Ano: III Número: 25
ISSN: 1983-005X
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A casa e seu avesso
Gilberto Paim

Livro: The Modern Interior Autor(a): Penny Sparke Editora: Reaktion Books, Londres, 2008.

Postado: 15/01/2010

   

Livros sobre interiores costumam ser coletâneas de imagens altamente idealizadas, edições de capa dura que reúnem de modo mais ou menos temático conteúdo semelhante ao das revistas de decoração e design. Ao folhear essas publicações cada vez mais comuns em nossas livrarias esteticamente cada vez mais caprichadas, tendemos a associar os interiores modernos às residências bem iluminadas nas quais móveis e objetos criados por designers consagrados têm primazia.

Diante de amplas janelas envidraçadas somos atraídos pela sensualidade de uma poltrona de Joaquim Tenreiro, no living imaculado apreciamos o contraste entre o tapete espesso de lã e uma mesa tubular de Marcel Breuer. Imaginamos reformas e aquisições, registramos nomes de arquitetos e designers em voga. Somos capturados pela promessa de felicidade do “interior moderno”, fantasia aparentemente inesgotável que remonta, como observou Walter Benjamin, à segunda metade do século dezenove.

O título do livro da historiadora do design Penny Sparke evoca essa fantasia, incessantemente estimulada pela avalanche de publicações, direta ou indiretamente comprometidas com a divulgação de produtos e serviços para casa. No entanto, o pequeno formato, as ilustrações em p&b entremeadas ao texto, e a capa muito sóbria revelam de imediato ao flâneur de livrarias a natureza reflexiva da obra. Os interiores modernos analisados por Sparke englobam tanto os interiores residenciais quanto os não residenciais de lojas, galerias comerciais, shopping centers, teatros, escritórios, fábricas etc. Seu tema central é a influência reciprocamente complexa entre interiores residenciais e não residenciais desde o século dezenove.

Sparke parte da premissa benjaminiana segundo a qual a idealização moderna do interior doméstico é uma compensação à separação radical imposta pela revolução industrial entre o lar e o trabalho. Antes do século dezoito, a maioria da população européia vivia e trabalhava em casas que eram também estabelecimentos comerciais e/ou oficinas. Reagindo ao anonimato opressivo e ao caos metropolitano, os indivíduos passaram a cultivar os novos ideais domésticos de conforto, privacidade e expressividade por meio da acumulação dos elementos “cenográficos” ao seu alcance, ou seja, móveis e objetos adquiridos nas lojas de departamentos: cortinas, cadeiras estofadas, tapetes e bibelots produzidos em massa, que freqüentemente remetiam a outros tempos e lugares. Tão logo esse modelo foi estabelecido, sua incongruência claustrofóbica foi severamente criticada por John Ruskin e Charles Eastlake, entre outros intelectuais e reformistas do design.

Sparke explica que as inúmeras transformações dos interiores modernos ao longo dos séculos dezenove e vinte, não resultaram do acirramento das diferenças entre interiores públicos e privados, mas de sua aproximação e mútua fertilização. A primeira parte do livro, intitulada Inside out, aborda a progressiva  apropriação de elementos da domesticidade vitoriana por lojas, restaurantes, teatros e hotéis, visando a tornar mais agradável e acolhedora a experiência então principalmente feminina do consumo. Foi um movimento em espiral, pois indústria e comércio se aproveitaram continuamente da idealização do interior doméstico para produzir e difundir novos produtos.

Sparke chama atenção para o fato de que, em contraponto ao ecletismo fin de siècle,  a harmonia estilística moderna foi primeiramente alcançada em residências projetadas em seus mínimos detalhes por arquitetos como  Henry van de Velde, Charles Rennie Mackintosh, Josef Hoffmann e Frank Lloyd Wright. Embora a casa como obra de arte total (Gesamtkunstwerk) tenha despertado a notória desconfiança do arquiteto vienense Adolf Loos, sua grande coerência formal não tardou a servir de modelo para inúmeros empreendimentos comerciais realizados ou não pelos mesmos arquitetos.

