Ano: I Número: 2
ISSN: 1983-005X
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Design e democracia
Gui Bonsiepe

Conferência realizada por ocasião da outorga do título doctor Honoris causa por parte da Universidade Tecnológica Metropolitana, Santiago do Chile, 24 de junho de 2005.

Apresentarei algumas reflexões sobre a relação entre design e democracia, entre humanismo crítico e humanismo operativo. Esta temática me leva à questão da tecnologia e da industrialização como meios para democratizar o consumo e, por fim, o papel ambivalente da estética como domínio da liberdade e da manipulação. Portanto, o tema central de minha conferência é a relação entre design – no sentido de projeto – e autonomia. Trata-se de reflexões inconclusas, que deixam perguntas em aberto e que não oferecem respostas rápidas nem soluções imediatas. A universidade proporciona – ainda – este espaço privilegiado para formulá-las , o que a prática profissional com suas pressões e contingências não permite com a mesma amplitude.

Se dermos uma olhada panorâmica no discurso atual de design, ou no discurso projetual - conceito que prefiro utilizar – constatamos uma surpreendente e diria até preocupante ausência de questionamento sobre a atividade projetual. As palavras da vez são branding, competitividade, globalização, vantagens comparativas, life-style-design, diferenciação, design estratégico, design emocional, design para diversão (fun design), design de experiências (experience design), design inteligente (smart design) – para nomear somente alguns dos termos que aparecem nas revistas especializadas e os –poucos – livros publicados sobre design. Às vezes surge a impressão que um designer que aspira a dois minutos de fama se sente obrigado a inventar uma nova etiqueta que sirva como brand, como marca para diferenciar-se do resto das ofertas profissionais. Obviamente deixo de lado os coffee table books de design que abundam em imagens e na falta de desafios intelectuais ao leitor. O tema democracia e design goza de menos preferência e atenção e, salvo raras e valiosas exceções, o mainstream do design não se interessa pelas questões que enfocarei nesta oportunidade.

Observando a história social do significado do conceito ‘design’, notamos por um lado sua popularização, ou seja uma expansão horizontal e , ao mesmo tempo, um estreitamento, ou seja uma redução vertical. O crítico de arquitetura Witold Rybczynski comentou, recentemente, este fenômeno: “Não faz muito tempo, o termo designer descrevia alguém como Eliot Noyes, responsável pelo design da máquina de escrever Selectric da IBM nos anos 1960; ou Henry Dreyfuss, entre cujos clientes se encontravam a Lockheed Aircraft e a Bell Telephone Company...ou Dieter Rams, que projetou uma gama de produto com formas austeras, mas muito práticas para a empresa alemã Braun. Hoje o termo ‘designer’ evoca provavelmente nomes como Ralph Lauren ou Giorgio Armani, ou seja, designers de moda. Enquanto estilistas geralmente começam como costureiros (couturiers), eles – ou pelo menos seus nomes – são muitas vezes associados a uma grande variedade de produtos de consumo, incluindo cosméticos, perfumes, malas e objetos para o lar e até tintas para pintar casas. Como resultado, ‘design’ na opinião pública se identifica com envoltórios: a carcaça de um computador; o corpo de uma lapiseira; a armação de óculos” (1)

O design mais e mais se distanciou da idéia de ‘solução inteligente de problemas’ e mais e mais se aproximou do efêmero, da moda, do rapidamente obsoleto – a essência da moda é a obsolescência rápida -, ao jogo estético-formal, à ‘boutiquização’ do mundo dos objetos. Freqüentemente, hoje em dia, o design é associado a objetos caros, especiais, pouco práticos, divertidos com formas rebuscadas e gamas cromáticas chamativas. A hipertrofia dos aspectos de moda, por sua vez, se reflete e é propiciada pelos meios de comunicação em sua incessante busca e apetite pelo novo. Design se transformou em evento mediático, em espetáculo – e temos um número respeitável de revistas que funcionam como caixas de ressonância para este processo, a mais conhecida delas talvez seja a Wallpaper com o subtítulo International Design, Interiors and Lifestyle. Até os centros de promoção do design se vêem expostos a esta cumplicidade dos veículos de comunicação, correndo o risco de desvirtuar seu objetivo de diferenciar design como resolução inteligente de problemas e styling. Trata-se, no fundo, de um renascimento da velha tradição da Boa Forma, mas com uma diferença fundamental: os protagonistas do movimento da Boa Forma perseguiam fins sócio-pedagógicos, os Life Style Centers perseguem exclusivamente fins comerciais e de marketing: a orientação do consumo de um novo – ou não tão novo – segmento social global que poderíamos denominar os “Já cheguei”.

