Design ubíquo
Massimo Canevacci
O texto de Carlos Zibel Costa – Além das Formas (1) – apresenta, já no subtítulo, a visão do autor: introduzir e cruzar no pensamento contemporâneo design, arte, arquitetura. É um projeto fundamental, porque – se posso apresentar meu ponto de vista sobre estas relações junto com minha decisão de morar e pesquisar no Brasil – me parece que a Universidade, lugar por excelência predisposto a este objetivo, consegue com dificuldade permanecer em seu papel: fazer pesquisa, interpretar tendências, antecipar visões, experimentar códigos, contribuir para a eliminação do domínio, favorecer inovações multilinguísticas, praticar a cultura digital. Talvez não seja só um problema da maior universidade do país e da clássica faculdade de arquitetura que acompanha, com seu logo (Fau-Usp), o livro. Talvez o problema esteja na grande metrópole de São Paulo, que foi o motor não só econômico do Brasil, mas também de uma cultura nunca fechada em si mesma, mas aberta com porosidade seletiva nos panoramas estéticos antropofágicos.
A minha sensação é que agora São Paulo está parada, que a maioria dos moradores e as principais instituições escolheram ignorar o processo de globalização que está modificando as tradicionais configurações urbanas. A cidade inteira (apesar da produção econômica e financeira ainda mais forte) parece bloqueada, incapaz ou sem desejo de se transformar, criando novos símbolos arquitetônicos que poderiam favorecer identidades outras e um olhar outro. Um olhar eróptico que mistura a erótica e a ótica em público. Assim, multiplica-se uma privacidade do design, uma estetização dos “interiores” através de detalhados refinamentos de lojas, bares, restaurantes, locais noturnos: isto é de espaços auto-referenciais; e, ao mesmo tempo, um silêncio absurdo sobre a relação entre arte e arquitetura produzida nos espaços que criam a São Paulo contemporânea.
O que está acontecendo nas grandes áreas metropolitanas do mundo inteiro – delicadas modulações entre o global e o local (o glocal) que redesenham o inteiro skyline – parece não interessar a São Paulo. Uma São Paulo que se apresenta, mais do que metrópole, como muitas cidades fechadas em si, grudadas com uma cola que isola e não conecta; que difunde um ‘perbenismo’* como estilo de vida na indiferença, ou melhor, na hostilidade ao novo, ao estranho, ao outro pós-euclidiano; que gosta de caracterizar-se pela hostilidade à assim dita poluição visual e pela convivência indiferente ou cúmplice à crescente poluição do ar, ao colapso do trânsito de carros e metrô. Este município iconoclasta único no mundo, que favorece a indiferença moral do cidadão eleitor, está virando a única cidade “soviética” depois da queda do muro de Berlim. Seu prefeito adora limpar não só a publicidade do outdoor, mas a comunicação visual em geral. Viajar por Shanghai ou Bejing, Tokyo ou Bogotá, Londres ou Los Angeles, e voltar a São Paulo produz um sentimento de provincianismo improvisado e inusual. Como foi possível tudo isso em apenas uma dezena de anos ou pouco mais? O que aconteceu na grande e extraordinária metrópole do modernismo e do brutalismo? Onde está a polifonia paulista?
O livro de Zibel é o resultado de uma pesquisa que dura faz tempo e que sai no momento certo, porque enfrenta justamente a contemporaneidade, no sentido não banal de “o que acontece agora”, mas na relação profunda entre os projetistas de design-arte-arquitetura do passado na fundamental escolha de focalizar o presente. Sublinho este focus que é fundamental para entender a obra. Assim, ele apresenta as interconexões necessárias entre o que nunca foi e, ainda menos agora, poder ficar separado “disciplinarmente”: design, arte, arquitetura, publicidade, moda, música precisam seduzir-se com híbrida reciprocidade eróptica. Talvez seja necessário tentar enfrentar o design de maneira diferente, isto é, não só como uma disciplina ou uma profissão enquadrada segundo os parâmetros históricos dados: o design se expande, e é sempre mais um design expandido, um design ubíquo que se exprime numa multiplicidade de manifestações além das fronteiras formais. Por exemplo, um número qualitativamente crescente de pessoas aplicam e criam design no próprio corpo: o corpo de cada um vira um design aplicado - corpo-design - onde o estilo de identidades mais mutantes que no passado estimula a fantasia individual de se apresentar como “obra”. O design aplicado ao corpo cria um ser ao mesmo tempo sujeito-objeto, uma figura hibrida além do dualismo modernista, um eus: onde o artigo é ainda não determinado-singular e o sujeito é plural-determinado. O design aplicado no próprio corpo transforma o sujeito no “um eus”, uma pluralidade expandida na própria multividualidade. O multivíduo metropolitano, que vive e cria a metrópole comunicacional, é corpo-designer.
