Ano: II Número: 22
ISSN: 1983-005X
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Coisas, códigos, construções
André Stolarki

Livro: O Mundo Codificado Autor(a): Vilém Flusser Editora: Cosac Naify

Postado: 18/10/2009

   

A coleção de design editada pela Cosac Naify, iniciada há três anos com o objetivo de editar obras de referência no panorama internacional e trabalhos originais produzidos no Brasil sobre o design brasileiro, lançou há alguns meses O mundo codificado, que já foi reimpresso. É o segundo trabalho de referência teórica publicado pela editora, que há pouco mais de um ano lançou Objetos do desejo, do historiador inglês Adrian Forty. Com ele, a coleção passa a contar com oito títulos.

O mundo codificado ocupa um lugar singular dentro dessa coleção e no conjunto dos títulos que discutem design e comunicação, tanto pelo caráter essencial de suas reflexões quanto por constituir, para nós, terreno ainda bastante inexplorado.

Um filósofo que se interessa por design
Para começar, Vilém Flusser não é um designer que se interessa por filosofia, mas um filósofo que se interessa por design. Caberia perguntar: por quê? O que há de tão interessante no design para constituir um campo de interesse filosófico? Para abreviar a resposta, digamos que, desde a era moderna, os resultados da atividade produtiva da humanidade problematizaram o mundo a ponto de colocar em cheque a continuidade de sua própria existência.

No entanto, ao mesmo tempo em que foi se tornando onipresente e onipotente, transformando nossa maneira de entender e de nos relacionarmos com o mundo, o design perdeu gradativamente a consciência das próprias questões nas quais tocava.

Não que não tenham havido pensadores surgidos de dentro dos grupos que desde o início do século passado puseram o design na linha de frente da construção de uma nova sociedade, ou que não tenham surgido filósofos interessados no problema da comunicação. O fato é que, estranhamente, não houve ninguém que tenha, ao mesmo tempo, colocado o design no centro de um interesse propriamente filosófico e contribuído para o seu debate com o rigor que o pensamento filosófico exige.

Judeu nascido em 1920 na cidade de Praga, Flusser cursou a faculdade de filosofia, que não chegou a terminar por conta da invasão alemã, em 1939. Um ano depois, aportou no Brasil, engajando-se em atividades diversas e ingressando no debate filosófico de forma auto-didata. Foi professor convidado de Filosofia da Ciência da Escola Politécnica e ajudou a fundar o curso de Comunicação Social da FAAP, mas foi, acima de tudo, um prolífico produtor de pequenos textos, escritos para a Revista Brasileira de Filosofia e para os jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e Frankfurter Allgemeine Zeitung, entre outros. Flusser voltou à Europa em 1972, estabelecendo-se na França até sua morte, ocorrida em 1992.

Textos enganosamente fáceis
Os textos que compõem O mundo codificado trazem a marca de sua melhor produção: são curtos, rápidos, claros, precisos, incisivos, e por que não dizer, levemente impacientes – qualidades que também caracterizaram o seu modo de agir e falar. De tão deliciosos de ler, passam muitas vezes a impressão enganosa de serem fáceis de entender. Como afirma Rafael Cardoso, organizador desta edição, "Para o aluno de faculdade ou de pós-graduação, habituado a lutar com alarmante freqüência contra a sintaxe confusa dos mestres encarregados de ensiná-lo, a experiência é grata e refrescante. O perigo pode ser o efeito contrário – o de ser levado insensivelmente na correnteza do pensamento flusseriano com a displicência de uma folha a deslizar na superfície de um riacho doce e cristalino. Que ninguém se engane com a aparência amena dessa água, cuja superfície transparente esconde a profundidade vivente de um oceano!"

Originalmente escritos em alemão, esses textos foram publicados em diversas línguas, sempre em forma de coletânea. Tomados isoladamente, funcionam muito bem e constituem pequenos clássicos em seus temas. A organização de Rafael Cardoso procurou fortalecer o conjunto, pela cadência progressiva de sua divisão temática: "Coisas", "Códigos" e "Construções", ou, se preferirmos, "conceitos básicos", "linguagem e comunicação", e "os problemas e as responsabilidades do designer".

