Michel Arnoult foi um estrategista da produçao seriada e um grande incentivador do móvel popular no Brasil. Todo seu trabalho posterior à fase da Mobília Contemporâneo, empresa da qual foi sócio e designer, se apoiou numa espécie de utopia do mobiliário bom e barato. Sempre otimista, tinha larga visão das possibilidades do mercado brasileiro.Hoje,cinco anos depois de sua morte, muitos de seus prognósticos se mostram precisos e são dicas importantes para designers dos novos tempos brasileiros.
Abaixo, a transcrição da entrevista que revela o pensamento estratégico de Arnoult. (EL)
Hoje eu gostaria de explicar um trabalho que já estou fazendo há mais ou menos quatro anos, que é a tentativa de desenvolver, com um bom nível de design, uma cadeira popular. Popular sendo que ela é barata, ou dentro do mais barato possível.
Então primeiro vou lhe mostrar a cadeira e depois voltaremos a analisá-la melhor.
Essencialmente, duas características que devem ser consideradas: ela não tem nenhuma pretensão de criação estética, mas ela é barata porque utiliza a madeira eucalipto como matéria-prima, que é a mais barata que existe; e que ela é composta inteiramente com sarrafos de 5 cm de largura por 2 cm de espessura e comprimentos variáveis o que permite a secagem muito fácil ao tempo, sem grandes equipamentos.
Duas variações para comercialização, assento ripado e assento estofado, evidentemente a forma mais sofisticada.
A origem desta cadeira é a cadeira mais comum que existe no mercado.
É a cadeira de ripas com o seguinte defeito: ela é toda ortogonal, o encontro é em ângulo reto com o assento, que é em ângulo reto com os pés da frente. Então, simplesmente, fiz uma pequena inclinação do assento a 5 graus, e uma inclinação em relação ao assento o que já a tornaram quase confortável.
O que é um produto popular? Um produto popular, no meu conceito,... o que é uma cadeira popular? É uma cadeira que tem um preço de varejo de R$50. Menos que isso é muito difícil conseguir. Estou falando do preço do consumidor.
Para ter uma idéia do que é a quantificação desse mercado brasileiro, vou jogar aqui umas cifras que levantei ultimamente. A Bérgamo, por exemplo, que é uma fábrica de dormitórios, fabrica 15 mil dormitórios por mês. O canal de venda Ponto Frio, ou então a Casas Bahia e todos esses grandes canais de vendas populares, vendem de 600 a 800 conjuntos de jantar. Um conjunto de jantar é a mesa e quatro cadeiras.
Isso dá ao produto popular umas diretrizes muito importantes. O conceito de fabricação precisa ser o de fabricação em série exatamente organizada onde casa posto de trabalho é estudado para ter uma sequência realmente economia no ponto de vista da mão-de-obra.
Essa cadeira, por exemplo, tem de ser feita em menos de uma hora. Menos de uma hora é o limite aceitável para ser uma cadeira econômica. Portanto, você precisa pensar nas juntas, em toda seqüência de operação de usinagem para caber dentro desses 60 ,50 ou 45 minutos, se for possível.
Isso não é nada extraordinário. Eu vi na Alemanha uma fabriqueta com 30 operários que fazia uma cadeira. Produziam 300 cadeiras por dia, 6 mil cadeiras por mês. Nas condições brasileiras, não há nenhuma máquina extraordinário: eram simplesmente, postos de trabalho em sequência e bem organizados.
Mais um dado sobre a quantificação. Essa cadeira foi para a Inglaterra, porque ela é o país da Europa que aceita e que conhece a madeira eucalipto. A Inglaterra está acostumada a ter móveis de eucalipto, feitos na África do Sul ou então na Austrália, terra de origem de eucalipto. Então para mim é um futuro fantástico porque é uma madeira de reflorestamento, portanto com todas as vantagens de madeira reflorestada, e é aceita para exportação. Enquanto as madeiras de extração da Amazônia não são aceitas mais na Alemanha, Holanda e outros países. Precisa ser um produto de reflorestamento.
Essa cadeira foi para Inglaterra sem nenhuma pretensão. Recebi um faz com croquis dizendo que eles queriam uma cadeira desse tipo.
Então durante sábado, domingo e segunda-feira, foi feito o protótipo que foi mandado na terça-feira. A resposta foi que podia fazer 10 mil e 6 mil mesas, para começar. Infelizmente a fábrica com que eu trabalhava, na época, não tinha condições de fazer nessa quantidade.