A segunda parte do livro, Outside in, é dedicada à influência dos interiores não residenciais, como estufas, lojas, fábricas e escritórios sobre os interiores domésticos, essencial ao modernismo. Sparke remonta ao imenso Palácio de Cristal que abrigou a Exposição Universal de Londres, de 1851, projetado por Joseph Paxton. Sua arquitetura de ferro e vidro superou a distinção arquitetônica tradicional entre interior e exterior, inspirando as primeiras galerias comerciais e lojas de departamentos, que ofereciam ao mesmo tempo iluminação natural e proteção contra as intempéries. A importância da transparência nos interiores residenciais modernos é bem conhecida. No  projeto da casa Citrohan, de 1922, Le Corbusier propôs paredes caiadas de branco e amplas vidraças que deixavam entrar francamente a luz natural.

A racionalização espacial de fábricas e escritórios serviu de exemplo para os interiores residenciais modernos, a começar pelas cozinhas. Le Corbusier considerava móveis e utensílios estritamente como equipamentos da “máquina de morar”, negando os devaneios da casa-refúgio. Seu pavilhão residencial Espírito Novo, montado na Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas realizada em Paris em 1925, apresentou elementos até então exclusivos de interiores não-residenciais, como a poltrona de couro Maple recorrente nos clubes masculinos ingleses; uma escada de ferro semelhante às dos navios; uma mesa de metal fabricada por empresa de equipamento hospitalar; e estantes modulares utilizadas em escritórios. Embora alguns ítens fossem peças-únicas realizadas sob encomenda, a mensagem pró-industrial e anti-decorativa do pavilhão era inequívoca. Projetados na mesma década, os móveis tubulares de Marcel Breuer selaram o compromisso do design moderno com a estética industrial.

A trajetória dos designers Charles e Ray Eames acompanhou a surpreendente convergência estilística entre interiores privados e públicos a partir do pós-guerra. Conhecedores em profundidade dos novos materiais e técnicas industriais de fabricação, estavam menos interessados em contrariar expectativas domésticas de conforto do que em criar móveis e objetos que  atendessem tanto às novas necessidades residenciais quanto profissionais.

Sparke explica: “Havia indubitavelmente nas mentes do casal um continuum entre os espaços doméstico e profissional. Tomavam café da manhã em casa e faziam as outras refeições no escritório, por exemplo. O mobiliário dos Eames funciona de modo igualmente efetivo em sua casa pré-fabricada e em seu espaço de trabalho. Por extensão,proporcionava a seus clientes --  individuais e corporativos--  a possibilidade de livre movimentação entre espaços domésticos e não-domésticos.”

No Brasil, essa convergência demorou mais a acontecer. Móveis de Sérgio Rodrigues e Jorge Zalszupin  fabricados nos anos sessenta, inicialmente destinados a ministérios e escritórios de grandes empresas, foram lentamente assimilados pela esfera doméstica.
Desde os anos 1990 o fenômeno do encasulamento (cocooning) tem estimulado designers de vários países a redefinir um mobiliário especificamente doméstico de características sóbrias, freqüentemente destinado a uma clientela de alto poder aquisitivo. No entanto, segundo Sparke, as sociedades contemporâneas, nas quais a oferta vertiginosa de produtos e serviços segue cada vez mais a lógica da moda, tendem a minimizar diferenças estilísticas entre interiores residenciais e não residenciais. Estamos habituados aos lounges nos corredores dos shopping centers e às poltronas confortáveis  e mesinhas de centro com jornais e revistas nas cafeterias localizadas em ruas movimentadas, assim como às imensas portas residenciais que frustram toda intimidade e às extensas vidraças que deixam entrar em nossas salas a luz e o olhar dos estranhos.

Gilberto Paim é ceramista e escritor; autor de A beleza sob suspeita, o ornamento em Ruskin, Loos, Lloyd-Wright, Le Corbusier e outros, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, e Elizabeth Fonseca e Gilberto Paim, Viana & Mosley, Rio de Janeiro.

 


Comentários

Maria da Silveira Lobo
27/01/2010

Parabéns pela resenha, Gilberto. Fiquei com muita vontade de ler esse livro. Sempre tive a impressão de que o movimento "Outside In" predominou na estética da máquina, mas sua observação me fez questionar esse viés brasileiro.

Maria Alice Miller
17/01/2010

Excelente resenha, Gilberto, chama atenção para o livro. Como sempre comentamos, a idealização dos interiores das moradias está a cada dia maior, e bem distante do dia a dia da maioria. Ler sobre a história deste pensamento e refletir a respeito é o melhor remédio. Um abraço!

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