Modernização, condutas e conflitos: os bondes no Brasil
Alexandre M. de Lima e Fernando Augusto Souza Pinho
Bondes: a ferrovia na cidade
A passagem do século XIX para o XX foi um período de modificações substanciais na conjuntura mundial. A cidade havia se tornado o locus da “modernidade”, e os paradigmas sociais, econômicos e tecnológicos tornaram-se cambiantes e sensivelmente voláteis. As nações perfilavam-se através do arranjo de uma nova ordem econômica impressa pelo capitalismo industrial. As cidades europeias que sofreram o grande impacto da industrialização, como Londres e Paris, foram reformuladas segundo princípios higienistas. Surgem novos acessos, novas e largas avenidas arborizadas – os bulevares – que não só demostravam cabalmente os princípios higienistas a partir dos quais foram moldados, como evidenciavam a influência de novos paradigmas de mobilidade; afinal, o progresso das cidades corria por suas vias de acesso.
Neste contexto, os aparatos mecânicos e outros implementos tecnológicos passam gradativamente a integrar a vida cotidiana – o que Mumford (1963, p. 41) denominou de “assimilação da maquinaria” –, desempenhando papel importante em sua tessitura. Com efeito, o telégrafo, a luz elétrica, os fonógrafos, os daguerreótipos, os cinematógrafos, a navegação a vapor, entre outros exerciam uma forte atração sobre a sociedade a partir da segunda metade do século XIX. No entanto, talvez nada tenha fascinado e seduzido mais do que a ferrovia.
Ao desenvolver a tecnologia de construção de estradas de ferro, a Grã-Bretanha colocou à venda no mercado mundial um produto que representou a mais espetacular inovação tecnológica nos meios de transporte e comunicação até então inventados pelo homem (CURY, 2006). A ferrovia e a locomotiva a vapor tornaram-se símbolo indelével da era industrial. Criada como solução para o problema de transporte do carvão à época da Primeira Revolução Industrial, a ferrovia imprimiu à máquina a vapor um caráter ainda mais revolucionário na medida em que redimensionou por completo a vida humana, aumentando a velocidade de deslocamento de pessoas e coisas e promovendo uma radical integração territorial.
Seguindo este curso, não tardou para que a tecnologia inglesa dos “caminhos de ferro” fosse incorporada ao transporte público, que passa a ter importância crescente no meio urbano não só como imagem de desenvolvimento, mas como vetor de transformações socioespaciais. Ainda que os Estados Unidos reivindiquem para si a transposição da tecnologia das ferrovias para o âmbito do transporte público, a mesma foi primazia europeia; a partir da segunda metade do século XIX as caleches, os cabriolés e os coches de aluguel passaram a dividir as ruas com os primeiros bondes de tração animal ou a vapor. No bojo do processo de eletrificação das cidades europeias surge uma nova geração de bondes, secundada pelas pesquisas do alemão Werner Von Siemens com máquinas de tração elétrica. Sem embargo, a rápida difusão dos bondes elétricos no Velho Continente trouxe consigo sensíveis transformações na configuração físico-territorial e socioespacial das cidades nas quais foram implantados. Mas os bondes também causariam profundas alterações nos padrões comportamentais de seus usuários, através da introdução de novos paradigmas.
Símbolos da modernidade, os bondes chegam ao Brasil
Não tardaria para que o Brasil fosse influenciado por este grande processo de transformação/modernização do cenário do transporte de pessoas e cargas. Todavia, foi somente na segunda metade do século XIX que o Brasil Imperial, basicamente agrícola foi compelido a transpor diversos obstáculos de ordem econômica, social e tecnológica – para não ficar à margem deste cambiante quadro conjuntural que se processava principalmente na Europa e América do Norte (MOTOYAMA, 2004).
Dentre tais barreiras, figurava a dependência da economia brasileira do trabalho escravo. Maior importador de cativos africanos por 300 anos, o Brasil foi a última nação a libertá-los. No entanto, a partir de 1850, houve a paulatina liberação de capitais do comércio negreiro, possibilitando que considerável soma de valores fosse investida em diversos setores econômicos. Outro obstáculo de certa complexidade era constituir uma infraestrutura urbana, energética e de transportes que estivesse consoante àquela do Velho Continente e inumasse os antigos padrões coloniais ainda vigentes.
Neste sentido, as iniciativas de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, são memoráveis (1). Com recursos próprios, Mauá construiu a Estrada de Ferro de Petrópolis, primeira ferrovia brasileira, inaugurada em 30 de abril de 1854 num trajeto que ia do Porto da Estrela, na Baía da Guanabara, até a Raiz da Serra da Estrela, perfazendo 14,5 quilômetros à bordo da Baroneza, uma robusta locomotiva Fairbarns & Sons produzida em Manchester. Daí até Petrópolis, o trajeto prosseguia em carruagens. A partir de então, a ferrovia passa a ser o modelo adotado no Brasil para transportes de pessoas e de cargas, inclusive no âmbito intraurbano, através dos bondes.
As carruagens, tílburis, cabriolés e outros veículos de tração animal, ou mesmo humana (2), não só partilhavam as ruas coloniais brasileiras como também tinham de atender a demanda por condução até 1859, quando, em 30 de janeiro, é então inaugurado no Rio de Janeiro o primeiro sistema urbano de transporte público através da Companhia Carris de Ferro (MORRISON, 1989). A primeira linha de bondes, de tração animal, que ia do Largo do Rocio – hoje Praça Tiradentes – até o Alto da Boa Vista foi substituída em setembro de 1862 pela tração a vapor.
No Rio de Janeiro, a eletrificação dos serviços de bondes foi relativamente lenta. Comenta Stiel (1984) que em 1887, uma empresa denominada Força e Luz tenta, sem sucesso, implantar um sistema de carris com acumuladores elétricos. Em agosto de 1982, a Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico iniciou experiências com tração elétrica por meio de alimentadores aéreos, obtendo êxito. E assim, em outubro daquele ano, a Companhia pode inaugurar, com muita festa, a primeira linha de bondes elétricos do Brasil, e da América do Sul.
