Ano: V Número: 50
ISSN: 1983-005X
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Tipografias e nacionalidades
Mila Waldeck

Resumo: A ideia de nacionalidade é um dado a partir do qual é comum se procurar construir projetos gráficos, tipográficos e de produto. Mas ao se invocar uma essência brasileira em design – ou alemã, norte-americana etc – quais bases estão sendo lançadas? Essa pergunta conduz, num movimento circular, à própria história da indústria tipográfica no Ocidente: a formação do sentimento nacionalista possivelmente é um efeito do capitalismo editorial inaugurado com a chegada da indústria de impressão na Europa (cabe lembrar que há registros de impressão com tipos móveis na China desde o século XI). Quando se observa alguns momentos dessa história sob a ótica do nacionalismo, pode-se perceber que o comprometimento com a imagem de um determinado país é uma invenção relativamente recente que não se vincula necessariamente à eficiência de um projeto.

Palavras-chave: identidade nacional, tipografia, indústria editorial.

 

Abstract: The notion of national identity is commonly regarded as a starting point for graphic, typographic and industrial design. But upon which base do we work when we invoke a Brazilian – or German, American, etc. – essence in design? This question leads, in a circular movement, to the history of the typographic industry in the Western world: the origin of the nationalist sentiment is possibly an effect of the editorial capitalism started with the arrival of the printing industry in Europe (it is worth noting that documents about the movable-type printing system date back to the eleventh century China). When we observe some moments of this history from the perspective of nationalism, it is possible to see that the commitment to with the image of a country is a relatively recent invention, which is not necessarily related to the efficiency of a project.

Keywords: national identity, typography, printing industry.

 

À medida que empresas e instituições demandam uma comunicação visual que se molde à audiência brasileira, vem à tona a questão, ainda não resolvida, das características específicas da cultura local. Quais seriam elas? É necessário que o design as expresse? Observando esse assunto no terreno da tipografia, o tema da identidade nacional aparece em facetas esclarecedoras.

Ela está vinculada à própria origem desse tema e já demarcou visualmente – ora por acaso, ora de propósito – fronteiras nacionais ou religiosas. Enquanto no Brasil se busca cultivar uma cultura tipográfica iniciada tardiamente, o exemplo de outros países levanta uma dúvida: será que formas tipográficas traduzem a identidade nacional?

Essa pergunta parte do princípio de que cada país tem uma identidade própria - que pode ser expressa por meio de determinadas formas, cores, sons e outros aspectos, e que atinge a personalidade dos seus habitantes. Esse princípio nem sempre existiu. Ele foi inventado, ou melhor, “imaginado”. 

No livro Comunidades Imaginadas (1), o historiador Benedict Anderson lembra que o pressuposto da existência de identidades nacionais foi gradualmente sendo construído. E argumenta que essa construção é efeito da indústria tipográfica inaugurada no século XV.

A consciência de pertencer a um mesmo universo linguístico e territorial e de vivenciar os mesmos eventos é a base da consciência nacional. A indústria tipográfica formou essa base de duas formas: em primeiro lugar, ela criou línguas impressas a partir de dialetos aparentados que, na língua oral, soavam muito diferentes, mas que podiam ser entendidos  por meio da escrita.

Pela letra impressa, os falantes desses diversos dialetos passaram a se compreender, a compartilhar a mesma leitura e tomar consciência de pertencer a um mesmo campo linguístico. Em segundo lugar, o jornal – negócio empreendido inicialmente por donos de gráficas – delimitava o território e os acontecimentos específicos compartilhados por certo grupo de leitores. 

 

Tipos, línguas e o início das fronteiras nacionais

Para expandir-se, o setor editorial montou línguas impressas que pudessem ser lidas por um público abrangente. Essa estratégia foi necessária porque as primeiras publicações se destinavam a um grupo restrito: a indústria de impressos se inicia com textos em latim, língua que, no século XVI, era dominada por uma proporção reduzida, bilíngue, da população da Europa. 

