Ano: I Número: 3
ISSN: 1983-005X
Detalhar Busca

O ornamento no centro de um debate moderno (I)
Gilberto Paim

A questão do ornamento, longe de estar esgotada, ganha renovado
interesse nos últimos anos, dadas as práticas de incorporar elementos de
diversos períodos históricos nos objetos e nos impressos. O texto que
segue procura explicitar a reflexão moderna sobre o ornamento, comprometida com a transformação das formas ornamentais. 

O debate moderno sobre o ornamento envolveu, entre 1850 e 1950, designers, artesãos, artistas e teóricos da arte. A fermentação, a eclosão e a consolidação do modernismo estiveram intimamente associadas à reflexão sobre o ornamento – cujas relações com a natureza, a arte, a produção industrial e a arquitetura foram amplamente exploradas. A intensidade do debate teve a paixão que dedicamos hoje, por exemplo, aos temas ecológicos. Foi um debate realmente expressivo do seu tempo.

A vasta reflexão sobre o ornamento, precipitadamente submersa no inconsciente das idéias modernas, continua influenciando de modo transversal os valores contemporâneos. A consagração internacional da estética racionalista de Le Corbusier no pós-guerra, com a sua ênfase na exclusão do ornamento, das artes decorativas e dos artesanatos em favor do design industrial, contribuiu para eclipsar uma produção artística e intelectual riquíssima. Ao retomarem o debate nos anos 1960, os arquitetos e designers considerados pós-modernos expressaram a sua revolta contra um anti-ornamentalismo sem muita profundidade, reduzido a uma regra escolar a ser contrariada e burlada.

As diversas significações atribuídas ao ornamento ao longo do debate foram desconsideradas por aqueles que redescobriram as “mil maravilhas” dos repertórios ornamentais, com mais humor e ironia nos anos setenta do que hoje, é verdade, quando presenciamos uma grande exuberância comercial de flores, guirlandas e outros decalques decorativos aplicados sobre paredes, vidros, porcelanas e luminárias. A presença atual de tantos plásticos e metais recortados a laser é reveladora de uma necessidade contemporânea de complexidade visual, cujo aspecto feérico tem o seu charme. Mas há um outro trabalho de ornamentação, a meu ver mais interessante, empenhado em revelar a beleza essencial dos materiais e que foi estimulado pelas restrições modernistas à fantasmagoria decorativa. Esta busca não se encerrou, ela persiste na arquitetura, no design e nos ofícios artesanais, convivendo com uma pluralidade de outras manifestações. As forças ascéticas liberadas pelo modernismo não mais pretendem conquistar a hegemonia, porém continuam em atuação.    

Sentidos múltiplos do ornamento

Procurei não perder de vista a seguinte questão ao examinar os inúmeros textos que compõem o debate: o que está em jogo quando a palavra ornamento é mencionada? Por vezes o ornamento significa fantasmagoria, como em Walter Benjamin, num outro momento significa sopro, vitalidade, revolução como em John Ruskin; mas também submissão, em Adolf Loos; golpe cenográfico, em Henri van de Velde; e camuflagem, em Le Corbusier. Deixei-me surpreender pelas respostas, sem as relacionar a um conceito pré-determinado de ornamento. As ondas sucessivas de exaltação e condenação do ornamento ultrapassaram em muito as considerações estritamente estéticas. Os ornamentos perderam a importância acessória que lhes é atribuída pelo senso comum assim como o status de “belezas livres” – formas puras emancipadas da representação – que lhes foi prometido pela filosofia de Kant, para participar intensamente da vida social e, sobretudo, reconquistar a sua plena dimensão material. 

A análise detalhada de textos fundamentais do modernismo me permitiu escapar de certos  lugares comuns sobre o tema. O modernismo tem sido insistentemente caracterizado pela rejeição ao ornamento; a meu ver evita-se assim refletir sobre o efeito propriamente estimulante que as restrições modernistas tiveram sobre as diversas práticas ornamentais. É comum, na negação da riqueza deste debate, citar duas ou três fórmulas antiornamentais modernistas, como “ornamento é crime”, do arquiteto austríaco Adolf Loos; ou “é preciso parar de ornamentar” e a “ forma segue a função” , ambas do arquiteto norte americano Louis Sullivan, desprezando os contextos críticos e estéticos destas afirmações, nos quais elas eram muito mais ricas de sentido. Adolf Loos condenou a migração aleatória dos ornamentos sobre os objetos e a arquitetura, visando estimular a investigação das linguagens plásticas inerentes aos diversos materiais. A beleza moderna deveria resultar de uma “ornamentação sem ornamentos”, expressão paradoxal que procurarei explicar e exemplificar ao longo do texto. Louis Sullivan propôs a suspensão temporária do ornamento como uma ascese indispensável para a reavaliação de suas verdadeiras possibilidades e o favorecimento da sua plena expressão num futuro não muito distante.  O ascetismo moderno foi um grande estímulo para a criação, senão de padrões ornamentais, de novos procedimentos capazes de revelar a beleza inerente aos materiais. 