A partir das exitosas experiências com a implantação de bondes no Rio de Janeiro, as principais cidades do Brasil – dentre elas, Belém - passaram a progressivamente adotar os tramways, ou bondes, como ficaram conhecidos, não só para atender a demanda por transporte, que tornou-se proporcional ao crescimento e desenvolvimento das cidades brasileiras, mas como representação de desenvolvimento e como elemento legitimador da parenética do poder público que, no alvor da República, buscava inumar toda e qualquer lembrança das estruturas e símbolos imperiais.
Explica Stiel (1984) que Belém foi a primeira cidade do setentrião brasileiro a inaugurar um serviço regular de transporte coletivo por meio de bondes. A primeira linha ligando o Largo da Sé ao Largo de Nazaré foi inaugurada em 1° de setembro de 1869, e como força de tração, contava com uma pequena locomotiva a vapor, o que conferia aos bondes de Belém um aspecto de ferrovia. Em novembro de 1881, a Intendência Municipal de Belém concede o direito de exploração dos transportes urbanos por meio de bondes a uma nova concessionária - a Companhia de Bonds Paraense – que inaugurava novas linhas de carros com tração animal trafegando em bitolas menores. A implantação da tração elétrica só se tornou realidade em 1907, em função dos trabalhos de uma nova concessionária – Pará Electric Railway and Lighting Company – com sede em Londres.
Os bondes promoveram sensíveis alterações não só através de outras maneiras de perceber e de vivenciar o espaço urbano, mas pelo estabelecimento de novas posturas e costumes, condizentes com o Zeitgeist. Na medida em que interferiam nas diversas esferas das configurações socioespaciais, os bondes foram gradativamente incorporados à vida cotidiana, adquirindo significações diversas de forma tal que polissemia, urbanidade, status, exclusão, ruptura, continuidade, modernidade e decadência tornaram-se suas principais características.
Neste sentido, os bondes também foram loci para que seus usuários experimentassem outras formas de sociabilidade dentro de um espaço “confinado”, mas, em certo sentido, “congregador”, posto que desconhecidos, por vezes de condições socioeconômicas diferentes, dividiam o exíguo espaço de um banco durante o transcurso de uma viagem. O exercício diário da sociabilidade, ou seja, das regras da boa convivência, civilidade, afabilidade, urbanidade, foi acompanhado por novos conjuntos de fenômenos psíquicos experimentados pelos usuários de bondes na forma de emoções e sentimentos, engendrando assim novos padrões de afetividade.
Contudo, dentre os novos paradigmas sociais surgidos com o bonde também figuram as relações pautadas pela dominação e regulação de condutas, seja por força política, econômica ou gênero, e o controle sistemático dos instintos e emoções individuais, em nome da boa educação e do bem-estar da coletividade. Em contrapartida, também se estabelecem as relações de resistência contra o que Foucault (2009) chamaria de “normalização” dos comportamentos humanos. Desta forma, observar o cotidiano urbano nos bondes cariocas e belenenses significa exercitar um olhar sobre algumas singularidades constituintes da experiência civilizatória nos trópicos. Em busca destas, e para melhor percebê-las, faz-se necessário uma revisita à sociologia do processo civilizador segundo Norbert Elias.
Norbert Elias e o processo civilizador
Na história ocidental vem sendo observada a continua e progressiva diferenciação das funções sociais, ampliada potencialmente em função do aumento populacional e avanço dos territórios citadinos. Com isso, o grau de interdependência entre pessoas e suas funções aumentaram e tal fenômeno acarretou a maior necessidade de convivência. Para tal “convivialidade”, foram se constituindo padrões de comportamento, entronizados individualmente de tal modo que se cristalizam e que são vistos como “naturais”, de modo que os instintos “primitivos” fossem controlados.
Norbert Elias (1994) comenta que tal processo poderia ser compreendido como a ocorrência de uma série de mudanças na conduta e nos sentimentos humanos rumo a uma determinada direção, sendo que esta não fora engendrada por um grupo específico de pessoas, mas sim na própria relação entre pessoas. Em virtude da realização da vida humana em coletividade, foi necessário o estabelecimento e a disseminação de padrões sociais em um processo contínuo, independente de sua intensidade e efetividade.
O processo civilizador ocorreu de forma diferente em diversos países, mas com similaridades que se desenvolveram com características estruturais próprias. Os padrões de comportamento, de regulação de emoções, de estrutura das economias das paixões e de superego que emergiam foram se amalgamando entre as diferentes classes sociais e se espraiaram pelos países ao longo do tempo.
Não se deve pensar que o comando e medos que hoje imprimem sua marca na conduta hodierna dos indivíduos tenham tido como objetivo simples e fundamental a necessidade da coexistência para dar equilíbrio estável entre os desejos de muitos e a manutenção da cooperação social. No entanto, eles representam forças fundamentais geradas tanto pela própria estrutura da sociedade quanto pelas tensões que criam – e recriam – os parâmetros de comportamento socialmente aceitos e construídos.
Em O Processo Civilizador, Elias busca compreender como os homens, naquilo que entendemos ser “educado”, começam a se tratar mutuamente através de boas maneiras. O desenvolvimento de modos de conduta é uma prova irrefutável de que inexistem atitudes que sejam naturais ao homem. Antes, houve um condicionamento, uma espécie de adestramento, que acaba por fazer com que o ser humano comporte-se desta maneira ou de outra, conforme a sociedade – e seus paradigmas – na qual está inserido.
A complexificação e o refinamento das convenções de estilo, bem como as diversas modalidades de intercâmbio social, o controle dos instintos e emoções, o apreço pelo comportamento polido e cortês, a importância da boa fala e da eloquência da linguagem (ELIAS, 1994), dentre outros elementos, acabam por denotar o processo civilizador em curso. No entanto, esclarece Elias (2006) que os seres humanos não são civilizados por natureza. Antes, a evolução de comportamento e costumes pela qual determinado indivíduo precisa passar é função de paradigmas, regras sociocomportamentais que denomina de processo civilizador social. Assim, a passagem de cada ser humano por este processo é compulsória, para que ele então possa atingir um determinado padrão de civilização – ou civilidade – alcançado no curso da história da sociedade a qual pertence.