Por outro lado, ao publicar textos em alemão neste mesmo século – e a tradução daBíblia para o alemão em 1522 – Lutero gerou tanto êxito de vendas que pode ser considerado o primeiro autor de best-sellers. O potencial mercado de monoglotas se mostrava uma alternativa ao mercado de leitores em latim prestes a saturar. A indústria editorial avançou nesta direção.

O latim representava a comunidade imaginada sagrada da Igreja católica – e a disseminação impressa de línguas vernáculas ajudou a desmontar essa comunidade.

Conforme ela se desgastava, as comunidades nacionalmente imaginadas começavam a se consolidar. “Inevitavelmente, não foi apenas a igreja que se viu abalada em seu próprio cerne. O mesmo terremoto gerou os primeiros estados não dinásticos europeus” (2), resume Benedict Anderson.

Essa transformação histórica ficou ilustrada tipograficamente pela polarização ideológica entre o grupo de letras “romanas” e o grupo de “góticas”. No século XVI, a impressão com um ou outro grupo estampava a diferença entre católicos e protestantes.

No final do século XIX, quando a forma de organização social nacionalista predominou no Ocidente, as letras góticas foram consideradas parte da identidade cultural da Alemanha recém-unificada. O chanceler Otto von Bismarck afirmou que escrever em alemão com letras romanas era um anacronismo tão grande quanto escrever em francês usando letras “alemãs” (ou seja, góticas) (3).

Curiosamente, foram justamente tipógrafos alemães que deram origem aos tipos romanos. Aproximadamente na segunda metade da década de 1460, quase simultaneamente em Strasburgo, Veneza e Subiaco, apareceram os primeiros caracteres semelhantes ao que conhecemos como romanos – saídos das gráficas de, respectivamente, Adolf Rusch, Johannes de Spira e Sweynheym e Pannartz (4), todos eles alemães. Esses últimos, por sua vez, acabaram trocando Subiaco por Roma e em 1468 trabalhavam para o bispo Giovanni Andrea Bussi, nomeado bibliotecário da biblioteca do Vaticano em 1471.

Nos anos seguintes, o Vaticano continuava reproduzindo textos tanto mecanicamente, com tipos romanos, quanto caligraficamente. Ludovico degli Arrigi exerceu os dois ofícios: foi escriba papal e tipógrafo, contribuindo para a evolução dos tipos itálicos por meio do manual La Operina.

Acredita-se que Arrighi tenha sido colaborador de Aldo Manuzio, o célebre editor que inaugurou o itálico em tipos móveis. As origens das atividades editoriais do Vaticano estão, portanto, ligadas às origens do desenho tipográfico de caracteres romanos e itálicos.

Em 1561, Paolo Manuzio, filho de Aldo, foi contratado pela igreja para montar e gerenciar uma gráfica em Roma. Segundo o contrato, a gráfica deveria produzir “livros bem editados e corrigidos, das sagradas escrituras ou de qualquer outra espécie, o que é especialmente desejável nesses tempos em que textos impressos foram corrompidos em vários lugares pelos hereges” (5). Em 1564, Paolo assina a impressão da primeira edição dos decretos do Concílio de Trento.

Usando o latim como língua e os caracteres romanos como forma tipográfica, essa edição divulga, entre outras coisas, a maneira como a Igreja iria abordar a ameaça impressa representada por Lutero. O Concílio de Trento reafirmava o latim como língua oficial para os textos da Bíblia, limitava uso do vernáculo em livros, apontava autores e títulos proibidos e advertia sobre punições para leitores, impressores e vendedores de qualquer publicação não autorizada pela Igreja.

Benedict Anderson observa que o protestantismo “sabia como utilizar o mercado editorial vernáculo que estava sendo criado e expandido pelo capitalismo” (6). A Igreja Católica, ao contrário, instituía censuras muitas vezes inaplicáveis e, apesar dos esforços de repressão, não pode impedir a circulação de livros oficialmente banidos.