Cada nova concepção do ornamento implicou num remanejamento de forças entre arquitetos, designers, artistas decorativos e artesãos. O conceito do ornamento orgânico, desenvolvido por Frank Lloyd Wright a partir de uma idéia de Louis Sullivan, fez do arquiteto o único e exclusivo autor da criação ornamental de um projeto, cujo tema formal deveria se desdobrar da planta até os mínimos detalhes das maçanetas. Se o planta partia de um hexágono, por exemplo, essa forma deveria se manifestar no todo e nos detalhes, segundo o desenho do arquiteto, sem espaço para a criação dos artesãos e artistas. Desse modo, toda forma não definida pelo arquiteto em seu projeto passava a ser considerada como intervenção espúria,  decoração supérflua.

As diversas concepções ornamentais alteraram a percepção dos artesanatos no mundo moderno. Hoje, quando a aproximação entre design e artesanato ganha importância, vale tentar compreender as relações entre design e artesanato estabelecidas pelo modernismo, especialmente o franco antagonismo legado por Le Corbusier.

Em A beleza sob suspeita ( Jorge Zahar Editor, 2000 ), procurei apresentar com clareza as diferentes teorias ou opiniões sobre o ornamento que se sucederam no debate – pouco conhecidas e mesmo marginais aos estudos canônicos do modernismo – respeitando a singularidade das argumentações, supondo-as ainda surpreendentes para os leitores de hoje.

Alguns leitores do livro lamentam que o design contemporâneo não suscite um debate semelhante. De fato, o discurso dominante sobre o design oscila entre o jornalístico e o publicitário, ao menos esse é o discurso acessível aos não especialistas. Trata-se acima de tudo de divulgar incessantemente novos produtos, e apenas raramente de refletir ou estimular a reflexão sobre eles. É uma lástima, pois os objetos de design fazem intensamente parte da vida cotidiana e social, assim como os ornamentos na virada do século XIX para o XX. O debate moderno sobre o ornamento ultrapassou em muito o círculo de especialistas, assim como as polêmicas incandescentes nos jornais de grande circulação sobre a pintura e a escultura modernas.

Entretanto, um certo discurso que sustenta atualmente ações oficiais de fomento ao design tem enfatizado quase exclusivamente o seu papel como agente propulsor do crescimento econômico e da geração de empregos. Curiosamente este discurso não é muito diferente do discurso sobre o ornamento que vigorou na Inglaterra em meados do século XIX.  Em Análise do Ornamento, de 1853, o reformista inglês do design Ralph Wornum reconheceu assim o potencial econômico do ornamento:

            O avanço da sociedade exige que se combine elegância e adequação; aqueles que não são capazes de compreender isso devem se contentar em mandar os seus produtos para os mercados mais rudimentares do mundo e deixar os grandes negócios para os homens de gosto e juízo influente, que merecem a maior recompensa... O ornamento tem hoje um interesse material tão grande, numa comunidade comercial, quanto o algodão ou mesmo qualquer outra matéria-prima utilizada pela indústria. (1)

O debate moderno admitiu a importância econômica da ornamentação dos objetos industriais, mas pressionou continuamente para que outros valores participassem do projeto e da produção: valores estéticos, valores relacionados à saúde, mas também à funcionalidade e à qualidade dos produtos etc. Observamos entre os reformistas do design da segunda metade do século XIX um grande esforço para incutir valores nos produtos industriais, para civilizá-los, se podemos dizer assim. Em parte, o design moderno surge deste “esforço civilizatório”. Contemporaneamente, o italiano Enzo Mari pensa o trabalho do designer como um profissional capaz de introduzir valores culturais na produção industrial. Talvez a maior pressão para a introdução de valores culturais no design se realize hoje por parte dos profissionais com forte preocupação ambientalista.  

Os repertórios ornamentais

Mas voltemos aos velhos ornamentos. Os métodos industriais de produção transformaram radicalmente a presença dos ornamentos nas cidades européias e americanas no século XIX. Fabricados anteriormente em pequenas oficinas, por artesãos que utilizavam materiais e procedimentos técnicos aperfeiçoados lentamente durante séculos, os ornamentos passaram a ser feitos em galpões industriais, segundo as exigências da produção em série. Novos métodos de organização do trabalho, técnicas e materiais foram desenvolvidos para multiplicar a produção; o artesão que trabalhava com uma pequena equipe de colaboradores e aprendizes foi substituído pelo operário responsável por um fragmento incessantemente repetido da cadeia produtiva. Os ornamentos deixaram de ser concebidos e fabricados exclusiva ou prioritariamente em função de projetos específicos de residências ou prédios públicos, envolvendo a participação de arquitetos, artistas e artesãos, para se transformarem em mercadorias produzidas em larga escala, comercializadas em grandes lojas ou por meio de catálogos, dirigidas ao consumo de diferentes camadas da população urbana. Submetidos às estratégias de ampliação e diferenciação dos mercados, os ornamentos se tornaram importantes catalisadores da expansão do capitalismo industrial.