O processo civilizador é vinculado ao conceito de civilização, por meio do qual o termo define o resultado da fusão de duas ideias, posto que constitui um contra-conceito geral a outro estágio das sociedades humanas, a barbárie. A civilização não seria “apenas um estado, mas um processo que deve prosseguir” (ELIAS, 1994, p. 23). Em oposição aos que vivem de forma mais simples, mais incivilizada ou bárbara, o conceito de civilização traz consigo a ideia de um tipo mais complexo de sociedade, na qual elevados padrões morais e costumes, o tato social, a deferência e a consideração pelo próximo são algumas de suas características.
Comenta Elias (1994, p. 25) que, até determinado ponto, o termo “civilização” minimiza as diferenças nacionais entre os povos, posto que “enfatiza o que é comum a todos os seres humanos ou – na opinião dos que possuem – deveria sê-lo”. No entanto, o conceito de civilização, e por consecução o de civilidade, diferem em função do contexto no qual o mesmo é considerado. Para explicar estas diferenças de contexto, Elias compara a interpretação do termo na França, Inglaterra e Alemanha. O conceito alemão refere-se a fatos intelectuais, artísticos e religiosos; a referência a comportamentos e valor que o indivíduo apresenta por sua própria existência é secundário. Já na Inglaterra e França, o termo refere-se às conquistas e produções materiais – e também espirituais – que alimentam a consciência coletiva de progresso e superioridade. Também se refere aos costumes refinados, às polidas tradições das cortes – o que originou ao termo cortesia, e à acentuação dos padrões de moralidade.
Sobre a moralidade, Elias (1994) a define como o comportamento reservado, sendo que a eliminação de todas as formas de expressão vulgares é sinal evidente do estabelecimento de rota para o que o autor denomina “civilização”. Parte indelével da cultura de uma determinada coletividade, a moralidade, bem como a boa forma, o controle dos sentimentos e ímpetos individuais pela consciência racional, tornam-se elementos vitais para toda a boa sociedade. Dentre estes elementos, é dada especial atenção ao autocontrole, definindo-o como elemento fundamental não só para a convivência de indivíduos em sociedade, mas também para a progressão social.
O progresso e superioridade atingidos por uma determinada sociedade provocam alteridades na personalidade dos indivíduos, especificamente no aumento do autocontrole sobre seus modos e emoções. Assim, com a libertação dos costumes, o autocontrole necessariamente é maior, e este seria o custo maior trazido às pulsões e ao ímpeto humano. Assim, a superficialidade, a cerimônia na relação com o outro, as conversas formais, os temas amenos e triviais acabam se tornando a regra em função da necessidade do autocontrole. Em certos termos, tais comportamentos assemelham-se à atitude blasé – descrita por Simmel (1967) – tão característica dos habitantes das grandes cidades. Deste modo, a educação, a polidez e a “urbanidade” dos indivíduos são dependentes da superação das próprias tendências naturais.
Sob influência do autocontrole, a vida em sociedade passa a exigir o domínio dos códigos de posturas e etiqueta. Este, além de serem indícios indeléveis dos critérios de progressão social e do estágio de civilidade de uma determinada sociedade, possibilita oportunidades econômicas e políticas para o indivíduo em busca de melhores patamares. É então que a classe hegemônica passa a adotar comportamentos “amaneirados”, caricatos e artificiais.
Eventualmente, a emulação dos comportamentos polidos e das atitudes civilizadas também proporcionava melhor aceitação em círculos sociais restritos. Como o processo civilizador tende a estabelecer diferenças notórias entre as classes sociais, tal expediente era utilizado por indivíduos de classes menos privilegiadas visando trânsito e aceitação social. Com o tempo, esta divisão passa a ser cada vez mais nítida, levando a classe abastada a se isolar em suas próprias regras e convenções, com a finalidade precípua de “preservar sua existência social privilegiada” (ELIAS, 1994, p. 38). Este isolamento também impedia a ascensão de classes inferiores através de estratégias como o casamento e o dinheiro. Isto contribuía de maneira sensível para o surgimento de conflitos e tensões sociais em função de diversos empecilhos impostos, desde as pequenas dificuldades até as peremptórias proibições das classes inferiores frequentarem e usufruírem determinados espaços – como cinematógrafos, restaurantes, áreas de comércio mais refinado e, no caso da presente pesquisa, a determinados tipos de bonde – que se tornam praticamente reservados à elite.
Não se busca aqui uma detalhada análise da teoria eliasiana do processo civilizador. Antes, intenciona-se aqui apenas uma breve revisão de pontos importantes a fim de secundar a análise comportamental das sociedades carioca e belenense no tempo em que as mesmas tinham o bonde como principal meio de transporte coletivo.
O Rio de Janeiro na época de Pereira Passos
Sem dúvida, considerando as cidades brasileiras, o caso do Rio de Janeiro é exemplar e o mais estudado, certamente em função de seu status de capital federal. A gestão do prefeito Pereira Passos (1902 a 1906), sob os mais diversos enfoques historiográficos, é considerada como um exemplo paradigmático do processo de modernização ocorrido nas cidades brasileiras na passagem do século XIX para o século XX.
Francisco Pereira Passos era formado em ciências físicas e naturais e em engenharia civil (PINHEIRO, 2002). Como era comum à elite da época, Passos experimentou os ares europeus, em especial os parisienses: foi adido brasileiro em Paris, de 1857 a 1860, onde manteve contato frequente com os engenheiros da École de Ponts et Chaussés (BENCHIMOL, 1990), tendo assistido às intervenções realizadas por Haussmann (COSTA & SCHWARCZ, 2000). Após esse período, Passos voltou ao Brasil e atuou em diversas obras de infra-estrutura, retornando vez em quando a Paris.
