1 Introdução
Os historiadores dividiram a história humana em grandes períodos de alguma regularidade identificável. Pré-História, Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna… Estas regularidades tinham a ver com as relações dos humanos com eles próprios como sociedades e culturas e com o desconhecido e o “a conhecer” (os deuses e as ciências). Estas regularidades foram também espelhadas na cultura material, tanto nos artefatos como nas obras-primas, correspondendo a desenvolvimentos estilísticos com a uniformidade.
Nos alvores do século XIX, Hegel definiu a sua Era como a Era da Modernidade: Moderna, finalmente autônoma da Antiguidade. Moderna, suficientemente moderna para se auto definir como um novo paradigma existencial. A Idade Moderna foi assim dividida em dois períodos em inglês: Early Modern and Modernity. A marcar a mudança tínhamos uma calamidade política capaz de ter mudado as visões de mundo: a Revolução Francesa, iniciada na última década do século XVIII.
A industrialização ajudou a engrandecer e alargar o culto da novidade tão querido da modernização. A monumental obra de Siegfried Giedion (1948/1969) Mechanization Takes Command dá-nos conta da mudança na indústria que teve a ver com o movimento e o seu impacto na cultura material. A produção em massa e a necessidade do Novo preparou o aparecimento do Designer. Desde o início da Idade Moderna, desde o século XV, Design, como já demos conta noutro artigo (CORTE-REAL, 2010) como palavra e como conceito evoluiu no seu habitat e foi consolidado pelo Modernismo no final do século XIX e início do século XX. Esta foi também a era do Designer Heróico, um ser demiúrgico capaz de (re)gerar o novo mundo com a sua visão. Depressa o Modernismo e o Moderno atingiram uma crise. Em textos como A Ideia de Modernidade de Adolfo Casais Monteiro (1956/2007) foi anunciada uma Pós Modernidade.
Sublinhe-se que neste período do Pós-guerra, a palavra Design colonizou o mundo fora dos países falantes de inglês até se universalizar.
Este período também assistiu ao crescimento avassalador do “Contemporâneo”. A Pós-Modernidade convocou todos os tempos para o nosso tempo. A própria arte recusou a designação de moderna e auto denominou-se contemporânea. Para além destes fatos, o crescimento de sistemas globais de comunicação instantânea aumentou o poder do contemporâneo como “aquilo que está a acontecer neste mesmo segundo”.
Os ataques às Twin Towers em Nova Iorque em 11 de Setembro de 2001 e a sua difusão em tempo real em todo o mundo mostraram claramente que algo mais poderoso que o Moderno tinha começado: a condição Pós-Moderna tinha evoluído para uma condição Hypercontemporânea.
O arquiteto libanês Bernard Khoury usou pela primeira vez a palavra para descrever a Beirute em ruínas do pós-guerra civil em 2005. Um estado de ruínas, com veremos mais à frente, parece descrever metaforicamente o constante fluxo de comunicações que de tempos em tempos é interrompido e focalizado em catástrofes humanas e naturais em que todos comungamos.
O Hypercontemporâneo está diretamente ligado com as catástrofes. Enquanto o indonésio vulcão Tambora no século XIX provocou uma pequena glaciação na Europa devido à sua nuvem de cinzas sem que muitos soubessem sequer que tinha explodido, em Abril de 2010 o inominável vulcão islandês tornou-se uma vedete mundial instantânea e causou um caos global devido ao encerramento dos aeroportos europeus. A conferência da European Academy of Design (EAD) em Ismirna, 2007,reportava este fato: o seu título era Dealing with the Catastrophe. Lidar com a catástrofe, enfrentá-la, antecipá-la e superá-la foram os principais temas da conferência porque fazem parte do nosso paradigma existencial sendo em consequência da maior relevância para o Design. A conferência seguinte da EAD em Aberdeen, 2009, onde as ideias deste texto foram pela primeira vez apresentadas fora de Portugal, (CORTE-REAL, 2009) sublinhava a importância da connexity da qual podemos criar o neologismo conexidade, para a existência desta nossa Era. As relações instantâneas dependem da conexidade. Conectar, ligar, clicar, editar parecem dar forma às redes em vez de dar forma às obras. Enfim, a conexidade parece ser também parte do paradigma existencial da Hypercontemporaneidade.