A disseminação das novas formas ornamentais deveria contribuir para embelezar as cidades e tornar os lares mais acolhedores num período dramático de retração da natureza, alta concentração de renda, avanço da pobreza e das várias modalidades de poluição. Os ornamentos reproduzidos nos catálogos comerciais ou iluminados nas vitrines das lojas deveriam seduzir o olhar, excitar as vendas, gerar muitos lucros e impulsionar novos negócios.

A mutação industrial dos ornamentos fomentou a publicação de inúmeros repertórios ornamentais considerados representativos de diferentes períodos históricos e de outras culturas ou civilizações. Os ornamentos foram classificados segundo a sua origem ( egípcia, grega, romana, chinesa, indiana etc.); os seus componentes ( geométricos, florais, animais, humanos, mistos) e suas aplicações ( na arquitetura, no mobiliário, na cerâmica, na metalurgia). Um estoque ilustrado de formas esteve ao alcance dos responsáveis pela criação dos produtos a serem lançados no mercado.

Os repertórios ornamentais não são exatamente uma invenção do século XIX, eles remontam às coleções de gravuras ornamentais feitas desde o século XVI, com o intuito de fornecer material de consulta a arquitetos, artistas e artesãos. As técnicas de impressão aceleraram a difusão dos padrões ornamentais, fazendo que as obras realizadas no círculo restrito das Cortes européias fossem conhecidas por artistas e artesãos de outros centros. Rapidamente as gravuras ornamentais se tornaram uma fonte preciosa de informação para todos aqueles envolvidos na fabricação de jóias, talheres, móveis, cerâmicas etc., desempenhando nos séculos seguintes um papel importantíssimo na difusão dos estilos decorativos.

As gravuras ornamentais foram elas mesmas copiadas e reproduzidas por diferentes editores em toda a Europa, atendendo à demanda de um mercado florescente. No século XIX os repertórios já amplamente consolidados como fonte de consulta se tornaram mais abrangentes e volumosos. Padrões ornamentais realizados nos quatro cantos do mundo  estiveram ao alcance dos empresários para serem imitados e combinados segundo a ousadia ou a voracidade de cada um. Os ornamentos foram violentamente desvinculados do conjunto artístico ao qual pertenciam e dos materiais que lhes serviram de suporte, ganhando múltiplas e inesperadas aplicações, freqüentemente combinados a outros ornamentos provenientes de outras épocas e culturas. A adequação dos desenhos à finalidade prática ou simbólica dos objetos ou da arquitetura raramente foi considerada; o importante era criar objetos que atraíssem o olhar não necessariamente cultivado das classes médias e alta urbanas e se destacassem na babel das grandes feiras e exposições internacionais – um paralelo poderia ser feito hoje com os objetos industriais super chamativos que atraem o olhar nas mostras internacionais de design, que são uma espécie de carro chefe das grande marcas. A semelhança não é mera coincidência, pois estamos vivendo um momento de forte decorativismo.

Fantasmagoria

A camuflagem da finalidade prática dos objetos sob a teatralidade aleatória e pretensiosa foi descrita por Walter Benjamin no seu Livro das Passagens como um fenômeno de sobreposição de imagens, semelhante à fotomontagem:

     As mudanças de estilo – gótico, persa, renascentista etc.. – tudo isso queria dizer: uma sala de banquete César Bórgia é aplicada ao interior de uma sala de refeições burguesa; uma capela gótica surge na pequena sala de estar da dona de casa; o escritório do dono da casa se metamorfoseia por iridiscências sucessivas em quarto do príncipe persa. (2)

Os ornamentos foram compreendidos e utilizados como formas desmaterializadas e descontextualizadas. Imagens fantasmáticas disponíveis para modelar tanto a fachada grandiosa das óperas municipais quanto o mármore das lareiras ou o saleiro de metal. Partindo de várias frentes o combate à fantasmagoria fez surgir o debate moderno sobre o ornamento – o qual, ao longo das décadas seguintes, incorporou diversos outros temas e apresentou múltiplas ramificações.