Com a assunção de Rodrigues Alves à presidência da República em 1902, Pereira Passos é designado para comandar a prefeitura da capital. A cidade do Rio de Janeiro, enquanto capital federal, representava o ambiente perfeito para a implantação de um projeto que promovesse a consolidação de um centro cosmopolita, que bem representasse o país, segundo os ditames republicanos, apagando o passado colonial, rural e escravocrata, tido como atrasado. Nesse sentido, como bem apontou Sevcenko (2003), os jornalistas e demais eruditos se constituíram como importantes entusiastas dos hábitos “civilizados”. Como veremos no caso da cidade de Belém, temos um exemplo na cidade do Rio de Janeiro, retirado da revista Fon-Fon, de junho de 1909:
“A população do Rio que, na sua quase unanimidade, felizmente ama o asseio e a compostura, espera ansiosa pela terminação desse hábito selvagem e abjeto que nos impunham as sovaqueiras suadas e apenas defendidas por uma simples camisa-de-meia rota e enojante de suja, pelo nariz do próximo e do vexame de uma súcia de cafajestes em pés no chão (sob o pretexto hipócrita de pobreza quando o calçado está hoje a 5$ o par e há tamancos por todos os preços) pelas ruas mais centrais e limpas de uma grande cidade... Na Europa ninguém, absolutamente ninguém, tem a insolência e o despudor de vir para as ruas de Paris, Berlim, de Roma, de Lisboa, etc., em pés no chão e desavergonhadamente em mangas de camisa.” (apud. SEVCENKO, 2003, p. 48-49)
Esse desejo por uma cidade “civilizada”, aos moldes europeus, existia muito antes da proclamação da república, embora nunca tenha sido colocado totalmente em prática. A concretude dessas idéias só foi possível graças a uma combinação ímpar entre disponibilidade financeira e liderança política. Pereira Passos representou essa capacidade de materializar esses projetos graças à forma ditatorial com que administrou a cidade. Inclusive, o aceite para assumir a prefeitura carioca foi condicionado à concessão de plenos poderes para seus atos, sem impedimentos políticos e legais. Para Pinheiro (2002, p. 146), a Reforma Pereira Passos é “um exemplo típico de como uma nova conjuntura na organização social determina novas funções na cidade”.
Saneamento, embelezamento e fluidez foram os eixos que caracterizaram a implantação desse projeto. Na verdade, tais eixos e suas respectivas medidas basearam-se no Plano de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, de 1875, do qual Pereira Passos participou de sua elaboração. Por sua vez, a inspiração maior seriam as reformas de Haussmann em Paris, as quais Passos presenciou, como informamos antes.
Por outro lado, é fundamental ressaltar que uma reflexão mais crítica sobre essa temática tende a relativizar essa comparação. Como afirmou Del Brenna (1985), a menção, na cidade do Rio de Janeiro, à reforma haussmanniana em Paris valia como modelo político-metodológico e como referência emotiva. Pinheiro (2002), em seu estudo sobre Paris, Rio e Salvador, mostrou que existiram não só semelhanças entre as reformas de Paris e do Rio de Janeiro como também diferenças, e por isso não constituiria o Rio um exemplo de mera haussmannização. Porém, os discursos que significam o Rio de Janeiro como uma Paris na América e Pereira Passos como o Haussmann tropical exercem tanto poder quanto produzem ecos, como se fossem um “canto de sereia”, sob o qual alguns estudiosos são “levados” a reiterá-los, seduzidos pela força desse instrumento de propaganda.
As resistências à “modernização compulsória” são a prova de uma face que esse canto de sereia procurou tornar opaca. Ainda que o centro se transformasse, a população dali expulsa passou a habitar o seu entorno, mantendo suas tradições. A “Pequena África”, um reduto de negros e nordestinos, é um desses exemplos. Outro exemplo importante consiste nas revoltas ocorrida: aquilo que especialmente simbolizava o governo e o progresso era destruído “ritualisticamente”, como os bondes e os postes de iluminação (SANTUCCI, 2008).
Belém na época de Antonio Lemos
A partir da segunda metade do século XIX, a capital da então Província do Pará experimentou um momento indelével em sua trajetória histórica, no qual sobreveio uma tendência de enaltecimento do moderno, do urbano e das vantagens advindas de inovações tecnológicas. Estas não representavam somente objetos de satisfação das mais distintas necessidades e caprichos, mas vetores-símbolos de uma pretensa modernidade que, ao se impor, através do efêmero curso dos modismos, também inumava o que era antigo.
A civilidade então toma forma de uma modernização intimamente relacionada à pertinaz busca do progresso. Porém, para galgar os patamares de progresso, as cidades prescindiam renovar suas feições para se mostrarem modernas, civilizadas, cosmopolitas (FOLLIS, 2004). Aparentemente, esta era a base da parenética utilizada pelos que então implementaram intervenções urbanas significativas, como Eugène Haussmann em Paris e Idelfons Cerdá em Barcelona, e que serviram de modelo para o urbanismo brasileiro do final do século XIX e início do século XX.
Comenta Sarges (2000, p. 97) que o aburguesamento da cidade ampliou a necessidades de manter os bairros centrais de Belém saneados, urbanizados e rigidamente disciplinados pelos códigos de posturas, para que “não fossem prejudicados pelos maus hábitos de uma população indisciplinada e fétida”. Tal fato tornou-se geratriz de tensões socioeconômicas que se tornaram explícitas através da relação dicotômica entre dois extremos que se estabeleceram na cidade: em uma ponta, a área central, palco das inovações e da modernidade, destinada à burguesia, e as áreas periféricas, destinadas àqueles que não pudessem sustentar o novo status quo.
Com efeito, tais medidas reguladoras, de teor notadamente excludente, concorreram para o afastamento das famílias de parcos recursos dos limites físicos – e na medida do possível, dos limites visuais – da elite. Dentre elas, a proibição de que construíssem “barracas” (3) nas áreas centrais da cidade, e a demolição das existentes, posto que eram edificações em desacordo com a estética refinada dos melhoramentos urbanos que então embelezavam a capital paraense.