2 Carateristicas da era Hypercontemporânea
Ainda é difícil escrever sobre a ideia de Design em 2010 sem lidar com o 11 de setembro de 2001 e os seus resultados. É também difícil lidar com a ideia de arte sem pensar no mesmo evento. O Design enquanto disciplina, e não enquanto capacidade humana inerente a todos, sempre se institucionalizou na sua relação com a cultura humana através da arte. Sendo o lugar próprio do Design o Artificial, é evidente que a ação contra uma forma de mundo artificial representado nas torres e a primeira reação desse mesmo mundo artificial através da comunicação direta e instantânea colocou questões indeléveis tanto à arte como ao design. Finalmente, sendo o artifício o próprio reino da comunicação temos ainda mais razões para nos questionarmos acerca da catástrofe do século, até agora... Lembremo-nos também que são as catástrofes que marcam as mudanças de Era: Queda do Império Romano do Ocidente: Fim da Antiguidade; Queda do Império Romano do Oriente: Fim da Idade Média; Revolução Francesa...
Clive Dilnot tem assinalado o fato de que vivemos no Antroposcenénio (DILNOT, 2005, p.42); uma nova era geológica seguindo-se ao Pleistocénio e ao Holocénio, uma terceira era no período Quaternário. Como qualquer outra era geológica, uma camada fóssil confirmará a nossa. Os seres do futuro que estudarem tal período, perante tantos destroços de corpos e edifícios interrogar-se-ão sobre que gênero de catástrofe atingiu a Terra nessa idade. Nessa camada misturam-se os destroços do natural e do artificial já de tal modo entrelaçados que se tornam indistinguíveis. Como paleontólogos, os estudiosos do futuro, procurarão estabelecer a relação entre um volante e um par de mãos como se fossem partes do mesmo fóssil. Nestas ossaturas híbridas de humanos e suas criaturas diferenciarão eles não só a arte na arte mas também a arte nas extensões do humano?
No capítulo final de Design and Crime (and other Diatribes), Hal Foster (2002, p. 143) comenta a obra de 1993 de Gabriel Orozco, Island within an Island (fig.1):
“(…) Orozco, muitas vezes ganha prazeres críticos das de outro modo dolorosa ironias da deslocação e dispersão. Depois dos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001 este trabalho de subversivo mimetismo adquiriu também um novo significado como uma imagem de lembrança, de re-aparecimento e de a-vida-continua.” [Orozco often wins critical pleasures from the otherwise painful ironies of dislocation and dispersal. After the events of 11 September 2001 this work of subversive mimicry has also taken a new meaning as an image of remembrance, of coming-after and living-on.] (FOSTER, p.143) (ver imagem)
Esta condição (da arte) expressa na obra de Orozco relida após 2001 tinha sido previamente definida por Foster na esteira de Adorno como traumática, espectral, não-síncrona e incongruente (FOSTER, p. 130).
Adorno, naturalmente, interroga-se sobre a Arte do Pós-guerra, oposta à clareza “futureira” do Modernismo. A Arte no extremo da sensibilidade às mudanças de paradigma social afirmava assim as condições existenciais na Era Hypercontemporânea: traumática, espectral, não-síncrona e incongruente.
Para mim, há uma irrevogável condição ligando a Cultura expressa como contemporaneidade e o Design que tem sido progressivamente negligenciada. Esta condição pode ser vista e é transmitida pelo Design como um pivô entre o domínio mais largo da Cultura de Massas e a Arte. Pelo menos assim tinha sido nos anos de ouro do Modernismo. Lendo os sinais deste pivoteamento podemos diagnosticar uma situação de “fim do tempo” ou pelo menos de “tempo em mudança”. Agravada pela consciência de um planeta moribundo por ação do homem também globalizada pelos meios de comunicação instantâneos nenhuma disciplina humana escapa a esta condição. Podemos dizer que vivemos desde 2001 num estado de guerra que não está confinado a violentas explosões e tiros mas é bem mais generalizado. Esta condição de Guerra tenderá a apagar o designer tal como tinha sido definido no modernismo, tal como apagou o artista do Modernismo. Sublinhe-se que as sub condições de Adorno justificam uma morte também da arte moderna. Uma arte que já só se consegue definir como contemporânea arraigada das necessidades humanas tão cara aos movimentos modernos não é uma arte nem do passado nem do futuro.
Parece-nos, pois, que chegadas estas condições ao Design, elas passam não só a ser características globais do artificialmente produzido como características do próprio paradigma existencial.
