Ano: I Número: 1
ISSN: 1983-005X
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Jovens objetos velhos
Ethel Leon

O fenômeno já tem pelo menos uma década. Os nomes são novos. Gui Bonsiepe chama de objetística ou de neoartesanato urbano a produção de objetos de moda, de baixa tecnologia, criados geralmente por jovens, e que povoam lojinhas ditas “de design”.

Como entender essa produção variada que se encontra no Salone Satellite, de Milão, na Bienal de St. Étienne, no Designmai de Berlim, no bairro de Palermo Viejo, em Buenos Aires, ou na Vila Madalena, em São Paulo? De onde e como surgiu e que circuito alimenta?

No livro Scenari del Giovanne Design, o historiador do design Vanni Pasca (1) comenta o pragmatismo dos jovens de hoje que, sem esperar um industrial que aposta em suas capacidades, passa a produzir seu próprio modelo ou protótipo, mostra-o em feiras na esperança de obter um investidor e, quando ele não aparece, simplesmente fabrica-o.

A descrição não explica o porquê dessa grande quantidade de objetos produzidos em pequenas escalas por jovens, o surgimento de bairros e feiras de design em muitas cidades do mundo.

Talvez devêssemos buscar as origens do fenômeno em diversos circuitos, todos eles muito bem conectados.

Vale a pena examiná-los de perto.

Sem dúvida, a passagem do fordismo para o capitalismo dito flexível tem muito a ver com esse design jovem. No capitalismo recente, as grandes empresas desterritorializaram sua produção, repassando- a para terceiros ou deslocando suas fábricas para países distantes de suas sedes ou ainda desdobrando sua produção numa cadeia de terceiros orquestrada pela matriz. 

Isso, sem dúvida, fez que a produção deixasse de ser a área secreta de antigamente. Sabe-se que a Nike contrata jovens na Malásia para enfiar os cadarços nos tênis; ou que atribui a costureiras da Tailândia a responsabilidade por fixar os ilhoses dos calçados e assim por diante. Ou seja, os chamados segredos industriais não estão mais na produção, e sim na pesquisa tecnológica, no marketing e, certamente, no design. Não deixa de ser pedagógico esse escancaramento das zonas estratégicas e o caráter prosaico da fabricação.

Os jovens designers têm noções de marketing e detém certo conhecimento, ou melhor, detêm instrumentos projetuais que possibilitam um desenho capaz de fugir das soluções caras ou que pressuponham investimento tecnológico e pesquisa. Isso não é novo. Entre nós, muitos dos arquitetos formados nos anos 1950 enveredaram pela produção de móveis em baixa escala e acabaram, inclusive, recuperando velhas técnicas do ofício de marcenaria, buscando dotar suas peças de características que os afastaram da produção seriada, possibilitando o fabrico artesanal de alto nível. Ou seja, os instrumentos de projeto se tornam meios de conversão aos ofícios, em alguns casos.

Há também aqueles que driblam a necessidade de altos investimentos, procurando técnicas que não onerem sua produção ou que dependam de mão de obra intensiva, o que, especialmente nos países periféricos, é fácil de conseguir a preços módicos.

Também se deve ao novo capitalismo a crise do estado de bem-estar social e o conseqüente incremento do ensino privado. O ensino de terceiro grau  é um dos negócios que mais crescem no mundo, nessa nova aposta do capitalismo no setor de serviços (2).

Um dos cursos que se destacam, em todo o mundo, é o de design. As empresas precisam, mais do que nunca, de “criativos” em suas estruturas, pois devem lançar novos produtos a cada estação. Os empresários do ensino atendem a essa demanda, montando cursos que, geralmente, não dependem de grandes investimentos. As oficinas já existem nos cursos de engenharia ou arquitetura; os computadores e os programas já atendem outras áreas, os docentes são recrutados no meio profissional, no de arquitetos, artistas, publicitários, marqueteiros. Não há uma regulamentação feroz como na medicina ou no direito; não há carreiras acadêmicas solidamente implantadas, a própria definição de design está sempre em questão...Alguém quer campo mais difuso e confuso para montar um negócio lucrativo?
 
