Concepções de design no Brasil, de acordo com a revista Veja
Ana Claudia Berwanger
Situando o problema: algumas razões
para pesquisar o design na revista Veja
Desconforto, inquietação e impaciência são sensações que muito provavelmente acompanham, em alguma medida, todos os designers que se defrontam com a necessidade de explicar sua profissão a familiares, amigos ou clientes menos informados. Com efeito, as tentativas de se definir as características e limites desta prática profissional têm frequentemente suscitado reducionismos, dúvidas e polêmicas, e parecem mais destinadas a alimentar o debate do que a concluí-lo. Ao mesmo tempo em que emergem novas e cada vez mais fundamentadas pesquisas e discussões a respeito, tanto na academia como na organização profissional, o termo "design" ocorre na cidade, na mídia e na internet de maneiras que muitas vezes contrariam o rigor científico e conceitual, designando práticas tão variadas quanto díspares, reconheçamos ou não a legitimidade ou pertinência de tais usos.
No presente artigo discutiremos as diferentes interpretações do design, tais como elas ocorrem numa instância da grande mídia brasileira, de inegável influência na formação do entendimento público sobre esta e outras questões. Trata-se da revista Veja, cuja longevidade, tiragem e perfil editorial influem enormemente nas opiniões políticas e hábitos de seus leitores, e muito provavelmente em seus juízos sobre o design.
Caracterizada por sua forte posição na mídia brasileira, Veja aborda temáticas que vão da política/economia à vida das celebridades, passando pela ciência, criminalidade, artes e entretenimento, além de publicar guias para o consumo, a conduta em sociedade e a solução de dilemas cotidianos, como a escolha da escola dos filhos, as melhores dietas ou os tratamentos de saúde mais eficientes. Trata-se do semanário mais antigo do Brasil atualmente em circulação, publicado initerruptamente desde 1968, e do terceiro mais lido do mundo, com circulação estimada atualmente em 1,1 milhão de exemplares semanais — somente inferior às publicações americanas Time e Newsweek.
Considerando que o interesse geral deste estudo é compreender a influência da grande mídia sobre a percepção dos indivíduos a respeito do design, e também dos designers a respeito de si mesmos, a pesquisa é guiada pela visão do mundo social forjada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, a partir da noção fundamental de campo. Para Bourdieu, um campo é um espaço social específico, no interior do qual se reúnem agentes — indivíduos e instituições — que partilham de uma mesma forma de estar no mundo, geralmente associada às suas profissões. Ao longo de sua obra, ele apresenta várias hipóteses úteis para a compreensão do campo do design, a partir de suas conclusões sobre os campos artístico, científico, econômico etc.
Um dos aspectos discutidos por este autor, e de nosso grande interesse, diz respeito à capacidade que um campo tem de reagir às influências e pressões impostas por instâncias externas a ele, como é o caso da revista Veja, aqui analisada em relação ao campo do design. Para localizar e compreender essas influências investigamos todas as edições de Veja distribuídas em 10 de seus 40 anos de publicação no Brasil, em intervalos de 5 em 5 anos, nas quais identificamos 97 artigos relevantes, situados ao longo da periodização de acordo com a lista a seguir.
- 1969 > 53 edições > 6 reportagens
- 1974 > 52 edições > 9 reportagens
- 1979 > 52 edições > 5 reportagens
- 1984 > 52 edições > 6 reportagens
- 1989 > 51 edições > 4 reportagens
- 1994 > 51 edições > 9 reportagens
- 1999 > 51 edições > 12 reportagens
- 2004 > 51 edições > 28 reportagens
- 2008 > 52 edições > 6 reportagens
- 2009 [1] > 52 edições > 12 reportagens
Para a seleção das reportagens consideramos a presença das denominações "design", "desenho industrial" ou suas correlatas, e a relevância dos textos para a construção de juízos sobre o design. Por este motivo, desconsideramos as reportagens onde os termos em questão ocorriam, mas não contribuíam para a formação de tais juízos. Numa direção contrária, identificamos uma impressionante quantidade de artigos que tratam de bens de uso em termos diretamente ligados ao design, e em sua formulação profissional contemporânea, sem que fossem nomeados de acordo. Por tratar-se de um enorme agrupamento de artigos, apresentaremos apenas uma breve reflexão a respeito, como sugestão para pesquisas criteriosas a serem ainda realizadas, especialmente devido à forte suspeita de que a omissão do termo "design" de certas discussões pode gerar graves consequências para o entendimento desta atividade, tanto do público em geral, quanto dos próprios designers a respeito de si mesmos.