Quando submetidos ao escrutínio dos profissionais ligados à arquitetura e às artes, os ornamentos industriais foram freqüentemente execrados como falsos, vulgares e corruptores do gosto, e denunciados num processo generalizado de monstrificação de todas as coisas.

Poluição

Contemporânea das primeiras campanhas de saúde pública, a proliferação ornamental foi comparada a uma epidemia. Os médicos ingleses se empenharam em expulsar os ornamentos dos hospitais. Em 1893, Burnett, grande autoridade médica, declarou sobre os banheiros: "todo o conjunto deve ser branco e nenhum ornamento de nenhum tipo deve ser permitido". Tanta assepsia não era à toa: sobre os relevos ornamentais acumulava-se a poeira e prosperavam os terríveis micróbios então identificados por Pasteur. Excessivos, incômodos, aleatórios, os ornamentos se tornaram progressivamente dentro e fora dos hospitais, imagens eloqüentes de uma infecção indesejada. Em substituição à tradicional louça vermelha, os serviços de mesa de faiança branca health safe ganharam as prateleiras das cozinhas, na cidade e no campo.

A determinação de conter a produção e proliferação das formas ornamentais estimulou o debate moderno. Os ornamentos se tornaram propulsores de discurso, inclusive dos discursos anti-ornamentais aos quais se costuma associar o ascetismo modernista da primeira metade do século XX. O combate à fantasmagoria ornamental na arquitetura, no artesanato e no design teve paralelo no combate ao ensino da retórica que foi excluído da maioria das faculdades, com exceção dos cursos de Direito. Ornamentos visuais e verbais foram considerados pedantes, artificiais e monótonos. Em nome da clareza e da espontaneidade, a desqualificação da “velha retórica” conduziu a experimentação modernista em direção ao grau zero do ornamento.

Os profissionais capazes de intervir diretamente na criação e na produção dos ornamentos se empenharam em reformar ou combater a sua mutação industrial. Os ornamentos mereceram exposições críticas, museus especializados e um sem número de estudos eruditos; critérios para a avaliação dos ornamentos foram estabelecidos em função do seu grau de inventividade e abstração.  O desenho naturalista que reproduzia sobre tapetes, porcelanas e papéis de parede os mais ínfimos detalhes das formas naturais – foi condenado em favor do desenho “sem sombras” na expressão de Pugin. Até mesmo o célebre escritor de contos de terror Edgar Allan Poe se manifestou em favor dos arabescos abstratos em seu ensaio A Filosofia do Mobiliário.

Embora os reformistas do design do século XIX tenham sido extremamente críticos em relação à mutação industrial dos ornamentos e repudiado a imitação, o ecletismo e o naturalismo em favor de modalidades mais sutis e abstratas de ornamentação, não duvidaram que os ornamentos fossem uma necessidade da vida moderna. Ralph Wornum expressou claramente esta convicção:

     No mundo civilizado, a beleza do efeito e da decoração não é um luxo, como o aquecimento e o vestuário não são luxos. A mente, assim como o corpo, faz tudo o que é necessário para se deliciar permanentemente. O ornamento é uma necessidade da mente, que gratifica através do olho; no seu sentido estritamente estético, tem uma analogia perfeita com a música, que gratifica a mente através de outro órgão – o ouvido. (3)

Para Eugène Grasset a criação ornamental correspondia a uma vontade bem humana de fantasia e abstração, positivamente associada à alegria de viver.  Mais do que uma fonte de prazer e alegria, o impulso ornamental foi compreendido por Owen Jones, autor do mais célebre repertório ornamental, A Gramática do Ornamento, de 1856, como um poderoso “instinto” – hoje precisamos das aspas, é claro – presente em todos os povos e particularmente intenso no homem civilizado.

Os reformistas do design do século XIX tentaram aprimorar os desenhos ornamentais, tornando-os mais abstratos, e controlar a sua utilização segundo os princípios de um novo decorum para os produtos industriais. 

As idéias sobre o ornamento elaboradas pelo inglês John Ruskin, crítico e teórico da arte; pelo arquiteto e escritor austríaco Adolf Loos e pelo arquiteto e também prolífico escritor suíço Le Corbusier marcaram momentos sucessivos do debate. Tentarei mostrar como a evolução do debate alterou drasticamente a percepção dos artesanatos, da exaltação dos ofícios artesanais tradicionais por Ruskin, à admiração dos artesanatos modernos por Loos, à radical condenação destes por Le Corbusier.