3 A condição traumática do Design
Tendo em conta o Design e os nossos tempos de guerras e desespero, Tony Fry deixou um aviso de que:
“A Guerra existe em tempo real, em tempo simulado e em tempo eletrônico, o tempo do pulsar, o tempo da onda. (…) A Guerra como uma tecnologia à solta de invasão do instante, do futuro, da imagem, da linguagem, mente, espaços da vida quotidiana, e o próprio ambiente no nosso ser-no-mundo”. [War exist in real time, simulated time and electronic time, the time of the pulse, the wave. (...) War as set loose of a technology of the invasion of the instant, the future, the image, the language, mind, spaces of every day life, and the very environment of our-being-in-the world.] (FRY, 1999, P.53)
Fry comparava a guerra no seu sentido normal com a in-sustentabilidade do planeta grandemente resultante da conjunção do Design e Marketing especialmente. Fry não podia ter antecipado os ataques de 9/11. Ele estava preocupado com a retórica do progresso que confiava no Design para se concretizar inteiramente. A “guerra” causada pela falta de sustentabilidade de alguns modos de vida (que até talvez seja a mesma que a “guerra contra o terrorismo”) resultou em ser a maior preocupação do mundo, se fizermos crédito na sua defesa do Defuturing a como uma nova filosofia do Design. Um dos aspectos retóricos dos ataques é o “aviso”. Bin Laden mudou do “tenho estado a avisar-vos” para “eu bem vos avisei”. Do lado do “Bem” A Inconvenient Truth (GUGENHEIM, 2006) de Al Gore usa o mesmo dispositivo retórico. Subitamente, Gore dá razão a Fry e a história do Design por si desfilada é posta em causa pelos fatos e não pelo aviso. O problema é que uma nova filosofia do Design pode conduzir a uma filosofia de não-Design, pelo menos no seu aspecto de projeto moderno. Esta filosofia do não-Design. Os Designers, em trauma, devem se des-Designar de modo a atingir sistemas sustentáveis.
Clive Dilnot, no seu Ethics? Design? (p. 127-138) sublinha a importância de recuperar para o Design a dignidade do domínio público. A inspiração de Dilnot vem de Gui Bonsiepe:
“Como terceira virtude do Design no futuro, eu gostaria de ver mantida a preocupação com o domínio público, e isto é ainda mais válido quando se registra neste momento o maior assalto a tudo o que é público quando parece ser esse o credo do paradigma econômico dominante”. [As the third design virtue in the future, I would like to see maintained the concern for the public domain, and this all the more so when registering the almost delirious onslaught on everything public that seems to be a generalized credo of the predominant economic paradigm] (BONSIEPE, 1997, p.107).
Não poderia o experiente professor germânico prever o descalabro que aquele paradigma econômico iria sofrer em 2008. Mais uma vez a retórica do aviso foi confirmada pelos fatos. Apesar de causada por mirabolantes esquemas financeiros eletrônicos e por uma fé inconsistente nos bens de caráter tecnológico, esta crise mais uma vez foi recebida como traumática pela comunidade dos designers que pela sua parte bateram no peito com a sua quota parte de culpa agora com a sua participação já não só no exaurimento causado pela indústria mas pelo engano produzido pelos insaciáveis serviços financeiros indiferentes ao interesse público.
O domínio público encontra na Arte e nas direções artísticas a sua última fortaleza. Dilnot (2005) reflete sobre esta necessidade, trabalhando as noções de Giorgio Agamben sobre a arte indo mais longe explicando porque o Design NÃO sendo arte tem que estar com um pé na Poética e outro na Ética. Mas gato escaldado de água fria tem medo: O projeto modernista que reunia Poética, Ética e Técnica trouxe-nos até aqui. A falência do Modernismo que arrastou consigo a falência da modernidade corresponde a uma dupla condição traumática para os designers, senão por outras, pelas razões da sua relação com uso da técnica para a guerra real como da guerra contra a insustentabilidade de um mundo criado pelo Design.
4 A condição espectral do Designer
Poderíamos dizer que uma existência totalmente poética seria, ainda, o lugar onde o domínio público como espaço para a dignidade humana poderá ainda existir.