Outra experiência sobre a quantificação que acho ser importante. Fiz outra cadeira torneada, também de eucalipto e com os mesmos princípios, e mandei para os Estados Unidos. Tive uma resposta surpreendentemente positiva. Só o preço era considerado alto. O fabricante exagerou: no lugar de U$20, que eu acho que deveria ser o preço, pediu U$35. Evidentemente foi recusado. Mas o comentário foi o seguinte: “se vocês conseguirem fazer essa cadeira por R$20, nós compraremos 50 mil unidades a cada três meses.” São quantidades bastante gostosas de se considerar.
Então, é esse o objetivo que estou tentando atingir. Como designer recebo meus royalties, logo quando a maior quantidade, melhor rendimento.
Vamos falar da madeira. Para mim o eucalipto é a descoberta do século para o Brasil. É uma enorme vantagem que o Brasil tem sobre os outros países do mundo.
Na Austrália se consegue um metro cúbico de madeira em 15 anos. Aqui no Brasil, este mesmo metro cúbico, em 6 anos. Na Europa, entre 90 a 120 anos. Então é fantástico a possibilidade que isso representa. Uma madeira de densidade de 60, corresponde a um mogno. Um pouco mais duro não chega a um marfim mas é quase madeira de lei. Ela trabalha muito bem na usinagem, corte perfeito, boa furação e colagem excelente.
Então nós podemos considerar certas peças, por exemplo como este encosto redondo que é feito por colagem de três sarrafos. É uma forma muito econômica de fazer isso porque é feito a frio. Então essa madeira permite dentro de uma tecnologia de Terceiro Mundo bastante simples como é a que nós temos no Brasil. Nos permite uma quantificação muito boa de produção e preços altamente competitivos.
As restrições... porque não tem nada totalmente perfeito,não? As restrições com relação a essa madeira é uma só. Elaé pouco homogênea, quero dizer, ela tem um desenvolvimento onde têm tensões dentro da madeira muito irregulares. Por isso ela tem uma secagem delicada, não digo impossível. É um pouquinho difícil e não é mais que isso. É um detalhe que não está bem resolvido. O IPT e a Duratex estão tentando resolver. Mas praticamente está quase certo que até o fim do ano, nós vamos ter condições de secar esta madeira de uma maneira industrial e econômica.
Todos esses fatos me levaram a tentar entrar no mercado popular. (Ainda não entrei). Estou com duas outras fábricas e é provável que se tudo correr bem começamos a entrar ainda esse ano no mercado popular.
Têm uns obstáculos extremamente imponderáveis e abstratos mas que são fortes: primeiro (estou analisando de um ponto de vista bastante subjetivo), sinto uma resistência tremenda por parte dos compradores das grandes firmas, não dos compradores finais. Pelo contrário, acho que o público consumidor aceita perfeitamente esse tipo de desenho que não tem nada de extraordinário e simplesmente é um desenho que não é costumeiro. Um público da faixa “C” que vê uma cadeirinha dessa por R$50, ele topa porque não é um idiota, e ela é confortável, tem vantagens. Mas o comprador como as grandes lojas com enormes volumes de compra detestam alguma coisa que não seja totalmente dentro da tradição. Então eles acham que isso não vai pegar, que isso não vai vender porque é diferente, Eles não têm argumentos.
Vamos tentar e vamos ver o que vai acontecer. Eles acham que é um modelo pouco brasileiro e muito europeu. Eles são contra um monte de novidades. Por exemplo, eles são contra a desmontabilidade. É um contra-senso tão grande ser contra a desmontabilidade.
O sistema de venda do móvel popular é aquele que vocês talvez vocês conheçam mas duvido, porque nós não estamos acostumados a entrar numa loja popular, nós temos a repulsão no começo pois a apresentação é tão desastrosa como os produtos que são jogados ali e eles precisam vender.
O sistema deles é o de receber cadeiras já prontas, estocá-las inteiras. Então proponho uma cadeira que eles vão receber em pacotinhos de 50 cm X 50 X 6cm. Então num teste que nós fizemos, tivemos que montar na entrada da loja para receberem montadas. Então nos entregamos as cadeiras numa Kombi, coisa que é impensável para esse tipo de comércio pois geralmente são caminhões grandes, e montamos as cadeiras e aí foram aceitas e foram guardadas, estocadas, montadas.
Tem um ponto que também me parece óbvio que eles, esses grandes compradores, meus maiores inimigos, não estão visualizando que podem oferecer aos consumidores um produto num pacote que é um fato extremamente positivo. O trabalhador vai com a mulher e seus filhos comprar uma sala de jantar e pode, através desse sistema, colocar no banco de trás de seu fusca a sala de jantar completa – uma mesa e seis cadeiras, levar na hora e montar na casa dele, em vez de esperar quinze dias, um mês ou às vezes até mais para chegar um caminhão no cantinho onde ele mora, para entregar um móvel montado. Essas coisas, para mim, são todas óbvias que nem sei como discutir. Se não gostam de desmontabilidade então acabou com o meu produto, ele não tem mais valor – o desmontável.