Permito-me intercalar uma anedota sintomática do atual momento: um ex-colaborador e hoje colega reagiu à proposta feita por seus alunos de design industrial de visitar a Feira de Milão, dizendo definitivamente NÂO.“Vamos a um a oficina de desmanche de automóveis, aí vocês vão aprender como se suspende uma porta, como se unem peças metálicas e plásticas, e o que é o sistema técnico de um freio.” Com esta recomendação, revalorizou o know-howin e o que está out.

Os objetos de uso diário, os artefatos materiais e os artefatos semióticos encontraram no discurso cultural (que inclui o discurso acadêmico) salvo raras exceções – um clima de soberana indiferença – como o formulou uma colega italiana (Raimonda Riccini). O desprezo pelos artefatos materiais e semióticos tem suas raízes na cultura clássica greco-romana e dura até o período medieval, quando foram criadas as primeiras universidades ocidentais. Esta tradição acadêmica não registrou o domínio do projeto em nenhuma de suas carreiras ou disciplinas. É claro que, com a expansão das ciências e, sobretudo, com a industrialização já não era possível fechar os olhos para o mundo da tecnologia e dos artefatos, cuja presença se fez visível e se fez sentir cada vez mais na vida cotidiana. Mas como padrão de referência nas disciplinas universitárias servia – e serve – o ideal cognitivo, na forma de produção de novos conhecimentos. Nunca o projeto chegou a instalar-se como padrão de referência paralelo. Este fato explica a dificuldade de incorporar a formação de competência projetual nas estruturas acadêmicas com suas tradições e critérios de excelência, que diferem fundamentalmente das tradições e dos critérios de excelência nas disciplinas projetuais. Pois as ciências encaram o mundo sob a perspectiva da reconhecibilidade, as disciplinas de design, por sua vez, encaram o mundo sob perspectiva da ‘projetualidade’ , se me permitem o neologismo. Estas são duas diferentes perspectivas que, oxalá, no futuro, se transformem em perspectivas complementares. E não somente isso, mas estou convencido de que, no futuro, haverá uma mútua interação frutífera entre o mundo das ciências e o mundo do projeto que, hoje em dia, se dá , no máximo, esporadicamente. Até o momento, o design procurou aproximar-se do mundo das ciências, mas não o inverso. Como possibilidade especulativa arriscada podemos imaginar que, no futuro, o projetar será uma disciplina básica para todas as disciplinas científicas. Mas esta reviravolta copérnica no sistema de ensino superior provavelmente levará gerações, a não ser que se criem instituições de ensino superior completamente novas. Já que o espaço de ação dos ministérios de cultura e educação é muito limitado pelo peso das tradições acadêmicas e da formalização administrativa com sua inevitável insistência no credencialismo, tais novas instituições serão criadas, provavelmente, fora do sistema estabelecido.

Colocar o projeto em relação com as ciências não deve ser interpretado como um postulado por um design científico ou de querer fazer do design ciência. Seria ridículo querer projetar um cinzeiro a partir de conhecimentos científicos. Mas é tudo menos que ridículo – e mais ainda indispensável – recorrer a conhecimentos científicos quando se quer projetar uma nova embalagem para leite que minimize os rastros ecológicos (ecological footprints). Não se pode mais restringir o conceito de design às disciplinas projetuais tais como arquitetura, design industrial e design de comunicação visual. Pois nas disciplinas científicas também há design. Quando um grupo de engenheiros agrônomos da Universidade de Buenos Aires desenvolve uma nova guloseima com base na semente da alfarroba acrescida de sais minerais e vitaminas básicas para escolares, temos um claro exemplo de um ato projetual.(2)

Portanto, já registramos uma zona de contato entre ciências e design, embora ainda não tenhamos, até o momento, uma teoria geral do design que abarque todas as manifestações projetuais, sobretudo a engenharia genética que, sem dúvida alguma, é uma disciplina projetual científica.

