Ano: I Número: 3
ISSN: 1983-005X
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Calendários

Ethel Leon

Qual o sentido de fazer calendários hoje? Me explico: o tempo acelerado faz que dias, semanas e meses soem como miragens da nossa vida superpovoada por mensagens vindas simultaneamente de muitas partes do mundo e por deslocamentos de pessoas e coisas num ritmo assustador. Alguns calendários parecem justamente questionar esse tempo acelerado e se apresentam como peças ciosas da temporalidade que representam. Entre eles, o já vip calendário Scheufelen e o calendário da Gráfica Ipsis 2008.

A Scheufelen é uma grande empresa alemã/internacional de papéis de alta qualidade. Comprou há alguns anos a Job francesa e está no Brasil representada pela Vivox. Seus diretores seguem a tradição das casas impressoras e se esmeram no projeto e na confecção de calendários anuais. Também promovem uma premiação internacional de calendários, em que a empresa paulistana Burti, com projeto de Alex Chacon,  amealhou muitos troféus.

No ano passado, a Scheufelen escolheu como tema as representações do céu, por vários artistas. A lâmina de abertura tem fundo branco e ranhuras prata – na verdade, um fragmento de desenho de Piranesi − sobre as quais está a frase “O céu não é o limite”. As páginas internas dos meses são reproduções ampliadas em grande formato de pequenas frações de telas de pintores em que o céu está representado.

Cada tela é capturada com minúcia, deixando revelar seu envelhecimento; a força da mão que manejou os pincéis, num encadeamento que vai da placidez de Canaletto à turbulência de Turner, por exemplo.  

Só esta seqüência de imagens tão magistralmente reproduzidas já faria o calendário ser precioso. Mas a Scheufelen não quer ser reconhecida como reprodutora de arte. Ela se apresenta como uma casa devotada às artes gráficas. Cada lâmina do calendário é ladeada, ora à esquerda, ora à direita, por uma fileira de pequenos retângulos das cores que compõem a página. A cada retângulo corresponde um dia do mês. É possível retirá-los, marcando o dia e vasando a lâmina para a peça que vem a seguir, no mês posterior, uma espécie de lentíssimo trailer que vai preparando o espectador para a próxima imagem.

Todos esses pequenos pedaços de papel podem ser juntados e colados numa composição própria do dono do calendário em sua última lâmina, folha traçada para receber os retângulos de cores, numa sugestão de interatividade que, a meu ver, é demasiada, uma vez que se rende à idéia contemporânea de que não há diferença entre produtor e fruidor da arte. Embora discorde dessa perspectiva, presente em tantas exposições de arte contemporânea, não deixo de admirar a proposta inteligente da Scheufelen. De fato, acredito que muitos tentarão compor seu próprio céu e sucumbirão diante das belas imagens anteriores.

Em 2008, o céu volta a ser o ponto de atenção da Scheufelen, só que desta vez é o céu astronômico/astrológico que ganha destaque, em projeto do estúdio Strichpunkt-design. O calendário se chama Quarta Dimensão e explora o tempo imemorial dos céus, cuja observação foi, durante muitos séculos, o ponto de apoio para a compreensão da passagem do tempo.

E, salve salve! Depois de tantos anos sem os belíssimos calendários Burti, que deixaram saudade em todos que o recebiam, a Gráfica Ipsis aceitou o desafio proposto pelo estúdio Vista Design (Marcello Montore e Mônica Watanabe) de homenagear os trinta anos do laboratório de restauro da Cinemateca de São Paulo. Com projeto gráfico do estúdio, a peça recupera fotogramas ampliados de Ganga Bruta, Carnaval Atlântida; Zé do Caixão; Mazzaroppi; O Pagador de Promessas, São Paulo SA, Deus e o Diabo na Terra do Sol, São Bernardo, Macunaíma, Bye-bye Brasil, Toda Nudez Será Castigada e Gaijin.

O calendário é feito de comentários gráficos explícitos sobre cada filme. Um dos mais felizes é o de outubro, do filme de Anselmo Duarte, em que escadarias escherianas, que não levam a canto algum, comentam a trajetória do protagonista Zé do Burro, impedido de pagar sua heróica promessa. Escapa ao lugar comum a visão gráfica de Macunaíma: janelas gradeadas sobre as quais está a muiraquitã, referindo-se à inadaptação do herói ao campo e à cidade.

Tanto nos calendários Scheufelen como no da Ipsis, o que prende nossa atenção por longos períodos é a lenta descoberta de impressões especiais, recortes, tintas, vernizes e relevos, além do próprio papel. Ou seja, o calendário, peça que deveria representar o tempo atual no espaço, se transforma em artefato de fruição de um tempo considerado arcaico, em que se valida a atenção aos detalhes, ao bem feito e bem acabado.

Curioso que esse tipo de trabalho surja do mundo gráfico, completamente sujeito à fatalidade das simultaneidades virtuais. Existe ainda nelas, o que talvez explique esse esmero e esse amor ao projeto, um aprendizado do ofício. E, mesmo que muitas não saibam disso, o revigoramento de uma tradição. Gutenberg imprimiu um calendário composto de enorme texto em versos, uma exortação à luta cristã contra possível invasão turca da Europa.
 
O calendário se tornou tradicional peça de promoção das gráficas. Nele estão contidas as possibilidades técnicas da empresa. Mas, quem é do mundo do design sabe que não existe projeto feito só sob base técnica – esta é apenas uma das aberrações que alguns professores ainda ensinam nas escolas. Todo objeto é simbólico e o calendário, especialmente, demonstra o universo cultural da empresa que o produz.

Que venham mais calendários, gestados pacientemente ao longo do ano e que recuperem esse sentido do fazer caprichoso, do fazer pelo prazer de fazer bem feito.

 


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