A publicidade da Bulgari apresentada no livro – onde a modelo escarifica e insere na sua pele a marca, como fosse ouro encarnado – é o resultado de uma prática cultural juvenil e intersticial que vira ambígua comunicação mainstream. Os cool-hunter deambulam pelos locais noturnos alternativos pesquisando e olhando as novidades do códigos ainda marginais que têm a potencialidade de virar design aplicado pelas diferentes marcas. E ao lado desta imagem vê-se um frame do vídeo-corpo realizado por Lia Chaia, onde um fluxo de linhas digitais cruzam a barriga da mulher. Este tipo de comunicação visual se expande seja no video-game ou no second life, nos refinados espaços interativos construidos de material digital na obra de Kas Oosterhuis, no objeto nômade de Jane Atfield: uma embalagem de maleta-mochilha-tenda (p. 130)
“Na medida em que a ação endógena extravasa, ela põe em contato, trança e se conecta com as forças exógenas estabelecendo um complexo vital, rendilhado, que se desenvolve para todos os lados, para cima e para baixo, realizando um jogo. Situação típica das ocorrências contemporâneas” (ibidem).
Isso significa que as linhas do design contemporâneo constituem um contínuo extravasar dos limites formais no próprio movimento de tessitura. Este é o sentido geral da obra de Zibel. E eu acho e espero que seja sempre mais partilhado por quem quer experimentar o trânsito além dos limites ou das ordens disciplinadas de arte-arquitetura-design. Às vezes na mesma página, obras aparentemente distantes conseguem conectar-se num tipo de ‘montagem-assemblagem’ criando uma obra outra: veja-se na página 79 a relação evocativa entre uma vídeo-artista como Pipilot Rist, a robotização na Volkswagen ou o terceiro braço de Stelarc. Tudo transborda graças ao design. As performances mais extremas de Schwartzkogler sobre a mutilação do seu próprio corpo extravasa no estilo pós-Madonna de Lady Gaga: ou de cada pessoa metropolitana focalizada na video-music (ou talvez seria melhor dizer no sound-design), de onde se inspira para modificar ou estetizar o seu corpo. Lady Gaga é sound-designer. Na França (e não só) agora é prática das mulheres depilar totalmente o corpo, que virou o estilo fufuniste, influenciado pelas imagens emitidas da you porn e que agora vira um comportamento normalizado ou comum como aconteceu no passado pelo batom etc. A capa da Playboy Brasil de alguns ano atrás explicou a mudança do design do pelo púbico feminino através duas simples imagens uma do lado da outra: os anos 1960 escuros e densos como uma floresta e os 2000 pelados e abertos como na desflorestação amazônica. Também a exposição Sensation em Londres transitou sobre esta modalidade do ser contemporâneo, já no ano de 1997 (língua = ferro de passar roupa), depois que em Kassel nasce a exposição intitulada Post-human, onde o cruzamento crescente entre corpo, arte, tecnologia –techno-corpo ou body-corpse na minha maneira – desloca o clássico dualismo orgânico-inorgânico, corpo-coisa, pele-mercadoria. Um estranho fetichismo visual triunfante....