Em relatório apresentado aos “vogaes da comuna”, relativo aos primeiros anos de sua administração (1897 a 1902), o então Intendente municipal Antônio Lemos refere-se a esta população de parcos recursos econômicos e pouco ilustrada, que, além de poluir visualmente a cidade com suas barracas, também causava incômodo às elites com sua rotina diária de trabalho: eram as vendedoras com seus tabuleiros, os garapeiros, os leiteiros, os vendilhões do Ver-o-Peso, etc. Suas atitudes “insuportáveis” e comportamentos “desmoralizadores” não eram compatíveis à nova ordem social que se estabelecera. Comenta o Intendente Lemos que o centro da cidade – que na época apresentou aumento do número de casas comerciais refinadas, passando gradativamente a ser frequentado pela boa sociedade belenense - havia se tornado palco das mais variadas transgressões das regras da boa convivência e da civilidade, oferecendo aos olhos dos transeuntes um lamentável espetáculo:
“Triste, realmente, o espetáculo que a cada passo se deparava nos pontos mais concorridos de Belém, onde os mercadores ambulantes de grande número de objetos e gêneros estacionavam e até armavam tendas, semeando de imundícies os locais que impunemente ocupavam, convencidos de exercerem ou estarem á sombra de um direito. Não foi pequena a luta, não só para convencer do erro os recalcitrantes, como para instruir convenientemente uma parte dos agentes da fiscalização.” (BELÉM, 1902. p. 32)
A distinção social e as tensões dela advindas são patentes no discurso lemista. Durante sua administração na Intendência de Belém, Lemos levou a termo um conjunto de melhoramentos urbanos que modificaram sensivelmente a fisionomia da cidade, principalmente em suas áreas centrais. A área comercial da Belém do início do século XX, onde historicamente se estabeleceu o comércio popular da cidade, era anteriormente frequentada por gente simples, mestiços, negras com tabuleiros na cabeça, moleques vendilhões, pescadores, garapeiros, bêbados e prostitutas. Mas com a mudança nos paradigmas econômicos, aliadas às reformas urbanas, o comércio popular deu espaço a estabelecimentos mais refinados, e atraiu a endinheirada elite da terra.
O espaço, então, tornou-se mais refinado, elegante, próprio para o footing. Assim, de maneira tácita, estabeleceu-se na nesta área, onde a elite local poderia ver e ser vista, novas regras de comportamento e padrões de moralidade que tornavam intolerável partilhar estes espaços com mercadores ambulantes e vendilhões. Desta forma, à semelhança do que estabelece a teoria eliasiana do “processo civilizador”, as barreiras impostas aos acessos de classes mais baixas além de conservarem as distâncias entre os extratos sociais, aumentam as tensões entre eles.
Para o Intendente, o comportamento inculto do populacho e as transgressões ao Código de Polícia eram reflexos da ignorância e da falta de civilidade, e para ordenar o comportamento desta massa de infratores, a municipalidade impôs um rígido Código de Polícia:
“Estou convicto de que, sobre cem multas impostas entre nós por infrações do Código de Policia Municipal, muitas devem ser levadas à conta da ignorância dos transgressores. Não é isto, bem o sei, uma atenuante ao delito, mas reforça com eloquência o meu inveterado convencimento da necessidade da difusão do ensino cívico entre nós.” (BELÉM, 1902. p. 37)
Mesmo com a aplicação sistemática de pesadas multas, os ambulantes relutavam em permanecer nas áreas em questão, aglomerando-se nas proximidades das paradas dos bondes, onde presença constante de passageiros facilitava as vendas, inclusive através do estabelecimento de quiosques. Nestas pequenas edificações vendia-se quase tudo: desde bilhetes de bonde, fumo, cachaça e até o caldo de cana tirado na hora.
Em função de um sistema de coleta de lixo ainda incipiente, o bagaço da cana era atirado diretamente ao chão, o que além passar a imagem de desleixo, contrariava o ideário higienista que influenciava as reformas urbanas levadas a termo em Belém. Além disto, o ajuntamento de pessoas de baixa classe nestes locais era uma verdadeira afronta à educação e polidez das boas famílias belenenses. E desta forma, as tensões sociais manifestavam-se no espaço urbano, como pode ser percebido através de nota em jornal de época:
“Não têm conta as reclamações que nos são dirigidas contra a colocação de um kiosque, no ponto de partida dos bondes da linha do Bagé, no Ver-o-Peso. [...] Não só o mau cheiro de garapa azeda e as moscas a isso se opunham, como também a gente de baixa moral que ali se apinha, deve deixar ver que a intendência está na obrigação de reconsiderar seu ato si é que não está no propósito de proibir às famílias tomarem o Bonde no referido ponto.” (A Palavra, 10 de maio de 1917, p. 3)
Em função do preconceito, e principalmente pelo estabelecimento de medidas notoriamente coercitivas – os Códigos de Posturas e Códigos de Polícia Municipal - considerável número de desempregados, operários e trabalhadores informais foi compelida a abandonar as áreas centrais da cidade rumo aos bairros afastados, rumo às periferias (4). Assim, gradativamente foram ocupados os bairros mais distantes do centro, as quais eram áreas onde as rígidas políticas ordenadoras e sanitaristas do poder público aparentemente não encontravam campo de aplicação.
A força de trabalho que movimentava o comércio e as fábricas no centro de Belém encontrava-se, em grande parte, habitando estes bairros periféricos. Sua rotina era um movimento pendular entre os extremos da cidade: o centro e a periferia, o ordenamento e a desordem, o progresso e o atraso. Uma polaridade produzida pelas desigualdades sociais, econômicas e espaciais da cidade. No entanto, um ícone que legitimou o discurso de modernidade da Comuna de Belém paulatinamente passou a interconectar estes dois extremos espaciais e sociais, criando intersecções e complementaridades: o bonde.
Tensões, transgressões, sociabilidades: o cotidiano dos bondes cariocas e belenenses
Como meio de transporte urbano, o bonde foi um dos legítimos representantes do progressismo e modernização de diversas cidades brasileiras. Todavia, a adaptação da sociedade ao uso dos bondes não foi isenta de percalços e dificuldades, motivadas, em grande parte, pelas diferenças sociais, de gênero, econômica e mesmo ideológicas. Assim, como explana Elias (1994, p. 19), com a civilização gradual, “surge certo número de dificuldades específicas civilizacionais”.