Mas, como temos visto, algumas das funções do Designer têm sido erodidas pela sua participação no deslizamento para o atual estado de Guerra. Neste sentido, a interrogação presente no título deste artigo é, de fato, um alerta. O Designer decisivo moderno parece ter desaparecido e o papel de liderança do Designer nos tempos modernos não parece evidente. Especialmente depois da lavagem pós-modernista e dos caprichos desconstrutivistas, ligação tão cara ao movimento moderno entre técnica-poética-ética é difícil de religar. Personagens demiúrgicas como Buckminster Fuller, Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, Oscar Niemayer, Alvar Aalto ou mesmo Dieter Rams parecem improváveis hoje. No entanto eles persistem como espectros como se se tivessem pulverizado em miríades de micro designers espalhados pelas mais diversas atividades. A ubiquidade do Design na produção do artificial no momento em que o já artificial engloba o natural e o humano, como no passado mês de Abril de 2010 defendeu Clive Dilnot num seminário doutoral no IADE, paradoxalmente contribui para a condição fantasmática do Designer.
A generalista definição de Herbert Simon de design como presente em todas as situações a mudar para outras preferíveis às existentes des-especifica o Design como disciplina e profissão tornando a existência de o(a) Designer uma quase piada porque é equivalente a dizer Humano. Este profissional criado no auge da modernidade vai também perdendo aquelas que eram as suas competências características como a intuição, o gosto, o background cultural, o desenho e a retórica visual e uma inesgotável capacidade de se entregar a conversas ociosas sem fim ou utilidade aparente. Assim os Designers e o Design sofrem com a confusão entre a capacidade humana de antecipar e preparar para a produção alguma forma de matéria organizada e o modo de intelectualizado e institucionalizado pelo ensino superior de o fazer. Autonomizado do artesanato mas apertado pela Engenharia e pelo Marketing, disciplinas originadas fora da cultura do Desenho, tenderá o Design a desaparecer como se interrogava Daciano da Costa (1930-2005) (1998, p.40), o mestre dos mestres do Design português, pela primeira vez em 1992?
Quando observamos o lançamento de um dos produtos mais icônicos de o que é o Design, uma máquina de processamento de dados, por Steve Jobs, quem é este homem? Não nos restam dúvidas de que em cada um destes projetos devem ter trabalho dezenas de Designers profissionais, mas o demiurgo é um Marketeer-Engenheiro.
Em que é que a Idade Hypercontemporânea contribui ou contribuirá especialmente para transformar o Designer no psiquiatra infantil de O Sexto Sentido M. Night Shyamalan? O chamamento do instante e do instantâneo impede a formação do designer artista que necessita de tempo para amadurecer (a sua intuição é tão somente densidade cultural). As soluções pré-formatadas são preferidas às profundas indagações e experimentações. Os procedimentos de corta e cola e de edições de design apagam o designer individual em favor de uma comunidade conectada de formas que constituem uma sopa indiferenciada onde todos se alimentam a todos os momentos, instantaneamente.
5 A condição não-síncrona do Design
Não parece ter havido muito progresso desde que Victor Margolin declarou que “nós necessitamos claramente de uma nova disciplina de estudos de design”. [we clearly need a new discipline of design studies] (MARGOLIN; 1989, p.5). Margolin pediu agregação e organização do conhecimento sobre Design de modo a criar novos acadêmicos capazes de sustentar a educação em Design. Design Discourse parecia um bom ponto de partida. A Disciplina de Estudos de Design deveria estar fundada num discurso. Depois de quase vinte anos, o Design parece ter atingido o reconhecimento público como um domínio acadêmico e com a sua aceitação universal como palavra. Um número crescente de programas doutorais, conferências, revistas científicas e acadêmicos refletindo a existência deste domínio de Estudos que é discursivo e não projetual. Margolin argumentava que não existia nenhuma dúvida sobre qual deveria ser a contribuição que um acadêmico em Medicina deveria oferecer para se tornar útil para o seu campo. Pelo contrário, um mundo fragmentado de atividades de design pulverizado até ao ponto de miríades de Design “qualquer coisa” teve alguma dificuldade em definir a sua própria academia. A Medicina é um bom exemplo porque se ramifica em vários domínios de especialização. Também porque nem todas as atividades relacionadas com curar pessoas são Medicina. Existe uma barreira social entre enfermagem e medicina ou farmácia instituída precisamente pelas divisões de tarefas mas também pelo modo como a