John Ruskin: o ornamento revolucionário

A contribuição de John Ruskin (1810-1900) para o debate moderno sobre o ornamento é inestimável – tema que atravessa os seus numerosos e influentes ensaios sobre pintura, arquitetura, economia e política.  Suas idéias se tornaram uma fonte constante de referência para todos aqueles que refletiram sobre o assunto na modernidade. Elas foram decisivas para o surgimento do Art Nouveau; contribuíram de modo substancial para a reforma do design industrial – ainda que Ruskin não acreditasse que o design pudesse ser totalmente reformado; influenciaram a trajetória do artista e escritor William Morris e do Movimento de Artes e Ofícios; fomentaram a criação de oficinas artesanais em diversos países na Bélgica, na França, na Alemanha e na Áustria.
   
O interesse atual crescente pelas idéias de Ruskin deve-se ao ressurgimento dos ofícios artesanais, inclusive nas metrópoles, contrariando as certezas modernistas amplamente difundidas a partir dos anos 1930 sobre o anacronismo e a irrelevância do trabalho artesanal no mundo industrial moderno. A intensificação da consciência ecológica também contribui para a reavaliação positiva da obra de Ruskin: as suas críticas ao consumismo, à produção ilimitada e ao vandalismo cultural da expansão capitalista fazem sentido hoje. A crítica de Ruskin aos ornamentos industriais não se limitou apenas a seus aspectos estéticos, uma vez que, para ele, estes aspectos eram indissociáveis de questões econômicas, morais e religiosas.

Ruskin reagiu com toda a força à transformação dos ornamentos em formas livremente agenciáveis, infinitamente repetidas pela indústria e espalhadas sem maiores critérios sobre os objetos e a arquitetura. Segundo ele, a repetição sem variação gerada pela indústria era incompatível com a arte do ornamento. A reprodução fiel dos ornamentos era menos importante do que a contribuição de cada artesão ao progresso infinito desses padrões. Segundo Ruskin, a industrialização interrompeu a mutação dos padrões ornamentais, fixando-os e esvaziando-os de seu potencial expressivo. Ela impedia o investimento de alegria e vitalidade, essenciais ao surgimento da beleza. Apenas os ornamentos realizados artesanalmente eram capazes, segundo ele, de trazer para o mundo dos homens um tanto da variedade, que na natureza, é fonte constante de encantamento. A mecanização substituiu a variedade conquistada pelo trabalho artesanal por uma tenebrosa monotonia.

Para Ruskin a divisão e a mecanização do trabalho vieram acentuar o processo de desvalorização do trabalho artesanal em marcha há alguns séculos. Desde o Renascimento, a ornamentação vinha sendo reduzida à imitação e à aplicação de padrões fixos, tornando o trabalho do artesão cada vez mais subserviente à perfeição do desenho. A intolerância em relação às mínimas transformações individuais dos padrões ornamentais tornou-se cada vez maior.  Ruskin achava que o mérito das formas inventadas pelo espírito gótico não estava apenas em serem novas, “mas em serem capazes de uma perpétua novidade” (4). Estética vitalista, e não formalista.

Mais do que a vitalidade da forma e do desenho, aprendeu-se a valorizar a sua perfeição. A mecanização da produção levou a perfeição do acabamento à sua potência máxima e ela se tornou um critério fundamental para a apreciação dos objetos. Isso resultava de uma ausência de sensibilidade cada vez mais acentuada para apreciar as variações e irregularidades.

Ruskin chamou de “ornamentos revolucionários” – em oposição aos ornamentos servis – aqueles ornamentos em cuja realização a diferenciação individual das formas era não apenas permitida, mas estimulada. A ornamentação revolucionária caracterizou,  segundo ele, a arte gótica. O trabalho artesanal representava uma enorme força de resistência e transformação que precisava ser posta novamente em marcha contra a repetição banalizadora.

Segundo ele, os ornamentos industriais aplicados à arquitetura comprometiam a finalidade prática das construções com inúmeros efeitos visuais incrivelmente feios senão ridículos. Irresponsavelmente disseminados na arquitetura urbana, levavam à banalização e ao esvaziamento do potencial expressivo das formas ornamentais e à corrupção da beleza.

Mas não era apenas o modo como o trabalho da ornamentação havia sido transformado pelas práticas industriais que preocupava Ruskin. A agitação e a confusão cada vez mais intensas da vida urbana transformavam também a natureza do olhar, tornando a contemplação dos ornamentos remota e improvável. Ruskin sugeriu que os ornamentos artesanais fossem preservados da agitação urbana, sendo expostos somente naqueles lugares onde podiam ser observados com atenção: longe do mundo do trabalho, onde não seriam vistos, e do mundo do comércio, onde seriam vistos desatentamente.
   
Os lugares apropriados ao ornamento

A convicção de Ruskin contraria o senso comum que costuma supor que os ornamentos podem e devem ser olhados desatentamente, merecendo apenas a periferia do olhar. Supõe-se correntemente que os ornamentos podem ser notados, mas não devem ser realmente vistos, como os acessórios, as molduras dos quadros.