E assim são despejados, anualmente, milhares de jovens designers no mercado de trabalho, incapaz de absorvê-los a todos. É claro, as indústrias precisam de ‘criativos’, mas muitas delas mudaram-se para a China. É fato que toda padaria de esquina precisa de ‘branding’, mas uma marca ou um inteiro sistema visual podem ser gerados por default por jovens secundaristas hábeis em programas de computação gráfica.  Portanto, muitos jovens designers diplomados, sem querer submeter-se às agruras do mercado de computeiros, decidem tornar-se ‘empresários de si próprios’. Tudo isso é acalentado por uma literatura de auto-ajuda empresarial de estímulo às pequenas empresas, às oportunidades do mundo sem carteira assinada e sem direitos previdenciários.

Os jovens têm idéias, muitas delas originadas em seus trabalhos de conclusão de curso, e  lançam-se na aventura produtiva. Só que não têm instrumentos de investimento de uma empresa. A saída: pequenos objetos engraçados, muitas vezes formados por componentes industrializadas de baixo custo, que têm uma atratividade, pois se espelham na produção artesanal exemplar de alguns stars do design que adotam estratégias semelhantes.

E assim se forma a objetística, curioso amontoado de peças sazonais, muitas delas adeptas do fun-design (a exemplo da produção da empresa italiana Alessi) e que povoa feiras, feirinhas, lojinhas e butiques de museus e atinge, geralmente, um público também jovem, num circuito que se conecta ao do turismo e ao dos “eventos”.

Em lugares onde os laboratórios de tecnologia são mais acessíveis – e entre eles estão vários países europeus, o Japão, os Estados Unidos e o Canadá – os jovens designers trabalham muitas vezes, com novos materiais, apoiando-se nas facilidades da flexibilidade produtiva e também com os recursos da informática, que permitem produção aleatória. Em tais casos, tornam-se laboratórios importantes para as grandes empresas.

Não é o caso do Brasil e de tantos países periféricos, onde os jovens têm certa facilidade de conseguir mão de obra barata, oficinas artesanais precárias e de fundo de quintal (como marcenarias, serralherias, oficinas de repuxamento de alumínio), mas raramente têm acesso à pesquisa tecnológica mais avançada ou mesmo a materiais de ponta. 

Cadeias de lojas se formaram a partir dessa produção de objetos efêmeros, produzidos por contingente jovem, que domina instrumentos de projeto, não tem acesso a materiais de ponta nem à automação, à programação das linhas de montagem flexíveis...Mas sua flexibilidade é aquela da produção artesanal, mediada por hábitos culturais de consumo variegado e cômodo desalinhamento do design moderno, construtivo.

Interessante perceber que essa auto-produção, como muitos jovens gostam de denominar seu empreendedorismo – às vezes pontuada também por relações com artesãos tradicionais (mas essa é outra história, que merece outro texto) – cria um mercado jovem, afeito à segmentação buscada pelo marketing das grandes empresas. Dá certo porque são eles fazendo para eles, assim como empresas do ciclo de moda (de celulares a motocicletas) convidam jovens consumidores a decorarem seus produtos ou a darem idéias para novos. (Aliás, os jovens estudantes de design são as presas fáceis dessa barata pesquisa de marketing).

A produção cresceu tanto, em tantas partes do mundo, que ganhou espaços institucionais, muitas vezes ao lado de grandes empresas internacionais, caso do Salone Satellite da Feira de Milão, pequenos estandes vendidos a preços ‘módicos’ para universitários e jovens profissionais de todo o mundo exibirem seus produtos, na esperança de que um industrial self-made dos anos 1950 passe por lá.

Recentemente, no Brasil, temos visto designers que atuam nessa área sendo convidados por algumas empresas para desenvolver novos produtos, muitas vezes também no circuito dos objetos efêmeros ou sazonais. Algumas empresas italianas de móveis e objetos também produzem, muitas vezes, como cartões de visitas, algumas peças que se originaram nesse meio.

No entanto, a objetística está longe de ser uma saída para o design brasileiro e de tantos países periféricos, onde ainda há tanto de essencial a fazer.

Notas:

 1) Pasca diz que a expressão ‘jovens designers’ surgiu com o pós-modernismo, quebrando com a homologação proposta pela indústria e validando um discurso de arte/artesanato/design. Depois de 1987, as referências do design jovem tenderam ao historicismo. Ele reconhece algumas vertentes desse jovem design: o apego a características locais; a ironia frente ao excesso tecnológico; o minimalismo. Também vê nos grupos que se formam as estratégias auto-promocionais. PASCA, Vanni e TRAPANI, Viviana. Scenari del giovane design. Milano: Lupetti, 2001.

2) Ver SOUZA SANTOS, Boaventura. A Universidade no século XXI. Para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. 2ª edição. São Paulo: Cortez Editora, 2005.

 


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