Paolo Manuzio imprimiu também, no mesmo ano de 1564, a lista de livros proibidos pelo Concílio. Seiscentos e dez autores estavam listados como hereges cujos textos eram todos vetados. Lutero era o primeiro da lista. Seus escritos se caracterizavam pela língua vernácula impressa em variantes da tipografia gótica. Tudo isso contrastava com a Igreja católica. No tocante à língua, a Igreja se posicionava explicitamente: “é evidente pela experiência que, se os Livros Sagrados forem permitidos em língua vernácula em qualquer lugar e sem discriminação (…) haverá mais mal do que bem” (7).

Já quanto à tipografia, no entanto, não parece ter havido uma doutrina declarada de nenhum dos lados. O uso ideológico de tipos góticos ou romanos se tornou um programa posteriormente, quando o desenho das letras adquiriu uma conotação nacionalista. Esse uso nacionalista sempre foi defendido com bases falsas. O discurso dos que enxergavam nas letras góticas a identidade da nação alemã caiu em constante contradição.

Bismarck, por exemplo, justificava sua preferência tipográfica considerando “não alemães” tipos concebidos originalmente por tipógrafos desta nacionalidade. Partindo do mesmo engano, os nazistas foram mais longe: decretaram o uso das letras góticas em 1933 e prenderam os tipógrafos Paul Renner e Jan Tschichold, contrários ao uso nacionalista dessas letras. Em 1941 foi decretado o oposto, ou seja, que as romanas eram as letras oficiais da Alemanha nazista porque “é falso considerar ou descrever as chamadas letras góticas como um tipo alemão. Na realidade, a fonte chamada gótica consiste numa Schwabacher-judaica” (8).

Todas essas letras rivais são conectadas quando se examina a origem dos seus desenhos. Gerrit Noordzij demonstrou que as formas tipográficas de estrutura romana ou gótica se baseiam em estilos caligráficos aparentados. Durante a Idade Média, diferenças sutis na maneira de usar a pena e de ocupar o espaço foram gradualmente resultando nas caligrafias que serviram como modelo para os caracteres tipográficos romanos, góticos e itálicos. “Cada escritor sente que é normal uma largura diferente de letra e cada caneta tem uma largura diferente” (9). Isso esclarece tanto a estrutura de construção comum nas diversas formas de escrita quanto os processos técnicos que levaram à diversidade.

Gerrit Noordzij se concentrou em descrever as propriedades das formas “sem impor condições estéticas ou ideológicas” (10). Sua abordagem indica, indiretamente, que essa conotação ideológica está vinculada à era da reprodução mecânica de tipos – antes disso, os estilos góticos e romanos de escrita manual tinham fronteiras menos demarcadas.

A indústria de reprodução de textos realizou na forma das letras um fenômeno análogo ao que ela realizou nas línguas: ela fixou, padronizou e modulou, acentuando o contraste entre elementos diferentes e a identidade entre elementos semelhantes.

 

Diferença nacional e igualdade tipográfica

Segundo Benedict Anderson, conforme essa indústria definia e difundia línguas vernáculas, um imaginário cultural abarcado por essas línguas ia se construindo. Mas apesar desse imaginário comum, o advento do jornal foi trazendo à tona a diferença entre falantes de uma mesma língua localizados, por exemplo, nas metrópoles ou nas colônias – delimitando a região e a realidade de cada um dos dois grupos.

O primeiro jornal publicado no território no qual hoje corresponde aos Estados Unidos, The Boston News Letter, estreia em abril de 1704 como uma compilação de jornais de Londres. Com o tempo, as notícias locais foram ganhando cada vez mais espaço na imprensa da colônia.

Significativamente, um dos líderes da independência americana, Benjamin Franklin, foi impressor e dono de jornal. Aos 12 anos, tornou-se aprendiz de seu irmão mais velho James Franklin, dono de uma gráfica. Em 1721, James lançou o jornal The New England Courant, o quarto periódico publicado nos Estados Unidos e o primeiro dedicado a criticar as autoridades locais.