O objetivo geral do artigo não é catalogar as interpretações de Veja sobre o design entre "corretas" ou "incorretas", para então instalar uma "cruzada" contra os equívocos. Numa outra direção, o que propomos é a suspensão temporária dos litígios conceituais e a aceitação provisória da idéia de que mesmo os usos aparentemente absurdos do termo (como é o caso de "hair designer") são usos possíveis, dado o caráter tremendamente abstrato, poroso e abrangente do conceito.
É importante dizer que este não é um ônus exclusivo do conceito de design. No artigo O que é um conceito? os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari apontam três idéias centrais para esta discussão: em primeiro lugar, eles ensinam que "não há conceito de um só componente. (…) Todo conceito é ao menos duplo ou triplo", tendo seu "contorno irregular, definido pelas cifra de seus componentes", e sendo portanto, uma "questão de articulação, corte e superposição." Em segundo, eles apontam que um conceito sempre faz parte de uma "encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes", que fazem parte de um "mesmo plano". Em terceiro, lembram que "todo conceito tem uma história" ligada às histórias de seus componentes internos, e também dos demais conceitos que participam do mesmo plano. Assumir estas premissas como válidas nos coloca diante da idéia de que, embora o conceito de "design" não seja idêntico ao de "arte", "artesanato", "linguagem" ou "tecnologia", ele é transformado por eles, assim como os transforma ao longo do tempo e diante de determinadas circunstâncias historicamente dadas.
Por estas razões, a conclusão deste artigo, já dada de antemão, é que a variação de interpretações e usos do conceito de design interessa não em si mesma, mas como sintoma e resultado de dinâmicas sócio-históricas mais amplas e que precisam ser desvendadas, conforme sugere o historiador Rafael Cardoso, para quem “as disputas em torno da aplicação do termo interessam mais pelo que revelam sobre as partes contestantes do que sobre o sentido da palavra em si” (Cardoso: 2005, 8). Assim, se "hair design" parece ser um termo descabido, é preciso questionar então porque ele é socialmente aceito e compreendido, para entendermos quais são os prejuízos efetivos que tal uso provoca para as demais práticas do design, sob o risco de ficarmos eternamente combatendo falsos problemas.
A seguir, apresentaremos os referenciais interpretativos e as conclusões das análises das reportagens selecionadas, na expectativa de que ofereçam subsídios válidos para conduzir o debate na direção do esclarecimento, e não do litígio conceitual. Note o leitor que, ao longo do texto, manteremos as denominações vigentes nas reportagens quando delas nos referirmos: o termo "desenho industrial" será referido quando a reportagem em questão dele fizer uso, sendo o mesmo válido, obviamente, para a nomeação "design". Todos os grifos são nossos.
Fundamentos e aspectos da análise
Para a condução da análise das reportagens, adotamos os fundamentos da teoria semionarrativa desenvolvida por A. J. Greimas, também conhecida como semiótica discursiva ou greimasiana. Em particular, partimos do pressuposto segundo o qual toda e qualquer narrativa apresenta, dentro de si, sujeitos da ação dotados de competências específicas, que buscam obter ou evitar valores de base, usando valores de uso como recursos. As reportagens selecionadas foram justamente aquelas nas quais reconhecemos efetivamente o design como o sujeito da ação, apresentado como viabilizador de valores de base — como por exemplo, a "beleza" ou a "eficiência" de um objeto — por ser portador de valores de uso — tais como a "inventividade" ou a "racionalidade" do designer.
Para compreender a natureza dos valores em jogo nas reportagens, adotamos o Mapa Semiótico dos Valores de Consumo como referencial interpretativo. Este Mapa foi desenvolvido nos anos 90 pelo semioticista italiano Andrea Semprini, pesquisador também filiado à semiótica discursiva, a partir das pesquisas de outro semioticista, o francês Jean-Marie Floch, que investigou o universo do consumo cotidiano na França, identificando os valores gerais desejados pelos consumidores em um suposto "supermercado ideal", e também os valores oferecidos pela Citroën em seus anúncios publicitários.
