Quantas vidas restam ao jornal? Nem de longe é a primeira vez que o suporte tem a sua morte anunciada. Para nos limitarmos aos últimos oitenta anos, primeiro o rádio e depois a tevê colocaram em xeque as potencialidades desse veículo de informações diárias. Desses embates surgiram alternativas, o suporte se reinventou e, por vezes, mimetizou, sem vergonha e de maneira caricata, características de outros meios.
O jornal USA Today, por exemplo, em meados da década de 1980, se esforçou para incorporar a linguagem da televisão em seu leiaute. Textos mais curtos, uma profusão de cores, fotografias, mapas e gráficos emulavam uma visualidade que não estava na gênese dos periódicos. Mas o projeto carregado nas tintas se revelou um esforço inócuo, deixou ainda mais evidente os contrastes que há entre essas duas mídias.
Os primeiros esboços de popularização da internet, há mais de uma década e meia, trouxeram novamente essa discussão à tona. Os jornais, apavorados pelas possibilidades da leitura fragmentada que os hyperlinks propiciavam, se encheram de fios. Traços simulavam os hypertextos, ligando palavras em meio ao texto corrido a informações laterais secundárias. Tratava-se de mais uma caricatura, sem maiores consequências – até porque as clássicas notas de rodapé já davam conta dessa problemática muito antes da existência do problema.
Mas há, em toda essa história, o questionamento dos limites impostos pela própria fisicalidade do suporte. Se Jan Tschichold, no remoto ano de 1928, urgia que o jornal precisaria ser dinâmico para incorporar o novo ritmo da modernidade, o que dirão os profetas de hoje? Boa parte deles digitam aí um ponto final. A proliferação dos e-readers, a internet 2.0 e os novos meios de circulação de informações servem de alimento à retórica fatalista.
Diagnóstico
A internet é o lugar da informação, o jornal impresso é o lugar da análise. O jornal do futuro é analítico – esse é uma espécie de mantra repetido por aqueles que se debruçam sobre o tema. É impossível para o jornal impresso concorrer com o volume e a velocidade da informação da rede. A falta de agilidade de um meio que recorre a uma produção que se dá de modo industrial é incontornável. Portanto, tornar o jornal mais agradável e adequado à sua função é questão de sobrevivência, e o redesign parece ser, antes de mais nada, uma tentativa de mostrar que os jornais ainda estão vivos. E aqui cabe reforçar. Mas uma pergunta nos parece inevitável, será esse movimento uma espécie de canto do cisne? Sem o benefício da clarividência, contamos apenas com algumas intuições e uma isolada nota de falecimento. O agonizante Jornal do Brasil, cuja idiossincrática reforma gráfica do final da década de 1950 é um marco na história do design brasileiro, deixará em breve de circular.
É diante desses pontos que os dois maiores jornais de São Paulo realizaram, há pouco, suas reformas gráficas. Cabe aqui jogar luz sobre parte dos desdobramentos de tais esforços, numa tentativa de reacender o tímido debate gerado por essas mudanças.
Homenagem ao papel
O Estado de S. Paulo foi o primeiro a mostrar a cara nova, em março deste ano. A reforma foi encabeçada por Francisco Amaral, diretor de projetos da empresa de consultoria e estratégia editoral Cases i Associats, a mesma responsável pela radical reforma de outubro de 2004. O novo projeto aposta, de forma ainda mais contundente do que o de seis anos atrás, na ideia de tradição ao afirmar o caráter sóbrio e austero do jornal. As brincadeiras, quando acontecem, se dão de forma isolada, em um ambiente controlado. É também evidente a busca por um perfil editorial mais analítico e, portanto, mais sofisticado. Na briga pela atenção do leitor, o Estado impresso não tenta competir com os meios digitais: recua, torna-se mais limpo – mesmo diante de uma quantidade de fios que, por vezes, tende ao exagero. Se o suporte jornal foi um dia o veículo de maior densidade de informação, a reforma promovida pelo Estado propõe uma revisão dessa equação entre o espaço contaminado por tinta e o papel em branco. Mas isso tudo é alcançado sem a diminuição da profundidade dos textos, afinal, análise e síntese não parecem mesmo rimar.