disciplina se alicerça continuamente na sua História. Também é um bom exemplo porque, embora os cientistas da medicina tenham a sua órbita própria, muitos médicos praticam a medicina de forma a científica produzindo assim investigação científica sobre a sua própria prática. De fato, a evolução e consistência da Medicina depende dos relatórios e papers sobre novas formas de praticar medicina. Este fato fornece uma sincronicidade entre a prática e a investigação científica que não é visível da mesma forma no Design. Esta falta de sincronicidade é um sintoma e também uma reação. Mais uma vez, a velocidade do Hypercontemporâneo contribui para desligar o Designer praticante dos “Estudos de Design” e estes tendem a tornar-se auto referenciais fora da prática. Como a Medicina, o Design confia numa cultura de observação que é fundamentalmente um dispositivo de interpretação. Temos que lembrar-nos que o Design derivou de uma cultura em que o desenho era o principal dispositivo de interpretação. O desenho parece ter desaparecido do coração do Design. Também o Design, como profissão foi instituído com a chegada das estratégias da produção artística à produção de objetos do dia a dia. A resposta a Margolin parece ter vindo também com a recente publicação de três “Readers”: The Design Culture Reader , editado por Bem Highmore (2009), Design Studies, A Reader editado por Hazel Clark e David Brody (2009) e ainda The Design History Reader editado por Grace Lees-Maffei e Roberta Houze (2010). Apesar de excelentes livros para comprar e consultar, o efeito é caleidoscópico e com textos das mais variadas origens da filosofia social à psicologia aplicada ou à teoria econômica. Muitos autores estão representados em dois dos readers como Margolin e Dilnot ou Michel Foucault mas só um está presente nos três: Karl Marx e com o mesmo texto sobe o fetichismo dos bens de produção (HIGHMORE, 2009, pp. 17-26; LEES-MAFFEI&HOUZE, 2010, pp. 387-390 & CLARK&BRODY, 2009 pp. 194-197). A origem de uma cultura de Design residiria, assim nos bens de produção e na mais valia deles resultante. Este pecado original do Design negligencia a cultura específica de observação que distingue o design dos outros procedimentos de produção. Em vez da concentração de esforços em torno do Design Design, a necessidade discursiva dos Design Studies disparou em todos os sentidos. O próprio Victor Margolin, em correspondência privada com o autor destas linhas, confessava também que a situação nos doutoramentos era da maior confusão. Nessa mesma carta o historiador interrogava-se sobre o que fazer. Voltaremos a isto nas conclusões.
6 A condição incongruente do Design
Num livro publicado em 1995 significativamente intitulado “Conversas Antes do Fim do Tempo” [Conversations Before the End of Time], Susan Gablik entrevistou artistas, críticos de arte e teóricos da arte. Aparentemente uma das questões subjacentes ao livro seria a da possibilidade da autonomia da Estética ou um fatal engajamento da Arte capaz de a destruir como tal. Uma Arte sem ser Arte pela Arte correria o risco de, ao serviço dos propósitos exteriores à arte, se dissolver nesses propósitos. Na entrevista a Arthur C. Danto, Gablik pergunta se o fim da História de Arte, tal como ele o tinha apresentado, não corresponderia, de fato, ao fim da Civilização Ocidental. Danto respondeu que pensava que a Arte era “impotente para resolver quaisquer problemas sérios do mundo” [powerless to solve any serious problems of the world.] (GABLIK, p. 278)
À primeira vista, poderíamos dizer exatamente o oposto sobre o Design. O Design deveria ser capaz de resolver muitos dos sérios problemas do mundo. Pelo menos esta era a sua promessa modernista. Nascido como Arte, ou como pelo menos Arte Aplicada, a sua congruência nascia da noção de projeto global oriunda da arquitetura e que se concretizava desde o telhado ao papel de carta. Enfrentar um problema projetual correspondia a fazer um diagrama para um mundo novo à escala da encomenda, segundo procedimentos cognitivos e produtivos oriundos da arte. O fato de quase universalmente se ter referido uma escola alemã como a Bauhaus como a base da árvore genealógica das escolas do Design Moderno garantia também essa congruência.
Por se pretender capaz de tudo, o Design passou a englobar todo o Artificial. Tal como nós encontramos no passado concordâncias de estilo que nos fazem parecer a produção de artefatos de uma certa época congruente, com a emergência do Hypercontemporâno o Presente revela-se com todas as suas incongruências. Por abarcar tantas atividades do Artificial, o Design, enfrenta a incongruência de todas as coisas feitas pelo homem quando olhadas no mesmo momento em que estão a ser feitas.