Num mundo em processo de desencantamento, os ornamentos eram, para Ruskin, uma espécie de refúgio do sagrado, e deviam ser protegidos do avanço da racionalização e da supremacia dos valores comerciais sobre todos os outros. A sacralidade do ornamento nada tinha a ver com a utilização de símbolos associados ao imaginário cristão, mas com a vitalidade das formas inspiradas na natureza que expressavam, na sua infinita variedade, a potência divina.

Segundo ele, os lugares adequados à ornamentação eram preferencialmente aqueles onde as pessoas podiam encontrar momentânea ou regularmente a tranqüilidade indispensável à contemplação, fossem eles pequenos recantos como fontes de água, prédios públicos como igrejas, ou cidades inteiras como Veneza, pelas quais se passeia com tranqüilidade nas gôndolas.

Os lares eram um lugar privilegiado para os ornamentos, mas com restrições. Ruskin alertou os seus leitores contra os riscos da ornamentação não criteriosa (ou bricabracomania, na expressão do escritor francês Edmond de Goncourt). Em hipótese alguma a ornamentação dos lares deveria ser confundida com a aquisição compulsiva e aleatória de ornamentos industriais de má qualidade.  Segundo ele, a insatisfação gerada pelo trabalho monótono, realizado sem prazer ou alegria, era canalizada para o consumo de ornamentos cuja promessa de satisfação e beleza era totalmente ilusória. Os lares deixavam de ser redutos de conforto e tranqüilidade para se tornar caricaturas do mundo exterior. Algum vazio segundo ele era muito mais recomendável do que o preenchimento total dos espaços. A ascese de Ruskin ilustra a fórmula de Walter Benjamin, segundo a qual os estilos modernos são caracterizados pela predominância do vazio sobre o cheio.

Uma ética do consumo 

Ruskin introduziu uma nova ética do consumo. Ele difundiu critérios – não apenas estéticos e funcionais – na avaliação da enorme quantidade de ornamentos produzidos na  Inglaterra. Se a beleza formal e a perfeição do acabamento eram insuficientes, os ornamentos deveriam ser escolhidos em função da vitalidade com que eram capazes de trazer a beleza das formas naturais para o convívio humano. Tal vitalidade dependia evidentemente de como os ornamentos haviam sido fabricados, se estavam ou não impregnados da inquietação bem humana de quem os realizou. Ele chamou a atenção de seus contemporâneos para determinados critérios de apreciação da beleza que estavam sem segundo plano, como a irregularidade das formas e a relativa impureza dos materiais. Segundo ele, o vidro veneziano era superior ao inglês, pois o artesão veneziano estava menos preocupado com a transparência absoluta e com a perfeição do acabamento que em exercitar livremente a sua habilidade e a sua imaginação. A pureza e o primoroso acabamento do vidro inglês revelavam, acima de tudo, segundo ele, o cárcere do artesão.

Embora tenha preconizado o repúdio aos ornamentos industriais,  Ruskin não era contrário à industrialização, mas ao avanço da industrialização sobre todas as atividades criativas do homem. Ele aceitava plenamente a industrialização como substituta do trabalho humano na realização daquelas incontáveis tarefas mecânicas que jamais haviam sido e jamais seriam fonte de prazer e alegria.

Suas críticas aos ornamentos industriais tinham vários pontos em comum com as críticas de arquitetos e artistas-industriais envolvidos na reforma do design. Um exemplo é a sua condenação daquele tipo de ornamentação que visava a enganar quanto à natureza dos materiais utilizados e quanto à própria estrutura da construção. Ele chamava de “ficção arquitetônica” o trabalho da ornamentação que não explorava as qualidades específicas dos materiais, mas se afirmava como um meio corrente de fazê-los parecer mais nobres e raros do que realmente eram.

Ao contrário de outros reformistas do design como Owen Jones, Lewis Day e Eugène Grasset, Ruskin não elaborou regras progressivas de estilização e abstração para os desenhos realizados a partir de modelos naturais. O importante era que a intensidade da observação cedesse à liberdade e à expressividade do traço. Enquanto os “gramáticos do ornamento “ como Charles Blanc e Jean Bourgoin compreenderam o trabalho do artista ornamental em termos de agenciamento e distribuição de padrões segundo os princípios da repetição, da alternância, da simetria e da progressão, independentemente dos padrões escolhidos, para Ruskin a escolha dos padrões era fundamental. Os padrões genuinamente ornamentais foram definidos por Ruskin segundo a sua inspiração natural e a sua liberdade expressiva. O desafio da arte ornamental era enorme: reintroduzir na vida humana imagens de uma natureza idílica e poderosa que desaparecia como paisagem e como idéia.