Estes valores foram sistematizados por Semprini na forma do Mapa da imagem 1, originalmente idealizado como uma ferramenta de marketing para analisar o posicionamento de marcas em relação à concorrência e às mudanças do mercado. Porém, seus valores são tão gerais, profundos e abstratos, que possibilitam análises de outras situações — como é o caso das reportagens de Veja — onde estão em jogo as motivações para o consumo ou uso de objetos e bens em geral. O funcionamento analítico [2] do Mapa será brevemente explicado em seguida.
Os valores situados no eixo vertical do Mapa são os valores de base — o valor Prático e o valor Utópico. Cada um deles abriga uma visão de mundo específica, que valoriza certos aspectos dos objetos de consumo e serviços, assim como rejeita outros. Como o nome sugere, a valorização Prática tem caráter utilitarista, é orientada ao objeto, valoriza o bom desempenho de um produto em sua finalidade elementar, considerando a adequação entre forma e função, e desconsiderando funções mais abstratas, como a estética, social ou psicológica. Já a valorização Utópica é orientada ao futuro, ao interesse coletivo, ao bem comum, à preservação da espécie e do ambiente, sendo guiada pelas idéias de projeto e utopia. Nesta valorização, além do produto, estão em questão os ideais de quem o projetou e também as implicações extra-produto, tais como o impacto ambiental ou social.
No eixo x do Mapa estão situados os valores de uso — o valor Lúdico e valor Crítico. A valorização Lúdica também é orientada ao objeto, mas num sentido emocional, sensível e não-racional, sendo valorizados aqueles produtos que são fontes de prazer e de experiências despreocupadas. Já no caso da valorização Crítica, também orientada ao objeto, o que interessa é o questionamento e a comparação: o produto não é valorizado em si, mas em relação ao que poderia ter sido, ou seja, em relação a parâmetros ideais.
Estes quatro conceitos se desdobram no Mapa, gerando áreas complexas que abrigam conceitos mais precisos, a partir dos quais as reportagens foram analisadas. As imagem 2 e 3 expressam tais desdobramentos: apresentam o Mapa organizado em quadrantes, que combinam duas valorizações, ou em hemisférios, que combinam três valorizações, com o predomínio da valorização central. Resultam daí oito visões de mundo distintas e oito formas diferentes de valorizar objetos e serviços. O funcionamento conceitual do Mapa será explicado a seguir, já em relação às reportagens de Veja.
O design a serviço da utilidade e da eficiência
O quadrante da imagem 4 resulta da combinação dos valores Prático e Crítico. É o quadrante da Informação; ele é marcado por uma racionalidade técnica e utilitarista, ligada aos atributos básicos e essenciais e às qualidades intrínsecas e objetivas de produtos ou serviços, como a utilidade e adequação aos seus propósitos.
Cerca de 13 por cento das reportagens apresentam o design desta maneira; é uma das duas valorizações predominantes da amostragem, verificada em 13 dos 97 artigos, situados em praticamente todos os anos da periodização analisada (com exceção de 74, 84 e 2009).
A reportagem Um padrão estrangeiro (12/12/79), que trata do Núcleo de Desenho Industrial da Ciesp, exprime claramente os valores prático-críticos; ela enfatiza que o desenho industrial resulta em "objetos bem resolvidos quanto à forma e função" e recusa a "desgastada imagem de que [os desenhistas industriais] só produzem produtos de elite", afirmando que eles "não são os profissionais da ornamentação", e que este é um dos "vícios de avaliação do público". Os desenhistas industriais são apresentados como profissionais dedicados à excelência das formas, ao desenvolvimento econômico, à melhoria do espaço urbano e à expressão da identidade cultural nacional, através de produtos industriais bem projetados. O artigo ainda afirma a variedade e onipresença do trabalho do desenhista industrial no cotidiano:
As cadeiras de balanço "Thonet" (1860) estão lada a lado com a "Lettera 22", a máquina de escrever que a Olivetti criou em 1949; as xícaras de chá e café (...) criadas por Josiah Wedgwood em 1768 estão lado a lado com (...) os prosaicos Tupperware Containers, que guardam alimentos por vários dias na geladeira ou no forno e são disputados até pelas donas-de-casa brasileiras.