Enquanto no período Early Modern as gerações de artistas tinham descoberto a congruência da Arte da Antiguidade para dela fazer base para a sua própria produção moderna e no período da plena Modernidade as gerações de artistas tinham feito do Futuro um local para a congruência, neste período Hypercontemporâneo só podemos constatar a incongruência do que nos rodeia.
Voltemos, então atrás no Tempo: em Março de 1877 a Rhode Island School of Design foi incorporada pela Assembleia-geral de Rhode Island. Os objetivos da Escola foram colocados em “mandamentos” muito simples. O primeiro era:
“A instrução dos artesãos no desenho, pintura, modelagem e em projeto, de modo a que eles possam com sucesso aplicar os princípios da Arte às exigências do comércio e da indústria.” [The purposes of the school were set in very simple ‘commandments’. The first was: “First: The instruction of artisans in drawing, painting, modeling, and designing, that they may successfully apply the principles of Art to the requirements of trade and manufacture.] (RISD web site)
Aplicar os princípios da Arte ao comércio e indústria deu também uma consistência suficiente para criar instituições chamadas “Escolas de Design”. Os princípios da Arte aplicados ao comércio e indústria deram ao Design uma congruência entre os desejos da sociedade e as instituições de ensino. Como Escolas de Design surgiram também, associadas a instituições de ensino, ou países ou regiões, modos e maneiras de fazer Design. A Escola dos Design Methods anglo-saxônica estaria já fora da aplicação dos princípios da arte, por exemplo. O sistema universitário separou cursos de Design com ênfase na técnica, com ênfase na estética e com ênfase na ética. A promessa modernista de fundir este domínio parece ter-se desfeito também por causa da disseminação. Também, pouco a pouco, a confusão entre o Design como disciplina e profissão e qualquer atividade humana que transforme situações em outras preferidas, multiplicou a versões do que é Design estilhaçando a sua congruência interna.
Como sempre deveríamos voltar ao essencial, ou seja, para as escolas e instituições. Podemos arriscar dizer que não deve haver no mundo uma escola de Design que não enfrente os problemas da sustentabilidade e da responsabilidade social do Designer. Mas estarão elas a enfrentar corretamente a questão dos “princípios da Arte” a aplicar à produção?
Salvarão as escolas de Design o Designer?
7 Conclusão (o que fazer?)
Num comentário às ideias acima expressas, Victor Margolin (comunicação pessoal, Fevereiro de 2009) escreveu:
“Como disse Lênin (e que se transformou numa das minhas perguntas preferidas): “O que é que se deve fazer?”
a) A questão dos Doutoramentos terá que ser avaliada numa conferência internacional, de preferência com o envolvimento da Design Research Society mas talvez através da CUMULUS. Um grupo de trabalho deveria ser formado para estabelecer linhas mestras para programas doutorais, tendo em conta a variante do doutoramento através da prática. Este grupo deveria tratar da questão de que tipos de conhecimento são necessários para um doutoramento. Temos gente que não sabe nada de História do Design ou Estudos da Cultura do Design. Deveria haver algum consenso sobre quais deveriam ser os textos clássicos que todos deveriam ler. Não existe agora.
b) Deveria haver uma discussão mais séria sobre a relação entre investigação (pesquisa) e a prática tanto na PhD Design List como numa conferência sobre Design e educação em Design. Todos os estudantes deveriam ter algum treino em métodos de investigação (pesquisa). O que tem de ser comunicado a cada estudante é que o Design é uma prática com responsabilidade social e não simplesmente um meio para obter prazer visual. Isto não exclui a estética mas a responsabilidade vem primeiro.”
[7.As Lenin said (and what has become one of my favorite questions):"What Should be Done?" a) The issue of PhD design education needs to be addressed in an international conference, preferably with the involvement of the design research society but perhaps through CUMULUS. A working group should be formed that would establish some sort of guidelines for PhD programs, taking also into account the PhD by Practice variant. This group should also address the question of what kinds of knowledge are necessary for a PhD. We have people with the degree who know nothing of design history or cultural design studies. There should be some consensus of classic texts that everyone should read. There is none now.
b) There should be a more serious discussion about the relation of research to practice both on the PhD list and at design and design education conference. All design students should have some training in research methods. What needs to be communicated to every student is that design is a responsible social practice not simply a way to have some visual fun. This does not preclude aesthetics but responsibility comes first.]