Permito-me intercalar uma observação feita recentemente em um seminário sobre o discurso projetual na Suíça. Dois dos alunos haviam feito uma análise da representação do inimigo em jogos de computador e mapearam esta imagem do inimigo na situação política na qual o jogo fora inventado e programado – tratava-se da Guerra Fria. Surpreendeu-me a qualidade do trabalho para a qual encontrei uma explicação quando um dos alunos mencionou que estudara ciências sociais, complementando agora seus estudos científicos com uma formação em design. Sem querer imprimir validade estatística a este caso – e casos similares – tomo-o como indício promissor para uma mudança do perfil dos estudantes de design. Na minha geração, eram os estudantes de design que completavam sua formação com estudos de psicologia experimental, comunicação de massas ou algo similar. Hoje são estudantes de disciplinas científicas que começaram a se interessar por uma carreira projetual, gerando um novo tipo de estudante. Claro, esta nova constelação exige a revisão das condições de admissão ao estudo da carreira de design. Será relativizada a importância dada ao portfólio e à capacidade de desenhar que frequentemente frustrou o acesso à carreira de design industrial ou de comunicação visual por parte de alunos com potencial projetual.

Depois desta breve digressão sobre a posição do projeto no ensino superior, chego ao tema central de minha conferência: democracia e design. O conceito democracia sofreu lamentável desgaste nos últimos anos, o que aconselha a usá-lo com cautela. Se olharmos o cenário internacional atual, constatamos que, em nome da democracia se cometem invasões colonialistas, matanças, bombardeios, genocídios, limpezas étnicas, torturas, quebras de leis de convivência internacional, quase impunemente – pelo menos até o momento. O preço deste anti-humanismo é uma incógnita que não poderá ser classificada como dano colateral. Possivelmente o custo será terrível e com ele se verão confrontadas as futuras gerações. Estas operações nada têm a ver com a democracia. É semelhante ao que acontece também com organizações internacionais como a Organização Mundial do Comércio, na qual o peso dos países centrais define as regras do jogo.

Nas versões neoliberais, a democracia é sinônimo da predominância do mercado como conceito quase sacralizado e como máxima e exclusiva instância para regular as relações sociais dentro das e entre as sociedades.

No entanto, surgem as perguntas: como recuperar o conceito de democracia e dar-lhe credibilidade? Como evitar o risco de expor-se à atitude arrogante e condescendente dos grandes centros de poder que interpretam democracia com o sentido de um sedativo para a opinião pública e para poder continuar sem restrições como o business as usual?
Utilizo uma interpretação simples de democracia, no sentido de participação para que dominados se transformem em sujeitos que abrem espaço de autodeterminação, e isto quer dizer espaço para um projeto próprio, para um design próprio. Em outras palavras: a democracia vai muito além do direito formal de votar, assim como o conceito de liberdade vai muito além da possibilidade de escolher entre cem modelos de telefones celulares ou uma viagem a Orlando para visitar a Disneylândia ou a Paris para visitar o Louvre.

Faço minha adesão a um conceito substancial e menos formal de democracia no sentido de redução de heteronomia, heteronomia entendida como subordinação a uma ordem imposta por agentes externos. Não é segredo que esta interpretação se insere na tradição da filosofia do Iluminismo tão criticada por autores como Jean-François Lyotard que afirma – não se sabe exatamente se com certa satisfação ou não – o fim das grandes narrativas. Não concordo com esta corrente de pensamento, como tampouco concordo com a corrente pós-modernista em todas as suas variantes. Pois sem elemento utópico outro mundo não será possível e restaria apenas uma expressão de um desejo piedoso e etéreo sem conseqüências. Sem o elemento utópico, ainda que residual, não é possível qualquer redução da heteronomia. Por isso, a renúncia ao projeto da filosofia do Iluminismo me parece uma atitude conformista, para não dizer conservadora. É uma atitude de capitulação à qual nenhum designer deveria ceder.

Para ilustrar a necessidade de reduzir a heteronomia, quero usar as contribuições de um filólogo especialista em literatura comparada. Refiro-me a Edward Said , falecido em 2004. Ele caracteriza de modo exemplar o que é o humanismo, o que é uma atitude humanista. Como filólogo, limita a postura humanista ao campo da linguagem e da história. Cito: “Humanismo é o exercício das faculdades da linguagem para compreender, reinterpretar e analisar os produtos da linguagem na história, em outras linguagens e em outras histórias.” (3)

