Equilíbrio entre os valores e os interesses
Apesar do embate entre as concepções antagônicas de design discutidas na primeira parte deste artigo, a amostragem analisada também apresenta reportagens que conciliam, de maneira equilibrada, o interesse empresarial no lucro com os interesses individuais dos consumidores, sem opor atributos estruturais e estéticos, mas tratando-os de forma complementar. Os consumidores, por sua vez, não são identificados somente com os mais ricos, assim como o consumo não é tratado em termos de ostentação ou distinção social, mas em termos de direitos à beleza, à arte, ao lazer, à subjetividade e ao descanso, através do acesso a bens de uso projetados de maneira responsável, e por preços justos.
Trata-se de um relativo equilíbrio entre as quatro valorizações do Mapa Semiótico, e verificado em 10 reportagens (10,3%), expresso pela imagem 6.
É o caso do artigo O volume sem limite (05/09/79), que divulga modelos de aparelhos de som, acessíveis aos consumidores de menor renda. Embora a tecnologia protagonize a reportagem, o design é o responsável por viabilizar o acesso à fantasia, dado o "fascínio" dos consumidores diante do "ar futurista" dos objetos, que passaram a ser compatíveis também com o tamanho e a decoração das casas.
No artigo MoMA aos 50 anos (07/11/79), o design aparece filiado à arte, promovendo a renovação estética de objetos triviais, como "um tubo de pasta de dentes, um telefone ou mesmo um cinzeiro". Em Wonderful Luís (05/12/79), a expressão da subjetividade através do vestuário é defendida por um "personal styler" carioca, como um direito civil equivalente aos direitos políticos então readquiridos, sendo mencionado por Fernando Gabeira como o "designer da abertura", em alusão à transição democrática após o regime militar.
Embora qualifique algumas inovações como "estapafúrdias", a reportagem Chão de estrelas (22/03/89) também associa design e tecnologia ao acesso de cada vez mais indivíduos ao consumo de objetos bem projetados e ao rompimento de hegemonias estéticas. O artigo trata da modernização na produção de tapetes, antes caros e tradicionais, e então viabilizada por técnicas informatizadas, que teriam permitido a variedade da produção, diminuindo seus custos e permitido maior liberdade e participação do cliente na criação dos tapetes.
No entanto, este equilíbrio dos quatro valores do Mapa é sutilmente rompido em três reportagens de 2004 que tendem ao quadrante da Euforia, como um reflexo dos movimentos da própria sociedade, e não exatamente do campo do design. A reportagem A reinvenção da Melissaacessórios de moda": "hoje, as sandalinhas que custavam 25 reais no supermercado mais próximo podem chegar a 110 reais"; "percebemos que a sandália agradava à turma bem informada sobre moda e vendia mais em lojas de shopping do que nas populares". As criações são assinadas por designers de prestígio, cujo trabalho é apontado ao mesmo tempo como artístico e técnico: a proposta dos irmãos Campana, por exemplo, "exigiu muito jogo de cintura dos técnicos da empresa". (10/11/04) comemora a associação entre design e marketing, que teria transformado as modestas sandalinhas em "
O mesmo sentido se verifica na reportagem Vestindo Campana (07/04/04), que trata de uma linha de objetos "baratos" (bolsas, bijouterias e camisetas) criada também pelos irmãos designers, para atender "um público que se interessa por design (…) mas não tem condições de pagar 9.000 reais numa mesa ou 12.000 numa poltrona assinada pela dupla". A despeito disso, os irmãos Campana se declaram seguidores de uma "filosofia" socialmente correta, por empregarem trabalho de cooperativas na produção de suas criações: "Não usamos alta tecnologia ou materiais de ponta, mas sim pessoas e trabalho manual. E com isso criamos algo sofisticado e de alto valor."
As (poucas) abordagens politizadas do design
A flexibilidade conceitual do Mapa Semiótico, assim como a riqueza das questões desta coleção de reportagens poderiam estender a discussão por inúmeras páginas, pois há várias reportagens que não se enquadram exatamente nos quadrantes e hemisférios do Mapa, assim como alguns de seus arranjos ocorrem somente em artigos isolados, sem maiores consequências para as conclusões gerais. Por este motivo, e também pelos propósitos deste estudo, não faz sentido apresentar conclusões sobre toda e cada uma das reportagens, mas sim sobre seus aspectos e problemas predominantes, entre os quais está a baixíssima ocorrência de abordagens claramente politizadas do trabalho dos designers, considerada a sua alta repercussão sobre a vida social e psíquica, e não somente sobre o mercado ou um conjunto de consumidores.