Quatro graus de afastamento do mundo
As principais questões da filosofia do design e da comunicação de Flusser poderiam ser resumidas da seguinte maneira: todas as ações do homem procuram superar a sua condição natural, que é viver condenado à morte – uma realidade sem sentido. A comunicação, o acúmulo de informações e a transformação do mundo de um modo geral são tentativas de escapar a essa condição, de trapacear a natureza, de afastar-se do mundo tal como ele nos é dado. Por isso, entender os produtos humanos é entender a essência de sua existência.

As primeiras imagens produzidas pelo homem podem ser entendidas como tentativas de se afastar do mundo, e suas primeiras invenções como tentativas de superar seus obstáculos. Em seguida, a escrita e as primeiras civilizações impuseram um novo grau de afastamento do mundo, alterando completamente o seu significado: a substituição de imagens por descrições e a adição de aparatos capazes de alterar o curso das coisas (dos rios, por exemplo) deixaram para trás o destino e instauraram a história. O surgimento da ciência, na era moderna, ampliou esse afastamento, fazendo o cálculo predominar sobre a escrita, ou melhor, a análise predominar sobre adescrição. O momento que vivemos hoje situa-se em um novo grau de afastamento, na medida em que o cálculo (cuja essência é imaterial e eterna) possibilitou a criação e a disseminação de novas formas, novas imagens e novos objetos.

Nas palavras do próprio Flusser, "primeiramente recuamos do mundo para poder imaginá-lo. E então nos afastamos da imaginação para poder descrevê-lo. Depois nos afastamos da crítica escrita e linear para podermos analisá-lo. E, finalmente, projetamos imagens sintetizadas a partir da análise, graças a uma nova imaginação."

Como ocorreu na passagem da pré-história para a história, esse novo "grau" de afastamento alterou completamente o seu significado. Em primeiro lugar, por conta do predomínio absoluto da imagem técnica, cuja leitura é da ordem do imediato, ou seja, do não-histórico. Em segundo lugar, porque essas próprias imagens e objetos deixaram de ser transformações aplicadas diretamente a um mundo de contingências e passaram a ser formas da realização das infinitas possibilidades do cálculo e de suas "verdades eternas". E, finalmente, porque adentramos o campo da manipulação biotecnológica.

Ultrapassando Deus
Segundo Flusser, aprendemos que nossas fórmulas e nossas formas de entender e codificar o mundo não possuem a "veracidade eterna" do cálculo. São apenas modelos que aplicamos ao mundo segundo aquilo que nossa realidade biológica e nosso código genético permitem formular, e que nosso sistema nervoso permite captar. Se as novas tecnologias permitem manipular e simular de forma completa as informações captadas por esse sistema limitado, então é lícito dizer que os homens estão a ponto não apenas de igualar, mas de ultrapassar Deus, criando mundos artificiais verídicos e verdadeiros, porque baseados no cálculo.

As conseqüências disso são imensas e, de acordo com o filósofo, "não há paralelos no passado que nos permitam aprender o uso dos códigos tecnológicos" que estamos começando a utilizar. De qualquer forma, reflexões com a qualidades dos textos de Flusser já são um ótimo começo.

Como aponta Rafael Cardoso em seu texto de introdução, "a filosofia de Flusser empurra nossa visão de mundo para além do burburinho histórico de nomes, datas, relações e contextos. Ela torna possível desvendar a lógica mais ampla do sistema engendrado pela humanidade na tentativa milenar de superar suas limitações físicas por meio da tecnologia. Reportando-se ao passado mítico – Deus e o Diabo, Prometeu e o roubo do fogo divino, os astros e as estações –, ela conduz até o limiar das eternidades artificiais que podem ser manipuladas por nós: como profetas, deuses, criadores… enfim, como designers de mundos projetados".

Textos proféticos
Não por acaso, uma das características mais curiosas de O mundo codificado é a sua capacidade de prever o futuro, ou melhor, de descrever as transformações mais radicais em curso na nossa vida de forma cristalina e ao mesmo tempo profunda, tendo em conta que seus textos foram escritos em sua maioria no início da década de 1980, ou seja, há aproximadamente 25 anos, quando os computadores pessoais apenas se insinuavam em nosso cotidiano.