Mas sua interpretação pode ser estendida a outras áreas. Não se deformariam as intenções do autor expandindo – com as devidas modificações – sua caracterização do humanismo também no design. O humanismo projetual seria o exercício das faculdades do design para interpretar as necessidades de grupos sociais e elaborar propostas viáveis emancipatórias em forma de artefatos instrumentais e artefatos semióticos. Por que emancipatórias? Pois humanismo implica na redução da dominação, e no caso do design, atenção também aos excluídos, aos discriminados, como se diz no jargão economista, os menos favorecidos, ou seja, a maioria da população deste planeta. Deixo  claro que não estou pregando uma postura universalista do tipo Design para o Mundo (a ONG internacional Design for the World). Deixo claro também que esta afirmação não deve ser interpretada como expressão de um idealismo ingênuo e fora da suposta realidade. Ao contrário, é uma possível e incômoda questão de fundo que qualquer profissão, não somente a dos designers, deveria enfrentar. Seria errado interpretar esta frase como uma exigência normativa sobre como um designer deveria atuar hoje, exposto às pressões do mercado e às antinomias entre o que é e o que poderia ser a realidade. O objetivo é mais modesto: formar e manter uma consciência crítica frente ao enorme desequilíbrio entre os centros de poder e os que são objetos do poder. Pois este desequilíbrio é antidemocrático, pois nega a participação. Trata os seres humanos como meras coisas no processo de coisificação (Verdinglichung).

Mencionamos aqui o papel do mercado e o papel do design dentro do mercado. Em seu último livro The Economics of Innocent Fraud, o economista Kenneth Galbraith apresenta uma leitura crítica do discurso das ciências econômicas. Entre outras, faz uma radiografia da função do uso do conceito “mercado” que, segundo o autor, nada mais é que uma cortina de fumaça para não falar pura e simplesmente de capitalismo – termo que não goza de conotações positivas em todos os lugares e estratos sociais. Galbraith coloca o design industrial no conjunto de técnicas das grandes corporações para expandir e manter o poder: “A inovação do produto e o redesenho são uma função econômica importante, e nenhuma empresa de peso introduz um novo produto sem cuidar da demanda por parte dos consumidores. Ou economiza esforços para influenciar e manter a demanda por um produto existente. Aqui entra o mundo da publicidade e da astúcia de vendas; da televisão e da manipulação do consumidor. Portanto da soberania do consumidor e do mercado. No mundo real, a empresa produtora e a indústria vão longe para fixar os preços e a demanda, empregando para este fim monopólios, oligopólios, design de produtos e diferenciação de produtos, publicidade e outras técnicas de promoção de vendas e comércio.” (4)

Galbraith critica o termo “mercado” como instância anônima impessoal e insiste que se deveria falar do poder das grandes corporações. A este uso do design – em última instância como ferramenta de poder – se contrapõe a intenção de não concentrar-se em aspectos meramente de poder e desta força anônima chamada mercado. Esta é a contradição na qual a prática profissional do design se desenvolve, resistindo ao discurso harmonizador de que tudo está bem. Pode-se negar esta contradição, mas não se pode escapar dela.

O tópico da manipulação tem longa tradição no discurso projetual e, sobretudo, na publicidade. Lembro-me de um livro que, em sua época, gozou de bastante popularidade, The Hidden Persuaders, de Vance Packard. Sem dúvida, é preciso tomar cuidado com a crítica maximalista meramente denunciatória e declamatória. É preciso diferenciar um pouco mais e não contentar-se com uma suspeita totalizadora. Manipulação e design encontram um ponto de contato no conceito de aparência. Se projetamos estamos construindo aparências – entre outras categorias – design é, em boa parte, visível. Por isso caracterizei, certa vez, o designer como estrategista das aparências, quer dizer, dos fenômenos que experimentamos mediante nossos sentidos, sobretudo por meio do sentido visual, mas também mediante os sentidos do tato e da audição. Aparência, por sua vez, conduz à estética – conceito ambivalente como explicarei em seguida. Pois, de um lado a estética representa o mundo da liberdade, do jogo (há autores que afirmam que somente brincando estamos livres); por outro lado abre o caminho do engano, da manipulação (ou seja, da expansão da heteronomia).
O objetivo é seduzir, quer dizer, provocar uma predisposição positiva ao projetar aparências de produtos e artefatos semióticos; ou também, segundo o contexto, provocar predisposições negativas frente ao produto ou à mensagem e seu conteúdo. Ou seja, dependendo das intenções, o design se inclina para um pólo ou para outro, mais para a autonomia ou mais para a heteronomia.