Com efeito, das 97 reportagens, apenas 7 delas aludem, mesmo que sutilmente, às questões de interesse público, como o funcionamento das cidades, o meio-ambiente, a defesa da liberdade e da igualdade, ou à luta contra totalitarismos de diversos matizes. No Mapa Semiótico, tais questões correspondem ao quadrante da Missão, expresso na imagem 7, e resultante do cruzamento dos valores Crítico e Utópico.
Este quadrante é marcado pelo senso de dever e pela idéia de projeto utópico, baseados na busca pelo bem estar social e coletivo, e mesmo na busca do impossível, a partir de questionamentos da realidade concreta e presente. Trata-se da defesa do conhecimento aplicado, fundamentado por grandes questões filosóficas.
Este é o caso de O último clássico: a arquitetura sem Mies (27/08/69), Bauhaus: eles começaram uma revolução há 50 anos (03/09/69) e Designers de imagens (16/03/94 ), que abordam, respectivamente, a obra e a morte do arquiteto Mies Van der Rohe e, nas duas últimas reportagens, a herança da Bauhaus. Tais temas são tratados como episódios revolucionários da história do design e da arquitetura, tanto pelo legado conceitual e formal, quanto pela posição política, claramente marcada pela oposição ao nazismo. Este também é o caso de A Bauhaus viva (10/07/74), curiosamente caracterizada na reportagem por meio das idéias de Walter Gropius, que "defendia ainda a integração dos artistas na sociedade de consumo (...) injetando enfim, a beleza na vida cotidiana e imediata do ser humano anônimo e comum."
A ideia do atendimento ao cidadão anônimo e comum (ou seja, não-célebre e não-rico) também comparece, numa versão contemporânea, funcional e ergonômica, na reportagem A favor do pedestre (28/04/04), que trata das exigências feitas pela União Européia aos fabricantes de carros, para que implementem inovações que protejam os pedestres em casos de atropelamento. Neste artigo o design é apresentado ao lado da engenharia, como o setor das empresas responsável por tais soluções. Também a pequena reportagem Ecologicamente corretos (28/04/04) aborda um problema contemporâneo global atinente ao universo do design, anunciando matérias-primas ecologicamente corretas, e apontando o designer como o profissional por excelência para pensar em tais questões, embora denuncie os altos custos desta opção.
Há ainda a reportagem Emoções de papel (26/04/89), que apresenta a exposição Imagens Internacionais pelos Direitos do Homem e do Cidadão, de cartazes comemorativos dos 200 anos da Revolução Francesa, projetados por designers do mundo inteiro, e expostos simultaneamente em várias partes do globo. Os designers e seu trabalho são apresentados na reportagem de maneira politizada, cosmopolita e utópica, contribuindo com a comunicação gráfica para a dignidade e a emancipação humana.
Outros usos do termo design
A amostragem de artigos da revista Veja contempla ainda duas situações peculiares, que merecem comentários: a primeira delas refere-se aos usos da denominação "design" para nomear fenômenos bem diferentes daqueles afins ao exercício profissional, mas que não apresentam nenhuma incorreção conceitual. É o caso da reportagem Design primitivo (04/09/74) que divulga as pesquisas etnográficas de Ariano Suassuna sobre a cultura sertaneja, e em particular das insígnias de marcar bois. O artigo usa a denominação de maneira conceitualmente correta, como uma inteligência organizadora de formas: "o trabalho de Suassuna demonstra o quanto parece haver de uma espécie de design primitivo nessa arte nordestina e cruel. (…) as marcas nascem da permutação dos mesmo elementos constitutivos. Além do puxete, há a haste (uma barra vertical), as combinações entre os dois (…), as formas circulares." Outra ocorrência afim da palavra ocorre na reportagem Onde Darwin é só mais uma teoria (11/02/09), que trata da polêmica sobre ensino das teorias criacionistas nas escolas brasileiras, ao lado da teoria evolucionista de Darwin. A idéia de "design inteligente" é mencionada em alusão à inteligência divina responsável pelo universo e pela vida. Estas duas reportagens dão indícios de que o entendimento público comum, que parece equivocado a alguns membros do campo, é na verdade a expressão da própria abrangência do termo.