Parece, portanto que ultrapassar a condição traumática, espectral, não-síncrona e incongruente do ir vivendo nesta idade Hypercontemporânea dependerá da interligação entre ensino-investigação-prática. Como vimos anteriormente existe outro trinômio a ligar a este e a religar-se entre si, estética-técnica-ética. Aparentemente aquilo que poderá afastar o trauma, dar solidez, tornar congruente e sincronizar o Design com o que a Sociedade espera dele dependerá destas ligações. Margolin centraliza nas investigações doutorais as possibilidades de ultrapassar os males da condição hypercontemporânea. A possibilidade de doutoramentos através da prática será obviamente uma condição para a aglutinação de Design Research e Design.
Em 1992, Daciano da Costa, num texto muito significativamente intitulado Design e Mal-Estar (COSTA, 1998) escrevia que, para além da necessidade de se fazer uma releitura da História importava distinguir Território do Design de Mercado do Design:
“Em segundo Lugar importa distinguir TERRITÓRIO de MERCADO.
(O Designer é uma pessoa de cultura que gera atividade econômica)
Delimitar um TERRITÓRIO DO DESIGN significa:
- a identificação e o aprofundamento da sua matriz teórica, para dar corpo a uma Teoria do Design;
- o desenvolvimento de procedimentos de investigação, para a observação e crítica do ambiente humano;
- o estudo e a experimentação de Metodologias evolutivas e apropriadas no quadro sócio-econômico e cultural;
- a modernização das técnicas de representação, dentro da Cultura do Desenho, sem perda de manualidade.
TERRITÓRIO é o campo de investigação da Disciplina. MERCADO é lugar social da prática da profissão.” (Costa, 1998 p.41)
Recentemente fiz parte de um grupo chamado CURE, Cumulus Research, constituído sob a égide da CUMULUS, uma associação que reúne mais de 140 instituições de ensino superior de Arte, Design e Media de todo o mundo. Numa reunião em Maio de 2007 em Swäbisch Gmünd na Alemanha, o grupo constituído por Thomas S. Rasmussen da Denmark Designskole, Meredith Davis da North Carolina State University, Sharon Poggenpohl do Hong Kong Polytechnic, Yryänä Levanto da então Universidade das Artes de Helsínquia e eu do IADE de Lisboa preparamos uma sequência de ações destinadas a enquadrar o que poderia ser Design research na Cumulus. Desse plano realizou-se apenas um inquérito às escolas, das quais responderam apenas 30 por cento.
Um ano depois, em St. Etienne, França, numa reunião organizada por Luisa Collina do Politécnico Milano e Marjolin Brussard da Utrecht School of the Arts, o grupo CURE foi fundido com um outro working group no interior da mesma organização: PREDesign (Practice, Research, Design). Nesta reunião identificou-se a possibilidade de uma Design Research, definida pelos pares, mais próxima da sua afiliação histórica originária nas artes. A este respeito conviria consultar o artigo de Hans-Peter Schwarz (2007) no livro fundador da nova universidade das Artes de Zurique. Aí é estabelecida claramente uma genealogia do ensino do Design até à Accademia del Disegno de Florença que teve entre os seus fundadores Giorgio Vasari e como anjo tutelar Michelangelo Buonarroti.
O que fazer, então?
Clarificar que Design é uma disciplina que não deve ser confundida com a capacidade comum a todos os humanos para projetar coisas. Clarificar que embora os estudos da nossa relação com os objetos sejam pertinentes eles não se constituem como uma teoria do Design. Elaborar a lista dos textos de referência tendo estas condições em mente. A consolidação do Design e do Designer necessita da investigação doutoral mas só daquela que reflita a consciência da disciplina e da profissão não aceitando que ela se exerça ou se ensine sem a presença simultânea da estética-ética-técnica. Talvez com estas medidas ainda poderemos ter uma nova Idade com Designers.
Veremos...
References:
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Agradecimentos:
A Victor Margolin pelos pertinentes comentários feitos a uma versão anterior desta pesquisa.
À Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal que financiou o projecto PDC/EAT 62330/2004 no qual esta investigação se integrou.