É perceptível que a reforma tira proveito de um dos grandes trunfos que ainda restam ao jornal; a fisicalidade do papel – um suporte propício à leitura, sobretudo de textos mais longos. As páginas arejadas valorizam a legibilidade na medida em que criam respiros e definem o espaço de cada uma das informações. O novo projeto faz um uso mais horizontal do suporte, o que o aproxima da visualidade de uma revista. Essa organização parece dar mais dinamismo ao leiaute ao retirar o peso estanque das longas colunas. Mudanças na tipografia também reforçam essa preocupação. O texto corrido, que antes era composto na bojuda Benton Modern Two Roman, agora é dado na lânguida Freight Text Book – o que resulta em uma mancha gráfica menos densa e, portanto, mais fluida. A atenção a detalhes básicos de composição, que costumam passar batido no dia-a-dia das redações, também é notável. O Estado não recua desnecessariamente os primeiros parágrafos dos textos.
Um dos grandes desafios enfrentados por um projeto gráfico de um jornal é indiciar em cada uma de suas páginas a identidade visual que o particulariza, sem que isso anule as particularidades de cada um de seus cadernos temáticos. Nesse novo projeto é visível o esforço para individualizar essas diversas seções, porém há vezes, é preciso dizer, em que a apreensão do que neles é própria soa caricata. Um exemplo disso está no caderno Sabático cujas capitulares script remetem a um gesto caligráfico que revela uma aproximação ingênua do universo literário. Os suplementos culturais são, tradicionalmente, o espaço de experimentação dos jornais. A temática e a periodicidade semanal possibilitam que seu conteúdo seja tratado de forma mais leve. Eles são também o território da ilustração, algo que raramente vemos no suplemento do Estado. E, nesse sentido, não deixa de ser irônico que o Sabático tenha uma seção na qual republique fragmentos do antigo Suplemento Literário, o suplemento que há cinquenta anos atrás oferecia muito mais frescor e inventividade do que o atual não apenas do ponto de vista gráfico, porém também editorial. Mas para não ficar apenas nas picuinhas, cabe dizer que a modulação das colunas, quatro largas e uma estreita, trazem bem-vindos espaços em branco e oferecem respiros às páginas de denso conteúdo.
O cian é pop
A Folha de São Paulo apareceu remodelada dois meses depois do Estado, com design mais arriscado e controverso. Defendendo um novo jornal “mais fácil de ler”, a Folha vai na direção oposta do Estadão e opta por um jornal ágil, que tenta se aproximar da internet. A Folha alega que o novo jornal é “mais sintético na forma e mais analítico no conteúdo”. Mas, como é possível apresentar um conteúdo mais analítico enxugando os textos?
Uma das mudanças mais notáveis no novo projeto foi a inclusão de um retângulo azul no topo da página de abertura de todos os cadernos, ainda que seus nomes continuem grafados sobre ele em cores distintas. O caderno Poder aparece em texto azul marinho sobre o novo fundo cian; o caderno Cotidiano, aparece em texto roxo sobre fundo cian; Ilustrada, em um vibrante vermelho sobre fundo cian e assim por diante. O uso do fundo azul parece ser mais uma tentativa de imitar outro meio, como as mencionadas no início do artigo. Todo o espectro de tons de azul é amplamente empregado na internet. Na tela, o azul retroiluminado funciona bem em muitas situações. Já no papel perde grande parte da sua luminosidade e torna-se frio. Além do mais, essa demão de azul total – como no caso de uma nova fachada ou uma nova embalagem – parece solucionar, a duras penas, mais um problema de branding do que propriamente editorial.