Pessoas aguardando os bondes nas paradas e estações, outras nele viajando; umas caladas e alheias ao que se passava ao redor, outras conversando animadamente; outras mais transgredindo intencionalmente as normas tacitamente impostas pela civilidade e bons costumes e/ou os rígidos códigos de postura – tal quadro torna evidente a mudança estabelecida nos paradigmas sociais, sobre o que a sociedade admite como indispensável, aceitável e indesejável, a partir da implantação dos bondes.
No Rio de Janeiro, na transição para o regime republicano, são implantadas as primeiras linhas de trem e de bondes, que ampliam os limites urbanos e dividem socialmente a cidade. As linhas de bonde destinavam-se às áreas já em processo de urbanização, enquanto as linhas de trem eram orientadas para áreas ainda rurais, mudando sua configuração. Em 1868 começaram a funcionar as primeiras de bondes a tração animal. A primeira linha de bondes elétricos foi inaugurada em 1892 (PINHEIRO, 2002).
O bonde como meio de transporte urbano entrou, com certa brevidade, no rol de novos costumes sociais, gerando uma demanda crescente pelo serviço de transporte público. Assim, a demanda reprimida somada às inconstâncias de horários dos carris, contribuía para que o número de bondes fosse considerado insuficiente, o que causava grande insatisfação dos usuários, e dava margem para comportamentos tão inaceitáveis quanto incompatíveis com o “progresso” conquistado pela “boa sociedade”.
Em relatório sobre os primeiros anos de sua administração (1897 a 1902), o então intendente municipal de Belém Antônio Lemos traçou um perfil dos serviços de bondes na capital paraense. Em que pese o discurso do Intendente, notadamente progressista – mas também preconceituoso e extremamente elitista - o relatório deixa transparecer o incômodo e os constrangimentos causados pela falta de educação e hábitos polidos dos usuários dos bondes. Um exemplo destes repreensíveis comportamentos pode ser observado em comentário sobre o excesso de passageiros nos carris:
“Queixamo-nos da morosidade dos bondes, da evidente fraqueza dos muares cansados. Mas somos nós próprios que contribuímos para tais prejuízos e demoras, enchendo os veículos, sem respeito à letra correlativa do Código de Policia Municipal ou à propriedade da companhia. Com cinco e às vezes seis passageiros em cada banco, as plataformas atulhadas e os estribos repletos, passam os bondes arrastando-se vagarosos, detendo-se nos declives ascendentes pela impotência das parelhas, rangendo-lhes as molas e cedendo todos eles ao peso da sobrecarga. E cada vez aumenta o número dos passageiros, indiferentes àquele exagero.” (BELÉM, 1902, p. 258)
Era notória a falta de polidez – ou melhor, a ausência de um comportamento não condizente com o dito “civilizado” – da população ao tomar os bondes de tração animal, que iam atulhados de passageiros a ponto das parelhas de muares não conseguirem se movimentar. Mesmo com o estabelecimento de medidas regulatórias pela Municipalidade, a “incivilidade” era tamanha que os instrumentos coercitivos atuantes (o Código de Policia Municipal e os guardas) não eram medidas suficientes para causar um movimento de mudança no padrão comportamental da sociedade:
“Argumentar-se-à que no Código de Policia Municipal existem recursos para fazer cessar o abuso. De fato; mas tão inveterada está essa tendência de encher os bondes em excesso, que fora necessário criar um verdadeiro batalhão de guardas municipais, a fim de colocar um ao lado de cada passageiro, tantas e infinitas são as infrações, cada dia. Já uma feita pretendi acabar com este abusivo habito. Mas os protestos foram tão grandes, que desisti do intento, esperando que o desenvolvimento da civilização produza um critério mais consentâneo com a boa razão.” (BELÉM, 1902, p. 258)
As transgressões das regras da boa educação eram inúmeras. Tantas quantas também eram as violações deliberadas do Código de Posturas. No entanto, a falta de observância às normas estabelecidas e a debilidade da fiscalização foram alvo de críticas pelo Intendente:
“A falta de hábito na aplicação de severa e prudente fiscalização gerará no espírito de uma parte da população a ideia de que o policiamento municipal não era coisa a que lhe cumpria submeter-se. Daí não só a multiplicação de abusos, insuportáveis, uns e até desmoralizadores outros, como também a estranheza ante a aplicação das penas do antigo Código de Posturas [...]” (BELÉM, 1902, p. 32)
No entanto, os bondes não foram somente palco de tensões sociais manifestas. Também serviram como passarela através da qual a elite endinheirada da terra desfilava segundo a nova moda de Paris, ou de Londres, e procedia consoante novas regras de comportamento, como se pode ver em nota publicado em jornal de época:
“Se vai a um passeio, à casa de uma amiga, um só pensamento a preocupa: - fazer-se elegante e atraente! [...] Assim sai; toma um bonde e o seu primeiro cuidado é cruzar as pernas num requinte de coquetismo [...]. Toma de um livro que abre mas não lê. Os seus olhares dirigem-se para tudo e para todos.” (A Palavra, 19 de agosto de 1917, p. 02)
Comenta Hollander (1996) que as roupas constituem um fenômeno social. Além do que, as mudanças no vestuário refletem as transformações políticas e sociais. Por sua vez, Elias (1994), ao tratar sobre o surgimento e evolução dos sentimentos de vergonha e o cuidado com a exposição excessiva ou indevida do corpo, apontou que tais fenômenos eram características observáveis de um processo civilizador em curso. Elemento que desperta fetiches, bem como suscita autoridade, a formalidade, detalhismo e cuidado com o vestuário também funcionava como elemento distintivo entre as classes, bem como a similaridade no padrão de vestuário (HOLLANDER, 1994), unifica membros de um grupo, refletindo a auto-percepção e os valores em comum.
E assim o exibicionismo deliberado da elite brasileira distinguia seus membros através dos ditames da moda: tecidos, luvas, penteados elaborados, calçados desconfortáveis, acessórios externos, aperto e alongamento do corpo através de espartilhos que mal permitiam a respiração regular. Mesmo com tantos paramentos recobrindo o corpo feminino, não era incomum observar, nas paradas dos bondes, o ajuntamento de homens à espera que uma dama subisse nos estribos para, quem sabe, observarem de relance, os folhos das anáguas e, talvez, uma furtiva canela.