O design gráfico também é valorizado desta maneira, mas não para atender aos usuários finais dos projetos, e sim em prol das empresas. A reportagem Design: o apelo visual (05/10/94), afirma sua importância na construção da imagem pública das empresas, esclarecendo que não se trata de questão artística, mas sim de negócios. O artigo confirma a existência de escritórios de design especializados no assunto, e ensina que, no passado, os logotipos foram apenas "formas bonitinhas de escrever o nome da marca" mas que a partir dos anos 60, "começou-se a investir em seu potencial como arma de marketing".
Em 2004 há uma versão mais contemporânea da visão funcionalista deste quadrante, que associa o design à ciência, na busca da superação humana dos limites impostos pela natureza: a reportagem Olimpíadas: a diferença no detalhe (19/05/04) trata de equipamentos e trajes esportivos, desenhados para melhorar a performance dos atletas: "O segredo é a aerodinâmica. Os designers mediram a velocidade do vento em diferentes partes do corpo do atleta e, a partir daí, escolheram tecidos com texturas apropriadas para cada região diminuindo a resistência do ar e da água."
O design como deleite e expressão da subjetividade
A imagem 5 apresenta o quadrante da Euforia do Mapa Semiótico, que resulta da combinação dos valores Lúdico e Prático. Sua busca é pelo otimismo no terreno emocional, valorizando os produtos pela sua capacidade de promover sensações positivas, como a tranquilidade, o humor, a alegria, e até mesmo o arrebatamento e a gratuidade.
Esta é a valorização predominante da amostragem, verificada em 23 das 97 reportagens (23 por cento), quase todas situadas a partir de 1994. Os valores em evidência nestas reportagens são o lazer, o estilo de vida singular, o descompromisso, a busca por sensações novas e agradáveis, o exercício da subjetividade e a busca por distinção social, através do consumo de objetos notáveis, exclusivos e raros. Nelas o design é ligado à aparência, à efemeridade, ao consumismo e à experiência sensorial hedonista. Há também um aspecto Prático permeando estes artigos, pois as empresas assumem a conquista seus mercados pela exploração do valor Lúdico. Como veremos a seguir, o design nem sempre é apresentado de forma positiva neste enquadramento eufórico.
São muitos os exemplos de reportagens que apresentam esta visão do design: é o caso de Revolução na cozinha (26/01/94), que trata de eletrodomésticos inovadores, sendo o design apontado como um atributo de superfície: "A máquina [de lavar roupas] tem até um requinte estético. O design foi feito pelo mesmo escritório italiano que desenha os carros da BMW, Ferrari e Alfa Romeo." Também é o caso do artigo Com o pé no futuro (14/07/99), que atribui ao design o papel de "reverter a crise mundial do setor" de tênis, através da estratégia de "seduzir os consumidores" com visuais extraordinários, "com tecnologia de ponta e design espacial".
Uma reportagem de 1999 chega a sugerir propriedades lisérgicas do design: Além das 5 estrelas (10/11/99) trata da "experiência existencial", buscada por clientes com "um estilo de vida contemporâneo", ávidos por novidades, e proporcionada por uma estadia em hotéis com "visual mirabolante assinado pelo francês Philippe Starck — o designer mais celebrado do planeta". O texto menciona os aspectos lúdicos dos hotéis, como a possibilidade de modificar as cores dos ambientes, "uma parede-cachoeira, de onde jorra água borbulhante" ou "dois modelos de bancos desenhados especialmente por Starck: um de metal, na forma de um dente molar, e outro imitando o formato de um anão de jardim".
Já a reportagem Isso é coisa de museu? (22/09/04) trata o design, a moda e o consumo com justificada ironia, ao criticar a exposição Fashion Passion — 100 Anos de Moda na Oca. O artigo qualifica os estilistas da exposição como "ferozmente egomaníacos", dedicados a atender "aos novos exércitos de consumidores ansiando pelo prestígio e pela sensação de individualidade", expressões do "desejo de beleza embutido nos circuitos cerebrais da espécie humana", atendido naquele momento pela "irmandade interativa" entre design, moda e arquitetura.
A combinação dos valores Prático e Lúdico também é negativa em três reportagens sobre cadeiras. A primeira delas — Com assinatura (27/06/84) —, apresenta seis cadeiras da vanguarda modernista como objetos artísticos, mas com caráter ergonômico questionável: "cadeiras como as de Mackintosh são caras e feitas pra olhar"; "são inúteis como cadeiras, mas são lindas"; são "bonitas mas inadequadas para sentar". A despeito disso, a reportagem sublinha sua finalidade social e intelectualmente distintiva: "nós as oferecemos como objetos para colocar num canto bem iluminado da sala para compor o ambiente"; "acontece que elas [as cadeiras] retratam conceitos de uma época, têm carga histórica e linhas puras".