Os temas desenvolvidos por Ruskin definiram o eixo central do debate moderno: a analogia entre ornamento e natureza; a triagem entre ornamentos falsos e verdadeiros; a reeducação do olhar: a exigência ascética posta em marcha; a expectativa de progresso social através de controle da produção e difusão dos ornamentos. A expectativa ruskiniana de que os ornamentos fossem focos de resistência ao desencantamento do mundo não chegaram ao século XX, mas a sua compreensão dos ornamentos como diferenciações imprevisíveis das formas e matérias é ainda hoje revolucionária.

Adolf Loos: o ornamento como submissão

O arquiteto austríaco Adolf Loos ( 1870-1933 ) travou uma verdadeira batalha contra o ornamento, principalmente através da publicação de dezenas de artigos em revistas e jornais de grande circulação. Loos esteve atento às diversas manobras ornamentais na arquitetura, no mobiliário, no vestuário e seus acessórios, nos utensílios e nos carros, assim como na linguagem, nos hábitos de higiene e nas regras de polidez. Ele procurou alertar os seus contemporâneos para os focos de ornamentação num mundo cuja modernidade, segundo ele, dependia da determinação em expulsá-los. Loos considerava a sua atividade crítica tão importante quanto as suas atividades como arquiteto e “instalador de ambientes“ (expressão que ele preferia a decorador ). De fato,  seus artigos e manifestos foram decisivos para a auto-definição do modernismo.

Embora a produção expressiva dos ideais ascéticos do modernismo nunca tenha se tornado majoritária, e isso ao longo de todo o século XX, ao final da vida Loos avaliou positivamente o resultado do seu grande esforço bélico:

     Saí vitorioso de um combate de trinta anos: livrei a humanidade do ornamento supérfluo. Houve um tempo em que o ornamento era sinônimo de belo; hoje, graças à obra da minha vida, essa palavra é sinônimo de medíocre. (5)

Nenhum outro autor é tão citado quanto Loos quando se trata de identificar a aversão moderna ao ornamento. O seu manifesto Ornamento e Crime, mais citado, é apenas um dentre tantos artigos sobre ornamento.

Os nervos modernos, segundo Loos, eram incapazes de suportar os ornamentos. Se, para Ruskin, a agitação urbana tornou a percepção moderna apressada e desatenta, para Loos, ao contrário, a estimulação constante fez os homens mais delicados e exigentes, extremamente sensíveis a todas as coisas. A hipersensibilidade moderna fez que os homens encontrassem estímulo estético não nos ornamentos, mas na sua ausência. Os ornamentos deviam desaparecer porque a focalização do olhar sobre eles tornava-os surpreendentemente desagradáveis e incômodos.

Para Loos os ornamentos não eram intoleráveis apenas esteticamente, mas sobretudo do ponto de vista ético. A aproximação entre ética e estética na argumentação de Loos retoma algumas questões ruskinianas das quais, à primeira vista, o arquiteto austríaco parece muito afastado. Segundo Loos, os ornamentos eram rigorosamente incompatíveis com as aspirações modernas, pois a sua realização dependia de várias formas de submissão: a submissão do artesão ao arquiteto ou ao artista; a submissão dos materiais aos desenhos realizados nas pranchetas ou escolhidos nos repertórios ornamentais; submissão das necessidades do presente às formas do passado; da vida familiar às escolhas e preferências do arquiteto e decorador, no sentido de os habitantes da casa decorada perderem a liberdade de fazer mudanças ou de introduzir objetos que seriam as marcas de sua vivência – esse tipo de submissão do cliente ao esquema decorativo do arquiteto tão comum hoje em dia.   
   
A submissão do artesão ao arquiteto

Loos destacou em primeiro lugar a submissão na esfera do trabalho. Os ornamentos eram freqüentemente realizados por artesãos experientes a partir de projetos realizados por artistas ou arquitetos, profissionais com mais prestígio social, embora não necessariamente capazes de encontrar as soluções realmente adequadas aos materiais utlizados ou às necessidades de seus clientes. Segundo Loos, arquitetos e artistas pensavam exclusivamente em termos gráficos, mergulhados como estavam nos repertórios ornamentais das bibliotecas das escolas de artes decorativas, num mundo distante das oficinas artesanais. Os projetos eram tiranicamente impostos aos artesãos, sem que estes pudessem contribuir senão mecanicamente para a sua realização. A sua experiência profissional era desconsiderada. Ornamentos assim realizados eram incompatíveis com o espírito moderno.