Para exportação é evidente que tem de ser desmontável, e muito desmontável. Essa cadeira, por exemplo, desmontada no pacotinho, cabem 1600 a 1800 num container. É um excelente grau de desmontabilidade.
Expondo minha experiência profissional. Descobri uma coisa muito triste que até agora estou sozinho neste deserto de material de design que é o produto popular. Tem outro designer de Curitiba, o Guilherme Dante que já tem uma experiência e conseguiu entrar no Poto Frio. Daqui a pouco vamos ser mais que dois. Mas um dos problemas da colocação da minha forma de trabalho - não tenho mais fábricas (tive uma fábrica durante vinte e cinco anos, aliás trinta e cinco anos), estou tentando vender, simplesmente o desenho e depois tenho que encontrar uma fábrica... é muito difícil.
O fabricante que aceita um desenho desses, vai ter que modificar pelo menos uma parte da fabricação dele para dar a possibilidade de fabricação desse produto a um preço razoável.
Tem um investimento grande de tempo porque na realidade é um esforço que talvez, não será compensador e uma dúvida grande que tem um fabricante. E se ele não organizar essa fabricação, com os postos de trabalho seguidos, layout novo, (falei sobre a fábrica da Alemanha); se não organizar essa coisa interna, ele não vai ter o custo competitivo e vai ser uma solução que não será uma coisa nem outra.
Esse problema de layout, a organização da fábrica é um complemento indispensável.
O cliente com o qual estou trabalhando agora, no norte do Estado de São Paulo, contratou uma firma para redesenhar inteiramente a distribuição interna da fábrica. Quero dizer, um novo layout o que para mim é muito gostoso porque encontrei alguém que entrou na minha canoa e ele vai, nós vamos, graças a isso, ter realmente um preço muito competitivo e as quantidades competitivas de que precisamos nesse tipo de mercado. E não precisa de nenhuma máquina especial; os móveis que faço são feitos para utilizar as máquinas tradicionais brasileiras.
Quando se desenha uma cadeira destinada ao mercado em série, tem de conceber e saber exatamente o tipo de layout que será utilizado para fabricar essa cadeira, então me restrinjo ao uso de máquinas das mais clássicas possíveis: quatro faces, empenadeira...
A única coisa que saiu um pouco é na parte da furação. A cadeira tem uma junta que é extremamente frágil. Se essa junta não for bem resolvida, a cadeira quebra. Na frente é mais fácil, concebo três cavilhas e recomendo que se faça com uma furadeira que agora é padrão, com espaçamento de 17mm. Hoje em dia, quase todo mundo tem essa furadeira especial.
O equipamento necessário é sempre o mais clássico possível. Não precisa importar centros de usinagem com computador, de 20 mil dólares. Vamos ficar com essa tecnologia de Terceiro Mundo: um produto bem adaptado com aceitação internacional, da mesma forma que tivesse sido feito com esses equipamentos mais sofisticados.
Uma consideração mais histórica. Em 1950, realmente houve uma curiosa concentração de design no Brasil.O Branco e Preto, um ninho de arquitetos – cinco ou seis arquitetos – que fizeram a primeira loja de design em São Paulo. Depois veio uma turma de arquitetos cada um fazendo no seu canto: o Sérgio Rodrigues na Mobilínea, o Geraldo de Barros com a Hobjeto. A ideia era a seguinte: apresentar ao consumidor de classe média, um pacote de produtos com equipamento completo de uma casa. Tinha sala de estar, jantar, dormitório, uma quantidade grande de produtos.
O consumidor dessa época, 54 a 60, tinha realmente uma escolha de nível em matéria de móveis residenciais. Uma conhecida minha europeia de passagem no Brasil, ficou admirada em encontrar um nível de design tão bom naquela época. Depois, com o tempo, a fórmula entrou em decadência e tornou-se obsoleta.
Hoje em dia não pode ser concebido um pacote de sessenta produtos por apenas uma fábrica. A fábrica não tem condição, economicamente falando.
O segundo passo da evolução nesses últimos anos é a entrada de Tok Stok nos anos 70 a 80. É uma marca realmente histórica. O móvel desmontado vendido em pacotes era aceito por 90 por cento dos consumidores e montado na casa deles. Isso era uma novidade incrível. E o fato da Tok Stok apresentar uma variedade incrível é porque está desligada das fábricas. São comerciantes que não querem saber de fábrica e têm uma variedade enorme de produtos: o produto bom fica e o ruim, some. E essa renovação é semanal. Algumas sugestões de profissionais e outras de não profissionais, e o resultado é essa nova forma de conceber um móvel. Se você precisa de uma mesa, vai na Tok Stok, compra e monta sua casa.