Essa linha editorial provocou a prisão e censura de James Franklin. Em janeiro de 1723, quando o governo determinou que ele estava impedido de imprimir o jornal, Benjamin Franklin, então com 17 anos, passou a assinar como o editor responsável. Seis anos depois, ele adquiriu o jornal The Pennsylvania Gazette, transformando-o num sucesso de circulação na colônia.

Nesse ínterim, entre os 18 e os 20 anos, Benjamin saiu do The New England Courant e morou na Inglaterra, onde trabalhou como impressor numa das principais gráficas de Londres. Seu dono, John Watts, era um dos financiadores de William Caslon, que na época estava elaborando seus próprios tipos.

O fato provavelmente era conhecido por Benjamin, interessado pelo ofício, inexistente na colônia, da fundição de tipos. A fonte de Caslon foi lançada em 1734 e, três anos depois, Benjamin Franklin as comprou para o The Pennsylvania Gazette. Rapidamente, esses tipos se difundiram em território norte-americano.

Constante usuário da Caslon – chegando a escolhê-la para a impressão da primeira edição da declaração da independência americana – Benjamin Franklin foi também amigo e admirador de John Baskerville. Além de visitá-lo na Inglaterra, Franklin se correspondia com Baskerville e o defendia quando suas fontes eram acusadas de ilegíveis.

Em 1773, o célebre tipógrafo, depois de passar por dificuldades financeiras, decide tentar exportar para a colônia e pede o auxílio de Benjamin Franklin. Este recomenda os tipos de Baskerville e ajuda a distribuí-los. Graças ao seu apoio, essas fontes se tornaram mais populares na América do que na própria Inglaterra.

Mesmo tendo se empenhado pela independência americana, o founding father não levava seu nacionalismo até a forma das letras e contribuiu para a difusão da tipografia feita na Inglaterra.

Uma suposta tipografia com identidade americana era no momento impraticável – já que não havia fundição de tipos nos Estados Unidos – mas, independente da viabilidade, Benjamin Franklin não parecia estar preocupado com esse assunto. Será que alguém se importava com isso na época?

 

A função das tradições inventadas

A propagação deliberada de uma identidade nacional é um fenômeno que fica mais explícito e frequente cerca de cem anos depois. Eric Hobsbawm identifica no período entre 1870 e 1914 uma grande proliferação de “tradições inventadas” – conceito desenvolvido no livro A invenção das tradições (11). Feriados, roupas típicas, monumentos, lemas e emblemas, implantados e sistematicamente repetidos, são alguns exemplos de tradições inventadas. Elas dão a ideia de uma continuidade com o passado e ajudam a dar coesão a determinado grupo.

Embora as nações modernas sejam um fenômeno relativamente recente, elas “geralmente afirmam ser o oposto do novo, ou seja, enraizadas na mais remota Antiguidade, e o oposto de comunidades construídas” (12). Essa imagem muitas vezes é transmitida com o auxílio de tradições inventadas, que acabam sendo recorrentes na difusão do sentimento nacionalista. Os Estados Unidos recorreram a elas, por exemplo, para a assimilação do fluxo abundante e heterogêneo de imigrantes recém-chegados no final do século XIX.

Foi neste período que se consolidou a celebração, em escala nacional, do dia da independência norte-americana e do thanksgiving. Os imigrantes eram encorajados a comemorar essas datas e, reciprocamente, o país optou por absorver alguns rituais que eles traziam, como o St Patrick’s Day. A identidade americana foi se moldando como um ato de escolha: a adesão a determinados princípios, a decisão de solicitar a cidadania e de adotar determinadas formas de comportamento.

Enquanto se estabeleciam essas invenções de tradições, multiplicavam-se nos Estados Unidos várias invenções propriamente ditas. A indústria da construção erguia os edifícios da Escola de Chicago (13); começava a fabricação dos carros projetados por Henry Ford; a indústria de fundição de tipos lançava a Franklin Gothic, fonte desenhada por Morris Fuller Benton, cujo nome homenageia Benjamin Franklin. Esses produtos da arquitetura, design e artes gráficas estariam relacionados à formação de uma identidade americana?

