quer se aproximar de uma antropologia do cotidiano.

No entanto, algumas escolhas parecem duvidosas para esses objetivos. O primeiro deles é a ingenuidade na configuração operativa ou funcional da mostra. O módulo ‘guardar’ mostra baús, cômodas, papeleiras, armários, cristaleiras do século XVIII e XIX com legendas relativas a seus materiais e a atenção a detalhes do estilo. Nas paredes, algumas frases, epígrafes de autores, apenas. Não há um só painel que aponte questões para além das técnicas e do estilo. Quem guardava? O que se guardava? De quem se guardava? Por que se guardava a chave? Por que há fundos falsos? Que móveis têm embutidos valores de prestígio e distinção social?

Se esta discussão vem à tona, pode-se falar de memória material, ou seja, de hábitos e costumes construídos no decorrer do tempo que se materializaram nos objetos de uso cotidiano. A narrativa desenhada na exposição é ingênua, ao pretender adotar uma postura universalista e naturalizada, como se o “guardar” fosse um traço comum a diferentes sociedades e períodos históricos. Pois, é claro que é muito distinto conservar jóias, como modo de entesouramento, ou arquivar certificados do Tesouro, do hábito de preservar roupas ou mantimentos.

Ao eleger uma espécie de receita da carta de Atenas (1) como mote organizativo, o Museu também mistura períodos – o que, digamos dificulta a leitura didática de quem estuda história – história dos estilos e história do design. Não fica claro o porquê do recorte temporal aí trabalhado. Não existem peças correspondentes a todos os períodos nos diversos setores da mostra. Fica a sensação de um improviso, numa tentativa de dar sentido ao acervo disponível no museu. Há uma simplificação que volta as costas para aspectos conceituais importantíssimos de serem declarados nas mostras de objetos. Esta opção, no entanto, poderia resultar didática se painéis de texto ou outros recursos (áudio-visuais, por exemplo) sugerissem alguma discussão contida na apropriação do mobiliário exposto.

A intenção classificatória em poucas palavras leva a um estrangulamento dos significados dos objetos. Uma das seções da exposição é apresentada sob o título de “decorar”. Na mostra, decoração é entendida como a alocação de objetos ‘supérfluos’ e ‘enfeites’ da vida cotidiana adquiridos com excedente econômico, pois lá estão vasos e prataria, quadros; mas aí também comparecem um piano-forte e um rádio! Ou seja, destrói-se qualquer leitura que entenda o decoro, atributo dos nobres, comprado pela burguesia ascendente do século XIX. Além do mais, o rádio é marca fundamental da entrada da casa burguesa no universo da comunicação de massas. Justamente é o rádio que vai marcar uma postura passiva no entretenimento, com a difusão da música, passando a tornar obsoletos alguns instrumentos musicais.

No setor “rezar”, exemplares de oratórios são distribuídos em um corredor que dá acesso a salas da mostra. Essas peças aparecem penduradas na parede, num ambiente destinado à passagem, local onde o público pouco se detém. Não se leva em conta o modo de apropriação desses prestigiosos objetos de culto, sempre pousados sobre móveis de fino acabamento. Não se considera o papel de elevação social e de sinalização da fé que os oratórios representaram nas casas brasileiras, estando sempre colocados nos lugares mais nobres e visíveis das residências.

Causa estranheza a seção destinada ao “sentar”. As cadeiras são exibidas extremamente próximas umas das outras, sendo que muitas aparecem presas às paredes, numa justaposição horizontal e vertical que dificulta a compreensão das particularidades de cada um desses objetos. A mostra conta ainda com um curioso móvel multifuncional (ver fotos), doado por Pietro Maria Bardi, apresentado no saguão do Museu. Entende-se que isso se deva justamente ao fato de não poder-se encaixar em canto algum: ele é cama, é baú, é escrivaninha etc.. Assim, a exposição pode levar os visitantes à falsa crença de que os demais móveis têm funções únicas e operativas. Uma cama é uma cama é uma cama, parece afirmar a expografia, e está na exposição na seção “dormir”, mas poderia estar na divertir-se, amar-se, ler, sentar, conversar, rezar...

Outra questão da mostra diz respeito ao próprio uso e ao contexto do móvel. As muitas cômodas dão formigamento nas mãos, de vontade de abri-las. Seria possível expor fotos de cômoda com gavetas abertas, ou de uma papeleira/escrivaninha com o tampo fechado, preservando a peça do toque, mas mostrando sua dupla aparência e também respondendo a curiosidades como acabamentos internos de gavetas; presença espacial do móvel, quando fechado etc.. Uma peça de igreja poderia ser melhor explicada por meio de uma foto em seu ambiente de origem.

É apropriado lembrar que esses móveis existiram vinculados a determinadas arquiteturas, sendo propriedade de pessoas concretas e falar deles é falar efetivamente da vida das pessoas e de sua inserção numa ordem social determinada. Não se pode pensar numa estéril exposição de estilos, perigo esse sempre presente em qualquer mostra organizada cronologicamente. Entretanto, ater-se a pretensas funções, do modo como é feito pelo Museu da Casa Brasileira neste momento, não ajuda uma exposição a torna-se esclarecedora ou instigante para o público. Levantar questões é dar atualidade à história, é fazer que os visitantes, sejam estes estudiosos ou leigos, reflitam sobre a passagem do design do cotidiano para o templo das musas.



1. A Carta de Atenas, documento firmado pelos participantes do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), em 1933, propôs que as cidades modernas se estruturassem em torno de funções, separando moradia de trabalho e de lazer.

As fotos foram cedidas pelo Museu da Casa Brasileira.

Ethel Leon é jornalista e professora de história do design.

Heloísa Dallari é arquiteta; doutora pela FAU/USP, autora da tese Design e exposições: das vitrines para as novas telas.

 


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