Mas seria errado considerar esse livro sob a perspectiva de uma profecia que se realizou. Seria mais correto supor o seguinte: a filosofia de Vilém Flusser mostra que os designers, embora tenham um papel central nessa história, ainda caminham sobre um chão conceitual muito frágil, e mostra de maneira enfática as saídas para essa fragilidade. Nesse caminho, destrói sem dó lugares comuns, verdades superficiais e leis não escritas e, de quebra, lança luz sobre problemas que, a despeito de todo avanço tecnológico, sequer começamos a enfrentar.

Como afirma Rafael Cardoso em seu texto de introdução, "ainda há muito em Flusser para ler e descobrir". De todo modo, essa pequena seleção já pode reclamar para si a condição de texto essencial à formação de qualquer designer, e deve, em pouco tempo, transformar-se em referência obrigatória para quem quiser entender melhor a encruzilhada entre a materialidade temporal e a imaterialidade eternizada à qual nossa cultura parece estar chegando.

Abaixo, um breve resumo dos ensaios que compõem o volume.

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Coisas

"Forma e material" mostra como as noções de forma e material tendem a aproximar-se das concepções forjadas a seu respeito na Grécia antiga, na medida em que nossas formas digitais (cálculos imateriais e eternos) estão para os objetos assim como a "verdade" das idéias estava para a materialidade das coisas. 

"A fábrica" demonstra que a melhor forma de conhecer e reconhecer os homens reside em suas fábricas, isto é, em suas formas de produção, e sugere que as fábricas no futuro serão como escolas.

"A alavanca contra-ataca" mostra que os objetos funcionais que criamos nos devolvem o gesto que pedem de nós, moldando-nos à sua função, e que faz sentido, portanto, perguntar o que nos será devolvido de nossas criações funcionais que começam a adentrar o campo da biotecnologia.

"A não-coisa (1)" mostra como as bases materiais do novo tipo de informação com que lidamos (a informação digital) é desprezível do ponto de vista existencial, e como o nosso horizonte de interesses deve migrar rapidamente das coisas para as informações.

"A não-coisa (2)" indica que a imaterialidade e perenidade dessas informações podem significar o salto para fora do circuito vicioso da transformação da natureza em cultura e da cultura em lixo, mas alerta para a falsa liberdade oferecida pelos programas, que só permitem fazer aquilo que estão programados para fazer.

"Rodas" parte da constatação de que as rodas estão desaparecendo de nosso cotidiano. Mostra como a roda é a invenção que fraturou o destino, inventando a história e o progresso. E mostra como o próprio progresso se transformou em uma roda que desliza sem atritos, impossível de ser freada.

"Sobre formas e fórmulas" demonstra que só podemos explicar o mundo com os modelos que fazem parte do nosso "programa de vida", e, portanto, que é possível pregar "não somente uma, mas uma série de peças nesse programa vital", criando mundos verdadeiramente alternativos para vivermos, com o perigo de replicarmos o mito de Prometeu na inconsciência de nossas ações.

"Por que as máquinas de escrever estalam" constata que, "graças aos computadores, a beleza e a profundidade do cálculo tornaram-se perceptíveis aos sentidos", e que, por isso, "as pessoas deveriam de uma vez por todas aprender a contar" (leia-se: dominar os computadores em seus níveis mais básicos de cálculo, ou encarar o cálculo com outros olhos). 

Códigos

"O que é comunicação?" demonstra que o homem se comunica não por ser sociável, mas por não suportar a condição de ser um solitário condenado à morte numa existência sem sentido, e que acumular informações é a conseqüência contranatural dessa condenação. A partir daí, Flusser analisa as duas formas básicas de acúmulo de informação – o discurso e o diálogo –, mostrando que o diálogo, tão escasso em nossos dias, é a forma privilegiada de produção de informações novas.

"Linha e superfície" compara o funcionamento do discurso linear do texto, que é decifrado à medida que é lido, e o discurso instantâneo da imagem, que pede decifração depois de ser percebido, mostrando como "a síntese da mídia linear com a de superfície pode resultar numa nova civilização".