Neste ponto desta série de reflexões, gostaria de tocar no tópico da tecnologia. Por tecnologia entende-se em geral o arsenal de artefatos e métodos para produzir mercadorias com as quais as empresas estão povoando o cenário dos bens materiais. Isto é, a tecnologia é composta por hardware e software e este aspecto soft inclui o design como faceta imprescindível da tecnologia. Vou enfocar o tema das políticas tecnológicas e as políticas de industrialização na América Latina. As pesquisas sobre esse tema revelam dados muito esclarecedores sobre avanços e retrocessos. Mas tendem a favorecer uma interpretação redutora do conceito – e a realidade – da tecnologia. Somente em casos excepcionais os textos mencionam o que se faz com as tecnologias; não se formula a pergunta do projeto dos artefatos. Isso me parece um déficit, sem menosprezar os esforços dos historiadores da tecnologia e da industrialização. Mas não se pode eximi-los do que se pode chamar de indiferença ou até cegueira com respeito á realidade do projeto. Entre os motivos para a industrialização se encontra o desejo de diferenciar as exportações e gerar dentro das economias produtos com valor agregado – deixo de lado, neste conceito, a tecnologia militar que seguramente teve papel importante. Mas por baixo destes motivos jaz outra idéia nem sempre formulada explicitamente. Refiro-me à idéia que a industrialização é – além do aumento do PIB – um meio indispensável para democratizar o consumo e permitir a um amplo setor da população o acesso a um universo de produtos para a vida cotidiana em seus diferentes domínios: saúde, casa, educação, esportes, transporte, trabalho, para mencionar alguns.

Mencionar hoje o papel do Estado para promover a industrialização parece quase um sacrilégio. O papel do Estado foi demonizado com uma exceção: quando se trata de pagar as contas de um serviço (ou um banco) privatizado falido. Porque, quando se escrever a história da tecnologia e da industrialização desse subcontinente, se verá às claras que o papel do estado foi e continua sendo – fundamental para o processo de industrialização, por mais que os detratores do setor público com suas vozes beligerantes pretendam ridicularizar, desprestigiar e desconhecer suas contribuições. Se olharmos rapidamente o que aconteceu na Argentina, até poucos anos submissa seguidora das recomendações do Fundo Monetário Internacional e, em alguns momentos, delirante por suas “relações carnais” com o poder econômico e militar máximo do mundo, constatamos que o país não se deu particularmente bem com a privatização desenfreada. Levou, por um lado, grande parte da população a um empobrecimento desconhecido nesta sociedade e, por outro, a uma concentração de renda com o resultado de uma polarização entre incluídos e excluídos. A privatização, neste caso, é sinônimo de desdemocratização, pois a vítimas do processo nunca foram consultadas a aprovar os créditos que levaram o país à bancarrota. Com a privatização e a retração do papel do Estado, com a abertura sem restrições às importações, o país se desindustrializou reduzindo as bases para o trabalho na indústria e, como conseqüência, também erodiu a base do trabalho do designer industrial. Desencadeou um retrocesso afetando grande parte dos setores e da economia.

Detendo-me um instante no tema da política de desindustrialização, constato que em todos os programas dos quais pude participar, principalmente no Chile, na Argentina e no Brasil, nenhum abarcou o setor da informação e da comunicação. Tudo estava dirigido ao hardware não ao software. Hoje esta constelação mudou radicalmente. Uma política de industrialização atualizada deveria enfocar a indústria da informação, para a qual o design gráfico, ou melhor, o design da informação, pode prestar serviços essenciais. Aqui surgem temáticas novas que confrontam o design da comunicação com exigências cognitivas que, na tradição do ensino do design gráfico, nunca receberam a devida atenção.

Com a difusão da tecnologia digital começou a surgir no discurso projetual uma corrente que afirma que, hoje em dia, as principais questões que um designer tem de enfrentar são os aspectos simbólicos, pois questões relacionadas às funções dos produtos perderam vigência. Como segundo argumento menciona-se a miniaturização obtida por meio dos circuitos impressos que não permitem perceber o funcionamento dos componentes. Portanto, o design teria de tornar visíveis estas funções. Ainda que seja cegueira negar os aspectos comunicativos e simbólicos dos produtos, é preciso relativizá-los e não conferir-lhes papel tão dominante, como propugnam alguns autores. Entre a alternativa de colocar um prego na parede com um martelo ou com o valor simbólico de um martelo, a opção deveria ser clara. O substrato material com sua expressão visual/tátil/auditiva forma a base sólida do trabalho do designer. Percebo com preocupação o crescimento de uma nova geração de designers que se fixa obsessivamente nos aspectos simbólicos e seus equivalentes no mercado, que é o branding – e o self-branding – e não sabe mais como se classificam os elementos de junção objetos. A busca do equilíbrio ente os aspectos instrumentais operativos dos objetos técnicos e seus aspectos semânticos é a essência do trabalho do designer, sem privilegiar um lado sobre o outro.