Em 2008, o design também é tratado por Veja em tom zombeteiro, numa sequência de dois artigos do Guia de Consumo Cadeiras: design versus conforto (10/09/08). O primeiro deles, Cadeiras para enfeitar e (às vezes) sentar, também comenta o mau desempenho ergonômico de sete cadeiras históricas. O design é assim associado à ostentação e aos egos de designers e consumidores. As análises da reportagem são brevíssimas, sem a explicitação de critérios, sem considerar que existem diferentes formas de "sentar" (para trabalhar, comer, assistir televisão, etc), e por fim sem mencionar as origens ou significados históricos das cadeiras criticadas. A reportagem seguinte, A cadeira ideal, tem finalidade claramente publicitária, e apresenta a cadeira contemporânea Freedom, indicando a autoria do projeto e a empresa que a distribui. No artigo, a cadeira é avaliada positivamente a partir de critérios muito precisos: o seu uso previsto e assumido como pressuposto — o trabalho ininterrupto diante do computador — e seus detalhes formais rigorosamente enumerados: desenho, encosto, braços, assento, regulagens e material.
O design automotivo também é um tema recorrente na amostragem de reportagens, geralmente associado aos valores do quadrante da Euforia. É o caso do artigo O futuro é retrô (22/09/99), sobre as novidades do Salão do Automóvel de Frankfurt daquele ano. Ao design é atribuída a tarefa de recuperar o glamour e provocar a nostalgia dos clientes pelo resgate de emblemáticos "carrões do passado", o que é assumido como uma estratégia de salvamento das montadoras, devido à sua baixa competitividade em termos de tecnologia. Confirmando esta tarefa fetichizante, há a reportagem Fusca a 55.600 reais (03/11/99), que divulga o modelo New Beetle, anunciando o fim do fusquinha como um carro "prático, barato e despojado", e seu "renascimento" como um item destinado "a quem tem dinheiro e quer uma jóia na garagem", promovido por "um escritório de design da Califórnia [que] redesenhou o carro."
Cinco anos antes, esta visão estetizante do design foi afirmada pela sua superação momentânea, tal como demonstra a reportagem Desenho sobre rodas (21/09/94). O texto relata que automóveis de então estavam cada vez mais parecidos entre si, como um efeito da globalização dos processos de trabalho e produção: "Os carros são parecidos, ainda, porque quase todos os projetistas trabalham em grandes equipes, em que não há autoria pessoal. Quem dita a moda entre os automóveis são dois grandes centros de design, um localizado em Pasadena, nos Estados Unidos, o outro em Turim, na Itália." O texto sublinha a atribuição distintiva do design, que parecia então superada, contando que "no passado as montadoras se esforçavam para que seu produto tivesse identidade própria, investindo na diferença com a esperança de imprimir personalidade a cada modelo. Nos anos 60 e 70, por exemplo, não havia como confundir um automóvel italiano com um americano ou mesmo um francês." Nessa passagem, fica evidente a associação entre design, espetáculo e hedonismo, vigente em certos períodos do século 20, e não em outros: "Responsável pelos modelos que eram produzidos entre os anos 20 e 50 (...) Pininfarina sabia o que se esperava de um automóvel. O melhor não está em sua utilidade, pois muitas vezes andar de metrô é muito mais prático. Nem no conforto que proporciona, pois a maioria das viagens pode até ser mais agradável quando feita de metrô. O charme se encontra na imaginação do motorista e no espetáculo que proporciona quando anda pela rua, a liberdade de quem pode ir para onde quiser, quando quiser."
Em 2004, a associação entre design e espetacularização da vida é expressa por duas reportagens que assumem que, para democratizar o acesso ao automóvel, é preciso menos design. O artigo O popular dos europeus (20/10/04) divulga o modelo Dacia Logan, lançado pela Renault na Romênia, recuperando "uma tradição da indústria automobilística francesa, conhecida pelo talento para produzir carros esquisitos, mas populares", que tinha sido abandonada em nome de "modelos de design avançado, caros, mas competitivos no exterior." Os modelos Logan são tristemente celebrados, pois "podem não encher os olhos de ninguém, mas também não esvaziam o bolso do consumidor." Também a reportagem O mais barato do mundo (01/04/09) vincula o design às aparências extraordinárias, ao apresentar o Nano, modelo fabricado pela Tata Motors: "espartano no design e nos equipamentos (...) o modelo básico do Nano chega às revendas indianas ao preço de 2.000 dólares."