Aparentemente eles não têm formas feitas com a intenção premeditada de expressar algum tipo de americanismo. Louis Sullivan, o famoso arquiteto da escola de Chicago, explicava que as características dos seus edifícios eram consequência das condições de trabalho que ele tinha. Henry Ford rapidamente começou a exportar para o Canadá e para a Europa e, portanto, não poderia estar muito comprometido com algum universo visual exclusivamente americano. No livro Notas para uma história do design, Pedro Luiz Pereira de Souza comenta que “na raiz do racionalismo americano em design não houve uma preocupação estrita para a definição de padrões estéticos” (14).

 

A função das formas

No ensaio O edifício de escritórios alto, considerado artisticamente, Sullivan expõe a situação econômica e as possibilidades tecnológicas que ele encontrava:

 (...) escritórios são necessários para a transação de negócios; a invenção e o aperfeiçoamento de elevadores velozes tornaram a viagem vertical, que antes era tediosa e sofrida, agora fácil e confortável; o desenvolvimento da fabricação de aço mostrou o caminho para construções seguras, rígidas e econômicas, elevadas a uma grande altura; o crescimento contínuo da população nas grandes cidades, o consequente congestionamento dos centros e o aumento do valor dos terrenos estimularam o aumento do número de andares (...).  (15)

Dado esse panorama, Sullivan diz que o arquiteto de um prédio de escritórios enfrenta um problema: como conceder beleza e sensibilidade a essa “pilha estéril”, a essa “aglomeração bruta e áspera”. Uma edificação deve, portanto, contornar demandas práticas por meio de formas eficientes e agradáveis para os que forem usá-la.

Finalizando o texto, Sullivan observa:

(...) seja uma águia varrendo com seu voo, ou uma flor aberta de macieira, o cavalo trabalhando, o cisne alegre, o carvalho se ramificando, o córrego fazendo uma curva, as nuvens à deriva ao redor do sol que corre, a forma sempre segue a função, e esta é a lei (...). (16)

A máxima a forma segue a função foi extraída dessa passagem. Examinada inteira e no contexto original, ela indica uma abertura para as diferentes possibilidades formais, já que, para Sullivan, a observação empírica leva à conclusão de que, na natureza, as várias formas estão constantemente adequadas às inúmeras finalidades (17).

De uma maneira análoga, possivelmente para poder atender a demandas distintas, a American Type Founders – associação de empresas americanas fundidoras de tipos criada em 1892 – promovia os estilos tipográficos mais diversos que compunham a recente produção dos Estados Unidos.

Dessa produção, muitas fontes foram desenhadas por Morris Fuller Benton, diretor do departamento de design da American Type Founders entre 1900 e 1937. Benton produziu versões de clássicos como a Garamond e a Bodoni, além de ter criado seus próprios clássicos, como a Franklin e a News Gothic.

O catálogo de 1912 de produtos recém-lançados pelos associados da ATF mostra uma variedade que abrange letras de máquina de escrever, tipos góticos, versões da Caslon, ornamentos em estilo art nouveau, art déco, renascentista, do Egito, dos índios navajos…

Seria então a pluralidade uma forma de identidade americana? É possível que a pluralidade esteja em sintonia com o imaginário de um país livre (18). É possível também que os vários estilos vendidos no catálogo da ATF estivessem respondendo pragmaticamente às múltiplas solicitações do mercado das artes gráficas, em que determinados assuntos e contextos talvez solicitassem soluções formais específicas. Mas, independente das respostas à questão da identidade americana, resta saber qual função esse tipo de questão desempenha e quais as consequências de se colocá-la dentro de um projeto – seja ele gráfico ou tipográfico.