“A polaridade entre o instrumental e o simbólico, entre estrutura interna e externa é uma condição típica dos artefatos, em sua prerrogativa de instrumentos e em sua prerrogativa de portadores de valores e significados. O design tem o objetivo de reconciliar estas duas polaridades, projetando a forma dos produtos como resultado do desenvolvimento sócio-técnico.” (5)

É interessante notar que a autora não fala da forma dos produtos e sua interação com a função, isto é, dos serviços que um produto oferece, mas menciona o desenvolvimento sócio-técnico. Com esta abertura sai da velha polêmica sobre o binômio forma/ função que tantos debates provocou na história do discurso projetual. As bases consideradas estáveis para orientar como chegar às formas dos produtos se dissolveram – se é que já existiram. Seria hoje ingênuo pressupor a existência de um padrão de regras deterministas. Quem defende tal padrão comete o erro do essencialismo das configurações platônicas. Mas, ao mesmo tempo, seria ingênuo postular uma irrestrita veleidade das formas surgindo de atos demiúrgicos de um punhado de designers inspirados e supostamente “criativos”.

Encontramo-nos diante de um paradoxo. Projetar significa expor-se e viver com paradoxos e contradições, mas nunca camuflá-las sob um manto harmonizador, e não somente isso, mas também – e sobretudo – projetar é desvendar estas contradições. Em uma sociedade torturada por contradições, o design está marcado por estas antinomias. Vale a pena lembrar o duro e melancólico dictum de Walter Benjamin: Não há obra/documento da civilização que não seja, ao mesmo tempo, sintoma da barbárie.
Copyright © Gui Bonsiepe 2005, 2008

Tradução: Ethel Leon

 

Notas


(1) »Not so long ago, the term »designer« described someone like Eliot Noyes, who was responsable for the IBM Selectric typewriter in the 1960s, or Henry Dreyfuss, whose clients included Lockheed Aircraft and Bell Telephone Company ... or Dieter Rams, who created a range of austere-looking, but very practical products for the German company Braun. Today, "designer" is more likely to bring to mind Ralph Lauren or Giorgio Armani, that is, a fashion designer. While fashion designers usually start as couturiers, they - or at least their names - are often associated with a wide variety of consumer products, including cosmetics, perfume, luggage, home furnishings, even house paint. As a result, »design« is popularly identified with packaging: the housing of a computer monitor, the barrel of a pen, a frame for eyeglasses.« Rybczynski, Witold. »How Things Work«. New York Review of Books, vol LII, number 10, june 9, 2005, 49-51.

(2) http://www.clarin.com/diario/2005/05/09/sociedad/s-03101.htm
Crean un nuevo alimento para escolares en base a algarroba.
Segunda-feira, 09.05.2005

(3) »Humanism is the exertion of one's faculties in language in order to understand, reinterpret, and grapple with the products of language in history, other languages and other histories.« Said, Edward W. Humanism and Democratic Criticism. Columbia Universtiy Press, New York 2003. pg 28. Em português: Humanismo e Crítica Democrática, São Paulo: Cia. Das Letras,  2007.

(4) »Product innovation and modification is a major economic function, and no significant manufacturer introduces a new product without cultivating the consumer demand for it. Or forgoes efforts to influence and sustain the demand for an existing product. Here enters the world of advertising and salesmanship, of television, of consumer manipulation. Thus an impairment of consumer and market sovereignty. In the real world, the producing firm and the industry go far to set the prices and establish the demand, employing to this end monopoly, oligopoly, product design and differentiation, advertising, other sales and trade promotion.« Galbraith, John Kenneth. The Economics of Innocent Fraud. Houghton Mifflin Company: Boston, 2004, pg 7. Em português: A Economia das Fraudes Inocentes. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004.

(5) Riccini, Raimonda. »Design e teorie degli oggetti«. il verri, nº 27 - febbraio 2005, 48- 57).

 


Comentários

thamires
31/07/2014

Adoraria ler esse conteúdo!

Karla Pacheco
23/07/2014

Gostaria de ter acesso a esse conteúdo para estudo.

keila Mara Coelho de Araujo
29/01/2014

preciso ler este livro.

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