O que falta em algumas universidades (não só brasileiras) é a cultura digital. O digital não é apenas uma técnica. É muito mais, penetra nas lógicas e nas complexidades das linguagens. Se é verdade, como se manifesta no recente estudo publicado pelo Digital Economy Rankings, que o Brasil é o 42° no mundo na aplicação do digital na economia. Na empresa privada, no ambiente dos negócios ou no lado social e cultural, político e ambiental, a tecnologia digital é fraca. E ainda mais na universidade. É lugar comum enfrentar o digital como técnica, não como medium para criar culturas e conectar pessoas. No campo do design-arquitetura-arte, o design digital não é só uma técnica: o digital favorece perspectivas fundamentais diversas: consegue elaborar visões de imagens que não existem no mundo euclidiano, baseado sobre um tipo de geometria; o uso de materiais inovadores, não só concreto e vidro; enfim o digital está elaborando modelos de lógicas informáticas além do pensamento binário e além do web 2.0. Nestas lógicas outras vive o design.
Enfim, uma coisa que gostaria de discutir comigo mesmo, com Zibel e com aqueles que querem penetrar no desafio da complexidade do design: Além das Formas enfrenta corretamente alguns dos pensadores mais significativos a partir da relação pós-moderno/pós-estruturalismo. Justo. Ao mesmo tempo, será que é hora de enfrentar de maneira mais oblíqua este assunto, assumindo um olhar pelo qual são alguns designers ou arquitetos ou artistas que ficam mais à frente ou além dos filósofos atuais? Será que estes filósofos tentam incluir no próprio paradigma formal tudo o que cresce e se experimenta na pragmática criativa e que não fica no círculo do próprio pensamento? Será que os filósofos e, em geral, os cientistas sociais precisam aprender não só com Las Vegas, como talvez nos anos 70, mas com Zaha Hadid, Lady Gaga, os Irmãos Campana, os artistas anônimos do stencil, o video-artista Blu que elabora grafites digitais metropolitanos, Tunga, Nele Azevedo, SCIArts etc.? Parece-me que a filosofia e as ciências sociais estão paradas na reproduçãoo da forma: e que, pelo avesso ou pelo abismo, o design expandido se move além.
Por isso, a noção de design ubíquo significa, para mim, que estas pragmáticas expressivas das contemporaneidades se manifestam numa multiplicidade flutuante de obras, às vezes também espontaneamente difundidas na vida quotidiana ou aplicada no corpo mutante de cada “eus”: ou que se apresentam na força enigmática de artistas compositivos que continuam viajando em direção a relações humanas menos determinadas pelo domínio e sempre mais por uma sensualidade conceitualmente outra. O design ubíquo oferece perspectivas não frontais, onde Velázquez (presente no livro), depois de abrir a porta, nos acompanha fora da sala, nos interstícios não-regulares urbanos, um Velázquez-flâneur multiperspéctico, apaixonado por elaborações ainda invisíveis, talvez pela própria ubiquidade estética ou pela cegueira dos críticos. Um Velázquez-flâneur que fuma o cachimbo de Magritte, faz xixi na fonte de Duchamp, descansa na poltrona-anêmona dos Campana, picha o seu nome no Masp e namora com Lady Gaga ou Zaha Hadid. O ubíquo está disseminado na metrópole, o ubíquo consegue vivificar a metrópole, o ubíquo conecta o que é diferente e às vezes incompatível. Se o design se expande, também a escrita vira design, uma escritura ideogramática que assume o design como uma outra caligrafia, icônica e sônica.
A conclusão de Zibel é perfeita: “se o pensamento contemporâneo fez desaparecer o centro fixo e, portanto, a ênfase na geometria, sinônimo de forma, em contrapartida conquistou um desdobramento em fluxo, garantindo a emergência do processo, do jogo” (p.206).
O design expandido é geófilo...
* Perbenismo é daquelas palavras quase intraduzíveis, que significa, aproximadamente, respeitabilidade e prudência burguesas.(N.E)
(1) Carlos Zibel. Além das Formas. São Paulo: Annablume, 2010.
Massimo Canevacci é doutor em Antropologia Cultural pela Universidade La Sapienza, de Roma. É autor de São Paulo, Cidade Polifônica, Antropologia Visual, entre outros. Atualmente leciona na Universidade Federal de Santa Catarina.
|
|