 

Tipografia sem fronteiras

Projetos lidam com um contexto cultural a priori. Entretanto, esse contexto não obedece necessariamente às fronteiras geográficas de um país. Além disso, a identidade desse país será sempre relativamente vaga e difícil de definir porque, assim como foi construída, ela poderia também ser refeita e reconstruída.

As fontes tipográficas são estruturas complexas que preveem inúmeras combinações de caracteres, ocupando o espaço de infinitas maneiras. Dependendo de como estão desenhadas, elas podem funcionar para línguas distintas, onde há diferentes desafios técnicos. Já no século XV, tipos e tipógrafos atravessavam o que hoje são fronteiras nacionais e montavam textos em diferentes idiomas e culturas. Essa circulação levou a arte de construir fontes, que é anterior às nacionalidades, para os lugares onde ela tivesse espaço.

As condições para a indústria de impressão começaram a serem abertas no Brasil com a vinda da família real em 1808 (19). A reprodução de textos era feita com tipos trazidos da Inglaterra e, segundo Vicente Lamónaca, parte desse equipamento foi posteriormente enviado ao Uruguai. Este, por sua vez, teve sua primeira imprensa instalada em 1807, trazida por ingleses para a produção do jornal La Estrella del Sur (20), de oposição ao governo espanhol. Quando as autoridades locais baniram esse jornal, os tipos e prensas foram também banidos e acabaram indo parar em Buenos Aires.

Entretanto, governantes de Montevidéu começaram a sentir a falta do aparato editorial e pediram ao Brasil o envio de uma oficina gráfica. Foram atendidos com a ajuda de Carlota Joaquina. Em 1810, Montevidéu recebia um impressor e equipamentos vindos da Imprensa Régia – a primeira gráfica que funcionou continuamente no Brasil. A nova oficina instalada no Uruguai ficou popularmente conhecida como Imprensa Carlota.

Alguns tipos fundidos na Inglaterra atravessaram o Atlântico, foram usados no Rio de Janeiro e seguiram para o Uruguai; outros compuseram periódicos uruguaios e foram transferidas para a Argentina; outros ainda foram usados para fortalecer o movimento de independência – contra a Inglaterra – nos Estados Unidos.

Tipógrafos alemães instalados na Itália fabricaram os primeiros tipos romanos. A reprodução mecânica de textos não precisa de formas tipográficas produzidas localmente ou por autores locais – e ela foi disseminada graças ao trânsito de artífices e artefatos.

A lógica da vantagem do produto de origem nacional implica na desvantagem do internacional. Reciprocamente, essa mesma lógica se volta contra os tais produtos nacionais se ela for adotada internacionalmente.

No âmbito da tipografia, um raciocínio protecionista ao extremo teria impossibilitado a produção de impressos – e a consequente circulação de ideias – em todos os lugares fora do que hoje é a Alemanha. 

Como naquela época não havia nem sequer a Alemanha, as técnicas de impressão inauguradas por ali foram sendo aprendidas onde houvesse investidores que não temessem a circulação de ideias – ou que desejassem a circulação de determinadas ideias.

Multiplicar a informação escrita é a lógica fundamental da tipografia. Essa lógica fundamental permite claro, que variações nas formas tipográficas aconteçam e sigam circulando, caso apreciadas.

Existirão variações formais tipicamente brasileiras? A tentativa de definir o que é tipicamente brasileiro pode levar a estereótipos pouco funcionais do ponto de vista tipográfico, tais como improvisado, informal, desordenado. Por outro lado, a tentativa de inventar uma tradição tipográfica traçando alguma continuidade com o passado leva a uma genealogia que procede da Inglaterra e chega ao Uruguai, sem encontrar vestígios especificamente brasileiros.

 “Estereótipos”, “vestígios”, “comunidades imaginadas”: talvez seja difícil enumerar com exatidão as características tipicamente nacionais porque elas não são exatas. São maleáveis, possivelmente fictícias, muitas vezes desnecessárias.

 

Mila Waldeck é designer e diretora de arte da revista Vogue Brasil.