"Mundo codificado", o ensaio que dá nome ao livro, aprofunda as conseqüências do predomínio das imagens no panorama atual das informações com as quais lidamos, comparando-o com o domínio das imagens no mundo mágico do homem pré-histórico e mostrando como esse discurso é, por sua própria natureza não-narrativa, anti-histórico. A constatação: "Não há paralelos no passado que nos permitam aprender o uso dos códigos tecnológicos" que estamos começando a utilizar.

"O futuro da escrita" demonstra como a escrita tornou-se um dispositivo a serviço da criação de imagens, e como as imagens passaram do estatuto de ilustração do mundo para o de ilustração de textos. Como a leitura das imagens é oposta à da narrativa textual, abre-se a crise e a necessidade de escrita explicar não mais as imagens do mundo, mas as ideologias escondidas por trás das imagens tecnológicas.

"Imagens nos novos meios" intui o funcionamento da internet (ainda sem mencioná-la), mostrando o seu potencial de "neutralizar de um modo técnico o 'poder' político, econômico e social" das imagens de mão única".

"Uma nova imaginação" fecha a segunda parte recompondo a história da produção dos signos humanos, para melhor expor a natureza adimensional das novas imagens, que mal começamos a conceber: "primeiramente recuamos do mundo para poder imaginá-lo. E então nos afastamos da imaginação para poder descrevê-lo. Depois nos afastamos da crítica escrita e linear para podermos analisá-lo. E, finalmente, projetamos imagens sintetizadas a partir da análise, graças a uma nova imaginação."

Construções

"Sobre a palavra design" desmascara a "trapaça" que está por trás de toda técnica, toda arte e todo o design – enganar a natureza – demonstrando como esse ardil, ao mesmo tempo em que confere valor aos objetos, não se livra nunca de ser uma trapaça, que retira das coisas sua verdade e autenticidade para transformá-las em objetos falseados e, em última análise, descartáveis.

"O modo de ver do designer" usa a oposição entre tempo e eternidade para demonstrar como o olho do designer está sempre transportando formas e modelos "eternos" e "imutáveis", que intui e manipula, para a temporalidade – o que o aproxima dos antigos profetas mesopotâmicos.

"Design: obstáculo para a remoção de obstáculos" parte da palavra objeto ("problema", em grego) para mostrar como os objetos de uso são ao mesmo tempo, solução e obstáculo, e como "a cultura tende a se tornar objetiva, objetal e problemática". A saída para isso poderia estar no design imaterial e na responsabilidade para com o lixo.

"Uma ética do design industrial?" expõe três razões pelas quais é imperativo construir uma ética para a profissão: ausência de autoridade pública para estabelecer normas, diluição de responsabilidades na natureza cooperativa do design e diluição sobre a responsabilidade pelos objetos fabricados pelas máquinas. Aqui, o desinteresse dos designers pelo tema pode significar total ausência de responsabilidade.

"Design como teologia" fecha o livro, partindo do encontro entre as civilizações ocidental e oriental – em tudo opostas na atitude em relação à vida e à morte – que ocorre nos objetos industrializados de circulação mundial. Para entendê-los, seria necessário formular uma nova teologia, que unificasse essas civilizações e abrisse novas perspectivas de mundo. 

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Design como ardil, designer como profeta, design como obstáculo, design irresponsável e design como teologia. Esse é o saldo final do conjunto incrivelmente abrangente que resta da leitura das duzentas e poucas páginas de O mundo codificado.

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FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. Rafael Cardoso (org.). 224 pp. ISBN 978-85-7503-593-1

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André Stolarski, 39, é designer visual formado pela FAU USP. Foi responsável pelo departamento de design do MAM RJ de 1998 a 2000. Em 2002, associou-se à produtora de design Tecnopop, eleita Empresa de Design dos anos de 2007 e 2009 pelo Prêmio Colunistas. Lecionou na ESDI UERJ e na ESPM RJ de 2006 até 2008. Atuou como Diretor da ADG Brasil entre 2007 e 2009. Atualmente, faz parte do programa de Mestrado da FAU USP. É membro do Conselho Editorial da coleção de design da editora Cosac Naify e Diretor de Design da Fundação Bienal de São Paulo. Possui diversos trabalhos premiados no Brasil e no exterior.

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Leia aqui a resenha deste livro elaborada pela Profa. Ana Lúcia Lupinacci e publicada na AgitProp nº12 (dez.2008).

 


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