Com o tempo e mudanças no padrão comportamental, a moda evolui do estágio de constrangimentos do corpo da mulher para fases mais libertárias, causando veementes protestos. Explica Freyre (2009) que nos protestos aos excessos libertários, atuava a defesa das “mulheres de família” contra o risco de serem confundidas, pela ostentação de decotes mais acentuados e outros extremos, com as chamadas “mulheres de vida fácil”.
Em Belém, a evolução dos padrões da moda, os trejeitos coquettes e a crescente sociabilidade feminina no espaço urbano acabaram sendo vistos como transgressões, desvios de comportamento. Afrontavam a moral e os bons costumes, gerando tensões entre a liberalidade feminina e costumes provincianos arraigados:
“Por toda a parte começa a reação contra as modas indecentes, fruto da moral sem Deus, com que muitas moças e senhoras aparecem em público, esquecendo o papel ridículo a que se sujeitam, e a ofensa aos bons costumes e ao decoro das famílias honestas.”(A Palavra, 4 de setembro de 1919, p 3)
Mas o vestuário ostentado pelos usuários dos bondes de Belém era um dos diversos elementos distintivos de classes. O próprio bonde contribuiu para a segregação das camadas sociais. A elite costumeiramente viajava nos carris de primeira classe, fechado e protegido de intemperismo, com confortáveis assentos de palhinha, e consequentemente mais caro. Já a população mais pobre apertava-se nos desconfortáveis bancos de madeira dos bondes abertos, sujeitos a sol e chuva, e por isso pagavam mais barato pelas viagens.
Algumas vezes as viagens para os bairros mais afastados eram permeadas de confrontações, por vezes envolvendo os passageiros e os motorneiros, como se pode observar pela notícia:
“ESGRU EM UM BONDE DA PEDREIRA – O sinaleiro n° 33, ontem, às 6 e 30 minutos da tarde [..] teve ciência de que o motorneiro de um bonde da linha Pedreira negava-se a prosseguir viagem com seu elétrico, por estar superlotado. O sinaleiro n° 33 telefonou para a permanência da Central de Polícia, pedindo reforço para manter a ordem no bonde [..]. O comissário de permanência mandou três guardas civis para o local. Os policiais convidaram então o motorneiro 473, José de Souza Vieira, que trabalhava no referido elétrico a ir até a Central de Polícia [...].”(O Estado do Pará, 6 de julho de 1938, p. 3)
Tais atitudes, não condizentes com o comportamento esperado dos viajantes, como no referido caso, era muitas vezes punido com detenção e pagamento de multas. Novamente, observa-se, pelas frequentes transgressões dos usuários, que as medidas disciplinadoras não eram suficientes para manter a cordialidade e civilidade dentro dos bondes, como se pode observar em outra notícia de jornal:
“SURURU EM UM BONDE – Ontem às 5 e 45 da tarde, ocorreu no interior de um bonde da linha ‘Marco’ [...] um ‘sururu’ que pôs em polvorosa todos os passageiros do bonde. Felix Antonio Roque tomou o dito elétrico e como visse um amigo seu, chamou o condutor 212, Raymundo Moraes da Silva e pagou a passagem do amigo sem avisar a este, de quem era a passagem que pagava. O 212 já destacava a senha para cobrar a passagem do amigo de Felix, novamente, quando este sentindo-se melindrado, tornou-se grosseiro para com o condutor [...] insurgiu-se contra o 212 agredindo-o [...]. Felix observado por um guarda civil que viajava no bonde, insurgiu-se também contra este mantenedor da ordem que foi obrigado a levar o ‘peixe’ para o comissário [...].” (O Estado do Pará, 8 de janeiro de 1939, p. 3)
Não bastassem as tensões causadas pelos distintos padrões socioeconômicos e comportamentais dos usuários dos bondes, existiam outros mais, relacionados às funções corporais e à completa falta de asseio. Machado de Assis, em crônica denominada “Como comportar-se em um bonde” (ASSIS, 1998) já chamava atenção para a falta de higiene de alguns passageiros que salivavam excessivamente ao falar. No Rio de Janeiro, um decreto de 1903 passou a prescrever o uso de escarradeiras em estabelecimentos públicos e a proibição de cuspir e escarrar nos veículos de transporte de passageiros. Um jornal carioca publicou, em junho de 1903, um diálogo imaginário (assim o pensamos) sobre a questão que se apresentava, cujo trecho destacamos, em especial por conta da pedagogia nele encerrada:
“- É boa! E há escarradeiras nos bondes?
- Não. Mas não é preciso cuspir no chão do carro. Pode cuspir para fora.
- Sim, posso cuspir para fora, quando estiver ocupando a ponta do banco. Mas, quando estiver no centro?
- Peça licença ao vizinho da direita ou ao da esquerda, e incline-se um pouco.
- Mas, seu eu não quiser pedir licença?
- Não peça; mas também... Não cuspa!
- Esta agora. Mas eu quero cuspir! Eu hei de cuspir! Eu tenho o direito de cuspir! É o meu direito...
- Perdão! O senhor também tem o direito de andar descalço, e anda calçado; tem o direito de não usar gravata, e está hoje com um formoso laço a Eduardo VII; tem o direito de trazer o almoço dentro de uma latinha e de comê-lo no bonde, e almoça em casa.
- Por quê? Porque, tendo o direito de fazer tudo isso, tem também o dever de ser bem educado [...] Mas se o sr. for tuberculoso, continuará a usar do seu direito?
- Qual tuberculoso, homem! Tenho os pulmões de ferro, e hei de cuspir! E, se ficar tuberculoso, tanto pior para mim e para os outros! Hei de cuspir! É o meu direito [...]
- Só tem um direito!
- E qual é?