A não-nomeação e algumas consequências prováveis
A outra situação notável percebida durante a seleção das reportagens, e com maior ênfase nos anos 90-00, é a imensa quantidade de artigos sobre a cultura material projetada, nas quais o design não é nomeado, e nem são feitas indicações de autoria dos projetos, quer seja em termos do mérito autoral ou das responsabilidades técnicas e sociais implicadas, muito emborataisreportagenstratem, em geral, dos aspectos formais e funcionais de objetos de uso cotidiano produzidos em série. São textos que tratam da moda e vestuário em termos de "estilo", mas também em termos da ergonomia e funcionamento de objetosdiversos, como embalagens, relógios, bolsas, bicicletas, motos e carros, móveis, eletrodomésticos, utensílios de cozinha, equipamentos esportivos e urbanos, carrinhos de bebê, livros, itens de informática. Há até mesmo o novo modelo de revólver, divulgado da reportagem Direto no alvo (20/05/84), e celebrado como "um modelo revolucionário (...) No caso de tiros intermitentes, o cano normalmente aquece muito. Mas, com a abertura de ventilação que fizemos na banda do revólver, o resfriamento é mais rápido. Além disso, o detalhe dá uma aparência sofisticada ao desenho."
Tais reportagens ocorrem em grande quantidade e ao longo de todo o período investigado, e embora não seja possível enumerá-las ou discutí-las em profundidade neste espaço, há uma implicação a respeito que merece ser pontuada, e que é expressa assim por Rafael Cardoso:
“Quase quatro décadas após a abertura dos primeiros cursos universitários de design e da fundação da primeira associação de profissionais da área, o design continua a ser uma atividade relativamente desconhecida para a grande massa da população. (…) É no mínimo preocupante constatar quão pouco a consciência do design como profissão tem alterado a evolução cultural brasileira ao longo deste período. Ao examinarmos a paisagem material que nos cerca, nos deparamos com problemas de design crônicos em áreas como transporte, saúde, equipamentos urbanos e uma infinidade de outras instâncias do cotidiano.” (Denis: 2000, 199-205).
No caso desta pesquisa, o desconhecimento do design pela população remete à coexistência das inúmeras reportagens que não o nomeiam com os demais artigos que o fazem, e em particular aqueles que o associam aos valores do quadrante da Euforia,no Mapa Semiótico. Trata-se da construção social de um significado — o significado de design — com severas consequências tanto para a população em geral quanto para a comunidade dos profissionais.
A mais preocupante destas consequências, em nossa opinião, refere-se aos processos de identificação dos designers, e em especial daqueles em fase de formação, pois, como visto, a mídia impressa parece reforçar a idéia de que a natureza do design é de fato efêmera, superficial e estetizante, servindo apenas a propósitos fantasiosos e ostensivamente mercadológicos, conforme já demonstrado. A associação entre estas visões do design e a omissões de sua nomeação de outras reportagens mantém oculto o viés projetual, estruturante e analítico desta atividade, o que pode efetivamente incidir sobre uma geração inteira de jovens profissionais, que passariam a conceber a si mesmos como experts em "estilo", cujo trabalho não gera consequências negativas, o que os isenta, portanto, de responsabilidades sociais de médio e longo prazo.
Este parece ser o saldo final da reportagem de capa Design: o poder do belo (26/05/04), que o subssume claramente ao objetivo financeiro das empresas, atribuindo aos designers o papel de líderes empresariais do momento (lugar já ocupado por engenheiros, administradores, advogados e homens de marketing, dos anos 20 aos anos 80).
