Livro: O Livro do Chá
Autor(a): Kakuzo Okakura
Editora: Estação Liberdade
Postado: 17/06/2010
“Aqueles incapazes de sentir em si mesmos a pequenez das coisas grandiosas tendem a ignorar nos outros a grandiosidade das pequenas coisas”. (p. 31)
Em pleno século XXI as relações entre ocidente e oriente ainda se pautam por admiração, estranhamento, e não seria exagerado dizer, uma boa dose de desconhecimento. Talvez porque para entender profundamente uma cultura tão diversa seja necessário nela estar embebido.
Em 2008, a Estação Liberdade publicou O Livro do Chá, de Kakuzo Okakura – originalmente escrito em 1906. Além da excelente tradução feita por Leiko Gotoda, esta publicação apresenta o mérito de incluir prefácio e posfácio escritos por Hounsai Genshitsu Sen, que descende de cinco gerações de mestres do chá e foi responsável por estabelecer os fundamentos da cerimônia do chá (chanoyu) como é praticada hoje.
A intenção de Okakura era divulgar a cultura japonesa para o ocidente e para cumprir esse objetivo, publicou o livro diretamente em inglês. Dividido em 7 capítulos, que abordam o surgimento da tradição de beber e oferecer chá na China, as relações entre a cerimônia e as filosofias orientais como o Zen e o Tao, até chegar aos detalhes da evolução da concepção do espaço cerimonial, o papel do ornamento e a questão da apreciação da arte.
O leitor deve estar se perguntando... o que faz uma resenha de livro sobre a cerimônia do chá numa revista de design? A razão é que a idéia de projeto perpassa todo o capítulo intitulado “O aposento da cerimônia do chá” conhecido como sukiya. Mais do que o simples arranjo de espaço, como enganosamente o título do capítulo pode dar a entender, o autor descreve todo o projeto de construção de um ritual. A cerimônia do chá, muitas vezes envolta, para nós ocidentais, em uma aura de mistério apresenta na verdade uma motivação simples: “um pequeno grupo de amigos se reúne durante algumas horas para compartilhar uma refeição, tomar um pouco de chá e fruir uma breve trégua dos negócios e dos cuidados diários” (pp. 13 e 14 – prefácio), coisa que, diga-se de passagem, o modo de vida contemporâneo raramente permite.
O livro de Okakura, mostra que a chanoyu apresenta preocupação estética e elaboração filosófica muito sofisticadas; e que até a forma de aproximação ao aposento foi pensada de forma a colocar os convivas no estado de espírito adequado à fruição desse momento. Na sukiya, nada é deixado ao acaso. O efeito de simplicidade e despojamento é mero efeito. Tudo é conceituado, projetado, para tudo há uma razão. A título de exemplo, o tamanho do aposento (4 tatames e meio) inspira-se, segundo o autor, em uma lenda contida no Sutra de Vikramaditya que diz que este rei indiano acolhe o Santo Manjushiri e oitenta e quatro mil discípulos do Buda numa pequena sala daquele tamanho, alegoria à não existência do espaço para os verdadeiros iluminados – e que apresenta, naturalmente, enorme simbolismo.
Para chegar ao aposento é preciso atravessar uma aléia (roji) planejada para “quebrar a conexão com o mundo exterior”, e representa também o primeiro estágio da meditação que tem a função de preparar os convivas. Os convidados adentram o ambiente por uma porta de apenas um metro de altura, que os obriga a se curvarem, e que tem como objetivo incutir a humildade. O anfitrião é o último a entrar e só o faz quando reina ali silêncio absoluto, quebrado apenas pelo “murmúrio da água” da chaleira. A luz é mortiça mesmo de dia, tudo no espaço apresenta tonalidades sóbrias e, assim, os convivas são envoltos por um universo no qual a prioridade são as sensações.
A cerimônia do chá como apresentada por Okakura, pode, e talvez deva ser compreendida como projeto desenvolvido e refinado ao longo de séculos. Nela, inclusive, se apresentam as dimensões formal, simbólica e funcional tão caras ao conceito de design.
Ao longo do livro, Okakura critica, em alguns momentos de maneira bem humorada, a cultura ocidental. Por exemplo quando diz que “uma peça de metal análoga [à chaleira da chanoyu] não deve ser atacada com o zelo inescrupuloso de uma dona de casa holandesa”, ou ainda quando afirma que para arquitetos europeus “educados na tradição das construções de pedra e tijolo, o método japonês de construir com madeira e bambu parece pouco digno de ser considerado arquitetura”, destacando ai a diferença entre o mundo da efemeridade e da aceitação da finitude – oriundos da teoria budista da efemeridade –, e também de grande respeito à natureza e a vontade de permanência e eternidade do mundo ocidental.
Enquanto no mundo contemporâneo parte das discussões sobre design migra dos produtos em si para o universo da “experiência sensorial do usuário” – oriundo do campo do marketing –, os japoneses, de certa forma, já haviam há muito trabalhado esse conceito. Acesso, espaço, decoração, ruídos e vestimentas são “projetados” para comunicar uma mensagem. Diferentemente de mera estetização do espaço, os japoneses chegam a utilizar a metáfora do chá para estigmatizar o “frívolo esteta que, indiferente às tragédias do cotidiano, manifesta-se contudo ruidosamente ao sabor de emoções descontroladas” e dele se diz que tem “chá demais”.
Ainda há um longo caminho para cruzar (nas duas direções) a ponte cultural entre Oriente e Ocidente, representada pelo esforço pioneiro de Okakura. Portanto há que se fazer, ainda, muita tempestade em copo de chá.