- É o direito de morrer! E digo-lhe mais: nem é um direito! É um dever! Morra, meu amigo, morra por amor de seus semelhantes!” (Gazeta de Notícias, 3 jun. 1903, apud DEL BRENNA, p. 53-54)
Em Belém, o problema da salivação e dos escarros nos soalhos dos bondes também se apresentava, e era alvo de irritação do Intendente Lemos, como pode ser observado no trecho a seguir:
“Todos querem limpos os bondes. É um direito de quem paga. Porém o fato de pagarmos não nos reveste da faculdade de atentar contra o asseio dos veículos, aumentando a falta de limpeza por nós censurada. Todavia o soalho dos bondes anda em nauseabundo estado, pelas inúmeras manchas da salivação dos passageiros, descuidados de seus deveres de higiene e profilaxia.[...] Também ao próprio público toca boa parte da responsabilidade nos defeitos da viação urbana [...]. (BELÉM, 1902, p. 257-258)
Elias (1994) comenta sobre a evolução da vergonha em relação aos fluidos corporais e o controle das emoções e ímpetos individuais para que as pessoas melhor se enquadrassem nos padrões de polidez exigidos pela sociedade. Contudo, aquele que não atingisse tal patamar de controle era considerado “doente”, “anormal”, “criminoso” ou simplesmente “insuportável”, do ponto de vista de uma determinada classe social. Como consequência desta inadequação, o indivíduo poderia ser excluído da vida da mesma e/ou considerado “incivilizado”.
Em crônica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em novembro de 1909 (apud. O’DONNELL, 2008, p. 178-179), João do Rio aponta para a constante desobediência aos regulamentos enquanto um elemento que normatizava os bons modos no convívio social. Do cuspe ao fumo no interior dos bondes, o cronista mostra que as contradições eram típicas da marcha civilizatória:
“Le monde marche.” A civilização também. E nós também na civilização. Mas hão de convir que não há bicho mais teimoso, mais contra os regulamentos que o brasileiro, apesar de toda a civilização e de todo o snobismo que alastra a sociedade. ... Hão de lembrar de que há alguns anos foi proibido cuspir nos bonds. Era uma porcaria inútil. Os cidadãos cuspiam e esfregavam por cima a bota, com todo o “sans façon”. Fez-se um movimento jornalístico, gritou-se que a tuberculoso andava em cada escarro solto, e depois de muito tempo foi conseguida essa coisa tremenda e importante: não escarrar nos bondes. [...] A civilização do bonde, porém, estava longe de ser feita. Havia ainda para essa condução eminentemente brasileira, por onde passa todo o Rio, muita coisa a fazer: acabar com as conversar políticas, com a sujeira dos recebedores, com a grosseria dos cocheiros.
Ficou estabelecido que se trataria de coisa mais séria: a proibição de fumar em todos os bancos. Nada mais justo, aliás. Uns cidadãos a mamar charutões ignóbeis empesteando o bonde inteiro, e com o vento, senhoras cheias de cinza, sufocadas pela fumaça, temendo, ao verem luzir as fagulhas, um possível incêndio de suas rendas...
Foram proibidos aos fumantes os três primeiros bancos. Apenas os três primeiros bancos. E precisamente porque é proibido, as senhoras, mesmo quando o bonde está vazio, vão para os bancos de trás e os cavalheiros fumadores trepam como que propositadamente para os três primeiros bancos.
De modo que é raro não haver hoje, em cada viagem de cada bonde da Light, pelo menos dois ou três cenas de alteração e quase de conflito.
[...]
E esta beleza, porque nós ainda não resolvemos cumprir simplesmente os regulamentos [...] o que não é prova de servilismo mas de sociabilidade.”
Considerações finais
Já próximo de sua extinção – em Belém em 1947, e no Rio de Janeiro, em 1963 – os bondes eram uma pálida sobra do que foram outrora. Arrastando-se pesadamente pelas vias metálicas, eram preteridos pela população de maior poder aquisitivo que preferia transitar pela cidade em seus veículos particulares, ou através dos auto-ônibus. Aos bondes restavam somente aqueles de parcos recursos que, por sua condição econômica, não usufruíam dos outros modais de transporte. E assim, mesmo no final de sua trajetória, o bonde permaneceu como um vetor de segregação e de conflitos sociais.
Não se pode negar o valor da tese eliasiana do “processo civilizador” para a compreensão dos fenômenos sociais associados ao uso dos bondes em Belém e no Rio de Janeiro. Considerando as transformações ocorridas nos padrões comportamentais das sociedades carioca e belenense, a partir do momento em que estas se tornam usuárias dos bondes, buscamos, através de variadas fontes, apresentar este modo de transporte como um espaço privilegiado para observação das mudanças processadas nos parâmetros de sociabilidade, educação, sentimentos de vergonha e civilidade, bem como apontá-lo enquanto importante vetor do que Norbert Elias denominou de “processo civilizador”.
Durante os anos em que ambas as cidades serviram-se deste modo de transporte, a sociedade foi por ele influenciada, alternado assim seus costumes não só em função da reorganização do espaço urbano que o bonde proporcionava, mas também através dos diferentes padrões de sociabilidade que se estabeleceram, fazendo com que a educação no trato com o outro, os sentimentos de vergonha, a delicadeza e a polidez alcançassem significados especiais.
A grande lição que a análise dos padrões de sociabilidade e comportamento nos bondes deixa é a possibilidade de observar o mundo sob outra ótica e, no contexto atual, identificar similaridades com o cotidiano das pessoas nos metrôs, nos ônibus e outros tipos de transporte coletivo. Os tempos são outros, diferentes dos tempos dos bondes, mas é a comparação entre antigos e novos valores e paradigmas comportamentais que se perceberá, de maneira mais evidente, o processo civilizador em curso.
Notas:
(1) Primeiro grande industrial do Brasil, foi por iniciativa do Barão de Mauá que se concretizou a eletrificação da capital Imperial, bem como se implantou a primeira ferrovia em território nacional. Para um quadro mais preciso das realizações do Barão, conferir Caldeira (1995).
(2) Durante o período escravocrata brasileiro, era comum o uso de negros como força de tração para as liteiras, riquixás e seges (LIMA NETO, 2001).
(3) As barracas eram edificações paupérrimas, feitas geralmente de madeira ou de taipa, de telha-vã, ou seja, sem forro, com cobertura em material vegetal ou telha cerâmica. A simplicidade monástica desta tipologia de edificação era refor&cc
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