O texto justifica a importância do design pela primazia da aparência de todas as coisas, de gravatas a linhas de montagem, de logomarcas a placas de sinalização, da maquiagem teatral a organização de espaços, de um discurso político bem articulado aos computadores Apple. Paradoxalmente, a reportagem celebra a superação da "definição original [de design], ligada a peças únicas de decoração", lembrando que até pouco tempo, "a palavra design evocava produtos de aparência extravagente e sobretudo caros", mas que hoje, está acessível "a quase todos". No entanto, a despeito desse comentário "socializante", predomina na reportagem a explicação sobre "como o design, o estilo e a aparência se tornaram fundamentais no mundo atual, decidindo o sucesso ou o fracasso de pessoas, empresas e produtos."
Esta visão é particularmente problemática quando associada a algumas reportagens que tratam certos designers como celebridades [3], destacados entre os demais mortais por sua genialidade ou personalidade especialmente excêntrica, o que contribui para a idéia de que o design é um atributo de exceção no vasto mundo material que nos cerca. Este é o caso da reportagem Luxo e lixo para as massas (22/10/08), sobre o designer egípcio Karim Rashid, notabilizado por apresentar o design como uma "forma de expressão e até de libertação do consumidor" e por defender a "nutopia" (nova utopia), ideologia visionária e otimista que prevê um futuro colorido e sem tédio, no qual os avanços tecnológicos "permitirão que as pessoas tenham controle total sobre o design de tudo aquilo que consomem". A reportagem sublinha que Rashid "faz de si próprio, senão uma obra de arte (...), ao menos uma peça de design. Só veste ternos brancos e cor-de-rosa, ostenta óculos e relógios de pulso sempre supreendentes e tem os braços cobertos de tatuagens."
A celebrização também é explícita em dois artigos de 2004: Palácio do Cristal (14/01/04), que trata da nova loja dos cristais Baccarat, projetada por Philippe Starck, o "designer do belo e do lúdico", e "provavelmente a maior estrela mundial do design." Já a reportagem O que vale é a beleza (25/02/04), afirma que a "tendência dos fabricantes [de automóveis] é investir mais em design do que em motor", e compara os designers do setor a "estrelas do futebol", por seus salários vultuosos e por serem disputados entre os fabricantes, por sua expertise profissional de "levar as pessoas a um lugar onde nunca estiveram, tirá-las da realidade", ou "emocionar o comprador" para que as vendas continuem seguindo seu ritmo ascendente.
Estas reportagens contrastam com outras publicadas nos anos 70, que, embora utilizem a denominação "desenho industrial" apresentam o designer de uma forma mais próxima ao que parece ser o ideal do campo na atualidade. Ou seja, de forma menos fantasiosa e mais pragmática, como é o caso do artigo Na vida real: os objetos e desenhos de Raymond Loewysempre teve um olho para a imaginação e outro na caixa registradora", e também dono de uma certa consciência política de viés pacifista, pois ele teria deixado "um jantar na metade quando um empresário o convidou para projetar uma granada de guerra de maior eficácia mortal". Ao contrário de celebrizá-lo, a reportagem aponta Loewy como alguém relativamente discreto em sua vida privada, mas presente no cotidiano ocidental por meio de suas criações, que "alteraram, muitas vezes, o comportamento do público". (12/12/79), que o apresenta como um visionário homem de negócios, ao afirmar que ele "
Notas:
[3] Uma análise precisa e abrangente da invenção das celebridades pela revista Veja faz parte da hipermídia A invenção do Mesmo e do Outro na mídia semanal (2008), coordenada pelo professor e pesquisador José Luiz Aidar Prado, do Grupo de Pesquisas em Mída Impressa da PUC SP.
Referências bibliográficas:
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CARDOSO, R. O design brasileiro antes do design. São Paulo: CosacNaify, 2005.
Deleuze G, GUatari F. O que é um conceito? In: Deleuze G, Guatari F. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, (27-47).
DENIS, R. C. Uma introdução à história do design. São Paulo: Edgard Blücher, 2000.
PRADO, J. L. A. (org). A invenção do Mesmo e do Outro na mídia semanal. São Paulo: PUC SP / Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica, 2008.
SEMPRINI, A. El marketing de la marca: una aproximación semiótica. Buenos Aires: Paidós, 1995.
Ana Claudia Berwanger é designer pela Universidade Federal do Paraná (1996), professora do curso de Desenho Industrial da Universidade Federal do Espírito Santo desde 1999. É doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na PUC-SP, onde desenvolve pesquisa sobre a formação do camp