Ainda associando o design à estetização dos objetos, há a reportagem Beleza interior (21/04/04), que trata das inovações introduzidas nos novos modelos de automóveis de então, sublinhando que "o design é lindo, mas as maiores atrações dos modelos expostos no Salão de Nova York estão do lado de dentro." No artigo, as inovações ergonômicas em questão — materiais antialérgicos e inodoros, cantos arredondados, recursos de iluminação, controles, travas e botões de acionamento suave, bancos massageadores e com ajuste térmico — são apresentadas como itens independentes, dissociados do trabalho do designer.
Objetos do cotidiano também são celebrados como elementos de distinção social pelo Guia de Consumo Velho design, nova tecnologia (20/02/08), que compara modelos antigos e atuais de um carro, uma bicicleta, uma cafeteira, um aparelho de som e uma geladeira, que prometem conciliar a imagem de um "passado perfeito" — expresso pelo design de época — com o que há de melhor na tecnologia do presente.
Os dois quadrantes do Mapa Semiótico discutidos até aqui — Informação e Euforia — abrigam a maior parte das 97 reportagens analisadas e indicam o claro embate entre duas concepções antagônicas do design expressas por Veja, cada uma delas situada num período relativamente bem definido dentro do período investigado: as reportagens do quadrante da Informação predominam até o fim dos anos 80, enquanto as reportagens do quadrante da Euforia passam a predominar fortemente a partir de 1994.
Isso indica uma virada conceitual, que é confirmada pela própria revista Veja, na reportagem Diploma heterodoxo (10/03/99), que registra a mudança de denominação e estrutura da graduação em Design, apontada como uma dissidência do "velho e bom desenho industrial, adaptada à demanda de profissionais especializados em marketing e informática". O "novo designer" é colocado a serviço da nova demanda do mercado por "pessoas altamente especializadas em lazer e estilo", ao lado de profissionais de hotelaria e gastronomia.
Neste artigo de 1999 fica evidente a desmaterialização do trabalho do designer, cuja descrição já fora alvo de outra reportagem, 25 anos antes: em A escola da moda (06/03/74), "Aloísio Magalhães esclarece que a profissão pode ser dividia em desenho industrial (móveis, eletrodomésticos, automóveis) e comunicação visual (símbolos, logotipos)." Além de explicar o que faziam tais profissionais nos anos 70, o artigo trata dos cursos de Desenho Industrial do Rio de Janeiro de então, e da impressionante concorrência por suas vagas, mais do que as faculdades de medicina. Já é registrada ali a reivindicação da denominação "designer", "como preferem ser chamados os estudantes e profissionais, mesmo nacionalistas", e também a difícil perspectiva do mercado de trabalho, acentuada pelo fato de que "a profissão ainda não tem regulamentação."
A cisão entre as visões funcionalista e estetizante também é evidente em três reportagens sobre exposições de design: além da já comentada Um padrão estrangeiro, de 1979, o artigo Olhar sobre a história (21/11/84) também trata o desenho industrial / design como uma atividade estruturante, mais do que estetizante. O artigo divulga a exposição de desenho industrial que faz parte da mostra de arte Tradição e Ruptura, então em cartaz na Fundação Bienal, e que apresenta o design de maneira sutil e relativamente politizada, pois reconhece, ao mesmo tempo, os méritos profissionais e as responsabilidades sociais e técnicas dos designers: "uma exposição de desenho industrial ensina ao público que por trás dos objetos do cotidiano doméstico sempre existe um designer ou uma equipe. (...) Surgem assim os anônimos produtos de uso diário que o visitante descobre terem um autor." A reportagem é ilustrada com objetos de uso privado e também itens da paisagem urbana — das escovas de dente às caixas de correio, dos liquidificadores aos postes de iluminação pública —, e sugere que há uma ética e uma utopia subjacentes ao trabalho dos designers: ""O bom desenho é simplesmente aquele que leva em conta o público que vai usá-lo", diz um dos organizadores. Pouco importa se existe um só artista por trás da idéia ou se o acerto resulta do trabalho de toda uma equipe de criação da empresa."