 

Notas

(1) ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

(2) Ibidem, p. 75.

(3) BURKE, Christopher. Paul Renner the art of typography. Londres: Hyphen Press, 1998, p. 80.

(4) MORISON, Stanley e KENNETH, Day. The typographic book 1450-1935. Chicago: University of Chicago Press, 1963.

 (5) LOWRY, Martin.  Facing the responsibility of Paulus Manutius. Los Angeles: Dept. of Special Collections, University Research Library, University of California, 1995, p. 7.

(6) ANDERSON, op. cit., p. 75.

(7) Council of Trent. Ten rules concerning prohibited books drawn up by the fathers chosen by the council of trent and approved by pope pius(parágrafo 4). Disponível:
http://www.fordham.edu/halsall/mod/trent-booksrules.asp

 (8) Retirado de: http://german.about.com/library/gallery/blfoto_fraktur06E.htm

(9) NOORDZIJ, Gerrit. The stroke theory of writing.Londres: Hyphen Press, 2005, p. 58.

(10) Ibidem, p. 9.

(11) HOBSBAWM, Eric. The invention of tradition. Cambridge: University Press, 2003 (versão Kindle).

(12) Ibidem, p. 23.

(13) Pedro Luiz Pereira de Souza comenta que “os movimentos em arte, design e arquitetura estabeleceram-se, nos Estados Unidos, mais por meio da prática do que da formação de escolas.” A Escola de Chicago, apesar do nome, não foi exceção. SOUZA, Pedro Luiz Pereira de. Notas para uma história do design. Rio de Janeiro: 2AB, 2008, p. 51.

(14) Ibidem, p. 51.

 (15) SULLIVAN, Louis H. The tall office building artistically considered. Lippincott's Magazine, 1896, p. 1.

Disponível em: http://ocw.mit.edu/courses/architecture/4-205-analysis-of-contemporary-architecture-fall-2009/readings/MIT4_205F09_Sullivan.pdf

(16) Ibidem, p. 4.

(17) Sobre outro texto famoso de Sullivan, O ornamento na arquitetura, Gilberto Paim comenta que “a ornamentação orgânica de Sullivan não se confunde absolutamente com o despojamento modernista” e que “para Sullivan a arte do ornamento acompanha as soluções práticas e funcionais da arquitetura, mas vai além, tornando-se imagem e expressão das infinitas possibilidades criativas do homem”.  

Retirado de: http://www.agitprop.com.br/index.cfm?pag=repertorio_det&id=6&titulo=repertorio

(18) Ideias sobre a América aparecem em textos de Sullivan como O ornamento na arquitetura: “apenas aqui a tradição não traz algemas, a alma humana é livre para se desenvolver, para amadurecer e buscar seus semelhantes”.

(19) Sobre o tema, conferir artigo da mesma autora, “As primeiras matrizes da imprensa nacional”, publicado em 2008, edição 12 da Agitprop.

Disponível em: http://www.agitprop.com.br/index.cfm?pag=atualidades_det&id=152&Titulo=atualidades

(20) Vicente Lamónaca comenta sobre a tipografia usada no jornal La Estrella del Sur: “corresponde destacar nesta imprensa a existência da letra ñ, inexistente no alfabeto inglês, e a escassez de vogais acentuadas”. LAMÓNACA, VICENTE. Disponível em: http://lamonaca.org/tipografia-uruguaya/

 


Comentários

Silvia Steinberg
29/04/2013

Mila, parabens! Ao contextualizar os meandros que o tema tipografia e nacionalidade encerra você oferece ao leitor um entendimento que ultrapassa as questões formais. Insere a pertinência dos fatores políticos e sociais na tomada de decisão hoje e resgata o passado histórico como referencial.

Marcello Montore
26/04/2013

Magnífica e lúcida reflexão sobre o polêmico tema dos nacionalismos em design e, no caso, em tipografia. Uma verdadeira aula e pontos consistentes para a continuidade de contribuições nessa seara. Parabéns Mila! Uma beleza.

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