É inegável que o azulão funciona para a construção de uma identidade visual forte. Para reforçar ainda mais essa identidade, percebe-se um esforço em unificar o design dos cadernos – mais uma vez, na direção oposta do partido de projeto do Estado. Ainda que tenha sido prevista certa liberdade para a diagramação de títulos especiais (empregando sempre as tipografias padrão), essas variações muitas vezes não são suficientes para individualizar os conteúdos a que se referem. É possível também perceber um uso mais ostensivo de imagens. O texto, nesse novo projeto, cede espaço para gráficos, fotos e ilustrações. Cabe lembrar que, historicamente, a aposta no conteúdo fotográfico sempre foi um recurso reservado aos jornais populares. Não é por menos que o extinto Notícias Populares se notabilizou por ser um celeiro de grandes fotojornalistas.
Uma exceção nesse cenário é o suplemento cultural Ilustríssima. Sua identidade visual é evidentemente bem definida, delineada por uma edição de arte que aposta no maciço uso de imagens - produzidas em sua maioria por artistas plásticos. São pinturas e desenhos que fogem do registro viciado das ilustrações, do lugar-comum dos bancos de imagens ou da facilidade das fotos de divulgação. Trata-se de uma estratégia corajosa, resta ver se o jornal terá fôlego para mantê-la.
A segunda mudança importante na reforma da Folha é o aumento do corpo dos textos. A opção por letras maiores é coerente, uma vez que o leitor do jornal envelheceu. Mas, o corpo agigantado, além de grosseiro, faz com que as linhas de texto comportem menos caracteres. Logo, as colunas ficam todas esburacadas, logo, a legibilidade é comprometida. O meio impresso conta com recursos tipográficos ainda não alcançados pela internet. Maltratar a composição dos textos é jogar pela janela um dos maiores trunfos que ainda restam a um jornal. Outro aspecto curioso nas mudanças coordenadas pela designer Eliane Stephan é a retomada da Folha Serif para os títulos, uma fonte desenhada para a primeira reforma promovida pela designer, em 1996, e abandonada posteriormente. É o efeito Benjamin Button, o novo projeto nasce com uma cara já velha.
O surgimento dos tablóides gratuitos em São Paulo pode também dar mais uma chave para a leitura da reforma promovida pela Folha de São Paulo. Segundo a The Economist, em 2003, dos dez maiores jornais brasileiros somente três eram tabloides. Hoje são cinco. A concorrência por público e anunciantes se pulverizou em meio a um universo mais popular. As feições menos aristocráticas impressas pela reforma sugerem uma estratégia de sobrevivência nesse novo ambiente. Vale ainda ressaltar que o novo projeto gráfico transformou em tablóide o caderno de esportes. O novo formato, a proliferação de imagens e os tipos pesados o fizeram mais próximo do jornal Lance.
Reformas por minuto
O projeto gráfico de um jornal, até pouco tempo atrás, era estanque. Diante da complexidade do suporte e da arrogância modernista, os designers afirmavam soluções aparentemente definitivas. E, claro, o processo industrial de sua produção impedia que mudanças fossem realizadas como num simples upload. Mas, para sobreviver, o jornal deve se desdobrar e absorver demandas que surgem em um ritmo aparentemente incompatível com a velocidade de suas rotativas. Nesse sentido, a frequência cada vez maior de reformas (vale lembrar, Folha e Estado haviam passado por redesenho há menos de quatro anos) sugere uma tentativa de incorporar um raciocínio que, até então, não era intrínsico ao meio. Quem sabe esteja aí, e não em seus aspectos formais, o grande mérito das reformas encabeçadas pelos dois jornais.
Daniel Trench é designer (www.dtdg.com.br), mestre em Poéticas Visuais pela ECA-USP. É professor do curso de design visual da Escola Superior de Propaganda e Marketing
Sara Goldchmit é designer gráfica, mestre em design pela FAU-USP e autora do blog Design Diário (http://www.designdiario.com.br).