Já a reportagem Maravilhas do lar (24/08/94) aborda o design com certa ambiguidade. O artigo trata da exposição Design para esta era, então em cartaz no MAM-RJ, dedicada à produção da empresa italiana Alessi, fabricante de sofisticados objetos de cozinha, cuja proposta é embelezar a vida cotidiana diante da "necessidade de arte e de poesia, coisa que a indústria ainda não compreendeu." A reportagem explica que "a empresa trabalha para transformar em espetáculo, através dos objetos que fabrica, cada gesto da vida cotidiana". Assim, diante de uma panela Alessi, "o peixe e os acompanhamentos deixam de ser o prato principal e se tornam meros coadjuvantes num rito em que a vedete é uma autêntica panela-peixeira da grife italiana Alessi, vendida por salgados 600 reais".
Apesar disso, a empresa se proclama uma bem humorada seguidora da filosofia bauhausiana, defendendo a honestidade na relação forma-função: segundo a designer da Alessi, "antes de se meter a reiventar uma chaleira, todo designer tem a obrigação de respeitar a "chaleiricidade" intrínseca de objeto a ser criado". Ou seja, "não adianta bolar uma frigideira originalíssima se ela não servir pra fazer um bife". A empresa fundamenta sua atuação de maneira aparentemente ética: "Respeitar a alma do objeto, inovar em sua forma, de preferência infundindo-lhe mais beleza, e assim obter-se um produto de cara nova é o objetivo primordial de um bom design."
Após 15 anos, um pequeno Guia de Consumo de 2009 indica que ainda vigora a associação entre o design e tão somente a aparência dos objetos: o artigo Economia com pouco esforço (04/03/09) apresenta novos acessórios de banheiro (torneiras e duchas) projetados para reduzir o consumo de água. Nela, o design é mencionado também como um atributo de superfície, não sendo ligado à estrutura ou desempenho dos objetos: "O principal ajuste [dos novos acessórios] está no formato, mais funcional para a instalação em casa e apartamentos, e no design, mais bonito."
(continua)
Notas:
[1] Uma primeira versão deste estudo foi escrita no início de 2009 e apresentada na forma de comunicação oral na Conferência Anual da Design History Society, em outubro do mesmo ano. Naquela versão, foram consideradas as edições de Veja publicadas entre 1969 e 2008, em intervalos de dez em dez anos, exceto para o intervalo entre 1999 e 2008, que é de nove anos, pois o ano de 2009 ainda estava em curso.
Para a presente versão do estudo, a quantidade de edições investigadas foi ampliada, ao serem consideradas as revistas publicadas em intervalos de cinco em cinco anos a partir de 1969, e ao serem incluídas as reportagens publicadas no ano de 2009. Por um critério estatístico e formal, a inclusão de 2009 na periodização imporia a supressão das reportages publicadas no ano anterior, para que se fizesse respeitada a periodização de cinco em cinco anos, adotada como regra geral. No entanto, tal supressão implicaria na eliminação de importantes e já conhecidos aspectos da discussão, motivo pelo qual optamos por manter a periodização imperfeita, considerando igualmente na análise as reportagens publicadas nos anos de 2008 e 2009.
[2] Para explicações mais detalhadas sobre o Mapa Semiótico dos Valores de Consumo, Cf. Semprini: 1995.
Referências Bibliográficas
BOURDIEU, P. A gênese dos conceitos de habitus e campo. In: O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
______. O Mercado de bens simbólicos. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2001.
CARDOSO, R. O design brasileiro antes do design. São Paulo: CosacNaify, 2005.
Deleuze G, Guattari F. O que é um conceito? In: Deleuze G, Guattari F. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, (27-47).
DENIS, R. C. Uma introdução à história do design. São Paulo: Edgard Blücher, 2000.
PRADO, J. L. A. (org). A invenção do Mesmo e do Outro na mídia semanal. São Paulo: PUC SP / Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica, 2008.
SEMPRINI, A. El marketing de la marca: una aproximación semiótica. Buenos Aires: Paidós, 1995.
Ana Claudia Berwanger é designer pela Universidade Federal do Paraná (1996), professora do curso de Desenho Industrial da Universidade Federal do Espírito Santo desde 1999. É doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na PUC-SP, onde desenvolve pesquisa sobre a formação do campo do design no Brasil.
|
|