O terceiro ponto, na minha forma de analisar, é o surgimento do eucalipto como matéria-prima e será um sucesso mundial. Todo mundo vai querer e será uma nova fase. A de inverter a corrente de exportação. Até agora, o Brasil fabrica produtos com desenhos vindos de fora mas nunca, ou é raríssimo, o caso de produtos brasileiros serem exportados.
O Brasil tem um potencial de fabricação bem grande. Tem uns quatro ou cinco grandes fabricantes. No Sul, tem um centro de fabricação, perto de Porto Alegre; no norte de São Paulo – Votuporanga, Mirassol, são concentrações de cem fábricas extremamente bem equipadas.
Geralmente, o processo é assim: desembarca em São Paulo, um americano ou então um europeu com uma cadeira embaixo do braço e quer fazer 200 mil exemplares em cinco ou seis meses. Então ele leva direto pra São Bento, uma cidade de Santa Catarina – lá chegam diretamente três ou quatro compradores. Eles percorrem as cem fábricas e mandam produzir com o mesmo desenho. O Brasil produz dessa forma e exporta assombrosas.
Em 1993, um importador holandês encomendou durante um ano, mil contêineres duplos de 40 pés de produtos feitos em São Bento, o que são mais ou menos dez contêineres por mês. São quantidades enormes mas ninguém ficou sabendo. Então, é feito o produto, exportado mas com desenho vindo de fora.
Gostaria de participar da inversão dessa corrente: que o Brasil venda, nessas mesmas quantidades mas produtos feitos com o desenho daqui. Seria uma novidade. O Brasil é um grande exportador de móveis mas não é um exportador de desenhos. É um grande exportador de mão-de-obra, só falta o desenho.
Uma observação. Nos anos 1950, 60, havia no mercado de São Paulo e Rio de Janeiro umas dez firmas apresentando um pacote de produtos diferentes, todos eles válidos do ponto de vista do desenho. Nessa época, a fábrica foi criada para suprir a loja. Então,a fábrica era uma grande marcenaria que tentava enfiar no seu espaço, uma quantidade enorme para cada pacote dessas firmas: Mobilínea, Oca, Mobília Contemporânea.
Nós, da Mobília Contemporânea, tínhamos sessenta produtos diferentes; na mesma época, a Oca tinha duzentos. Nenhuma fábrica é capaz de produzir de maneira econômica, rentável, duzentos produtos. Uma marcenaria é produção artesanal confusa que precisa ser organizada.
A diferença hoje é a seguinte: uma fábrica faz uma cadeira. A Votuporanga faz uma cadeira e uma mesa, fazem 7 mil cadeiras e 1.500 mesas por mês. Querendo fazer outro tipo de cadeira, fazem apenas uma outra cadeira. Isso também é característica da evolução do mercado brasileiro.
A Tok Stok se aproveita disso porque tem vários produtos, todos eles feitos numa fábrica diferente. Tem 2mil produtos e 800 fornecedores. Então são poucos produtos por fornecedor. Porque eles têm condição de fazer série que é rentável.
Alguém numa mesa redonda, perguntou por que essa fixação por madeira maciça e por que não desenvolver produtos populares à base de aglomerados. Aglomerado é feito de fibras de madeira constituídas com resinas e prensada. Vejo assim: não existe no Brasil, bom aglomerado. A qualidade do aglomerado americano e particularmente europeu é muito melhor do que dos feitos aqui, por fábricas obsoletas.
Também tem o fato de que, diante desse futuro fantástico do país em relação à madeira maciça, desse sucesso incrível do reflorestamento do eucalipto, ninguém quer saber de aglomerado. Não será competitivo. Eu acho que todos os fabricantes, designers e o pessoal do móvel, estão pensando hoje em maciço.
O maciço oferece um futuro mais promissor do que produtos feitos com o aglomerado.
Na fábrica Bérgamo não entra nenhuma peça maciça: só aglomerado. Eles cortam tudo com máquinas computadorizadas. Mas não tem condições de exportar nem na África, pois lá existem produtos melhores feitos na Itália.
*A entrevista acima é a transcrição da fala de Michel Arnoult realizada para o vídeo , com direção de Luiz Bargmann, com roteiro e pesquisa de Yvonne Mautner. O texto da entrevista foi cedido para Agitprop por Yvonne Mautner.