A leitura dos textos de Lina Bo Bardi equipara-se a um passeio por sua arquitetura. Através de ambos os meios — palavras e argamassa —, nos defrontamos com manifestos pungentes. Ideias que, nas mãos da arquiteta, são tão brutas quanto líricas. Acessar tais pensamentos num único e bem composto volume é, sem dúvida, o grande mérito do livro Lina por Escrito, organizado por Silvana Rubino e Marina Grinover e editado pela Cosac Naify.
Lina dispensa apresentações. Basta recordar que chegou ao Brasil em 1946 e por aqui ficou trabalhando, como poucos, no descobrimento, na recuperação e valorização da cultura do país. Vinda da Itália, imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, enxergou aqui um campo aberto para a construção de uma sociedade moderna, na acepção mais genuína da palavra. A grande maioria dos trinta e três textos selecionados no livro, escritos entre 1943 e 1991, endossa de alguma maneira essa toada.
Organizados em ordem cronológica, é possível acompanhar linearmente o trajeto grafado de Lina. Ainda em Milão, escreve para a revista Domus — divulgando com entusiasmo os preceitos do modernismo europeu e norte-americano na arquitetura e no desenho industrial.
No início de sua chegada ao Brasil, edita e escreve para a revista Habitat — projeto integrado ao Museu de Arte de São Paulo, assim como o emblemático Instituto de Arte Contemporânea (do qual Lina é também peça chave). Lemos aqui, nas entrelinhas, não só o engajamento projetual da arquiteta como, também, seu entrosamento político com figuras importantes do cenário nacional da época. Na Habitat, Lina escreve durante quase uma década, passando por análises concretas, arquiteturais, que vão das casas de Vilanova Artigas e do Ministério da Educação do Rio de Janeiro até sua própria residência no Morumbi, a Casa de Vidro.
Contudo, é em alguns textos de foco mais aberto que sua prosa atinge o âmago de questões fundamentais para o desenvolvimento do país: o papel social e político da arquitetura e a passagem de uma sociedade pré-artesanal para uma sociedade industrial. Nesses escritos, Lina imprime com veemência toda sua crença. Seu discurso, apesar de soar hoje ingênuo para nossa realidade um tanto amarga, é autêntico. Distancia-se de qualquer arrogância civilizatória estrangeira, engendrando-se na terra, nas raízes, no povo. Basta compararmos, por exemplo, o legado deixado aqui por Max Bill com o de Lina. Foi no racionalismo imperfeito e na autonomia da arte/técnica popular que a arquiteta apostou suas fichas e materializou seu ideário.
Olhando e compreendendo em profundidade o Brasil, nosso "presente histórico" (como a arquiteta preferia referir-se ao passado), é que Lina desvendou sua tarefa. Daí surgiram resultados quase improváveis como o Museu de Arte Moderna da Bahia, no Solar do Unhão, em Salvador, o edifício do Museu de Arte de São Paulo, situado no belvedere da Avenida Paulista e a Fábrica da Pompeia, exceção arquitetônica entre as diversas unidades do Serviço Social do Comércio. Projetos que apresentam, para além das empenas de concreto, sua versão memorial também selecionada na referida publicação. Textos que, como dito logo de início, são fac-símiles da essência de sua arquitetura. Uma arquitetura integralmente voltada para o coletivo.
Por fim, cumpre ressaltar um aspecto que poderá incomodar o leitor mais desavisado ou diletante na seara da arquitetura. Apesar da excelente introdução de Silvana Rubino, alguns escritos ganhariam se estivessem acompanhados por uma nota contextual — clarificando mais a fundo, em consonância com o momento em que foram concebidos, as questões e os embates em seus entornos. Pontuado o detalhe, o livro é obrigatório para qualquer interessado na cultura brasileira. Afinal, se para Lina "da estrutura sai a arquitetura", é de um profundo olhar reflexivo, crítico e acautelado que nasceram seus escritos.
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Celso Longo é arquiteto e mestre em Design e Arquitetura pela FAU-USP. Dirige, desde 2005, o Imageria Estúdio - escritório focado em projetos de design editorial, ambiental, promocional e identidades visuais para os setores educacionais e culturais. Em 2008, colaborou com o corpo curatorial da 9ª Bienal Brasileira de Design Gráfico, sendo responsável pela categoria Fluxos. Atualmente, também é professor do curso de graduação em Design Visual da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo.
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