Livres da influência de arquitetos e artistas, os artesãos eram capazes, segundo Loos, de criar uma linguagem moderna para os objetos. Os artesãos faziam o que precisava ser feito, ou seja, procuravam investigar as qualidades de cada material de modo a atender às necessidades objetivas de seus clientes. Embora não estivessem preocupados em criar coisas absolutamente novas, os artesãos eram, segundo ele, insuperáveis na criação de formas genuinamente modernas, mais simples e despojadas. O segredo da sua “modernidade espontânea”, se podemos dizer assim, estava no alto grau de intimidade com os materiais. A sua espontaneidade estilística se assemelhava a uma caligrafia que expressa a personalidade de seu autor e o seu tempo de modo quase involuntário. Segundo Loos, uma  linguagem não ornamental própria à modernidade, livre da interferência dos artistas decorativos, desenvolvia-se silenciosamente nas diversas oficinas artesanais, de vidro, cerâmica, marcenaria, joalheria etc...

    Os objetos artesanais integram-se tão bem ao estilo do nosso tempo por que não os consideramos objetos de estilo; este é o único critério decisivo para pertencer a uma época. Estão intimamente misturados ao nosso pensamento e à nossa sensibilidade. (6)

A emancipação dos materiais exigia por parte do artesão a compreensão daqueles procedimentos não apenas adequados, mas exclusivos ao seu trabalho. Segundo Loos, o artesão deveria levar adiante as técnicas habitualmente utilizadas pelo seu próprio ofício, sem considerar a adaptação de técnicas estreitamente associadas à realidade de outros ofícios e ao desenvolvimento da linguagem plástica de outros materiais. Nada era mais moderno, segundo Loos, do que a máxima concentração nas particularidades dos materiais e nos métodos que haviam sido desenvolvidos para a sua transformação no processo de fabricação dos objetos.

Ruskin enfatizou o ornamento capaz de preparar o homem para a percepção da beleza e da vitalidade das formas naturais. Os ornamentos realizados pelos artesãos a partir da observação da natureza, eram para ele uma glorificação da criação divina. Loos não julgava absolutamente necessário que o artesão buscasse inspiração na natureza, desde que não temesse explorar as possibilidades plásticas dos materiais e técnicas que fazem parte do seu ofício.  Gosto muito dessa passagem do artigo Cerâmica:
     

      O ceramista não vê flores. Não gosta delas. Não conhece as suas cores. Mas a sua alma está cheia das cores que só podem existir nos esmaltes de suas cerâmicas... Ele está sentando diante do forno e espera. Sonhou com as cores que o Criador esqueceu de sonhar, nenhuma flor, nenhuma pérola, nenhum bronze tem cores como as suas. E todas essas cores devem se tornar realidade, devem reluzir e se irradiar, enchendo os homens de alegria e melancolia. (7)

Para Loos os esmaltes que cobriam as peças dos ceramistas não eram ornamentos, pois resultavam de uma pesquisa realizada pelo artesão, com técnicas e materiais próprios. Loos se recusava a considerar ornamentais os recursos e procedimentos específicos de cada ofício; eles permitiam que os materiais expressassem a sua própria linguagem, cumprindo ao artesão liberá-la de toda influência externa. A cruzada antiornamental de Loos exaltou os artesanatos modernos – essa é uma contribuição importante de Loos que os seus comentaristas raramente enfatizam. Cada artesão contribuía para a elaboração do estilo moderno caracterizado pela simplicidade e pelo despojamento.

Perversão ornamental

No seu famoso manifesto Ornamento e Crime, Loos procurou assustar os seus contemporâneos que pareciam ainda insistentemente apegados aos ornamentos. Enquanto em textos anteriores a sua argumentação era incisiva, porém relativamente sóbria, nesse manifesto Loos lançou mão de imagens extremamente negativas para transformar em desprezo a admiração pelo ornamento. Não se tratava apenas de atacar os ornamentos, mas de condenar o impulso que os fazia surgir. Os reformistas do design ingleses e franceses, sempre muito críticos em relação aos procedimentos ornamentais desenvolvidos pela industrialização, jamais duvidaram que os ornamentos correspondessem a uma necessidade criativa absolutamente natural e legítima; para Owen Jones esta necessidade era ainda mais imperativa no homem civilizado. Loos reconhecia como legítimo o impulso artístico, mas estava convencido de que, no mundo moderno, o impulso ornamental era mal dirigido e essencialmente perverso. O seu contemporâneo Sigmund Freud distinguiu entre a sexualidade dos adultos relativamente saudáveis e as perversões sexuais, ambas derivadas de uma mesma pulsão erótica. Para Loos a pulsão artística também tinha um componente criativo/erótico que podia ser canalizado de modo maduro para a pintura e escultura, ou, de modo infantil e perverso para a ornamentação de objetos úteis. A ornamentação dos objetos úteis, domínio das artes decorativas revelava grande imaturidade estética, segundo Loos.

O principio do revestimento

Para Loos, aqueles que se abstém de ornamentar ou de consumir ornamentos revelam controle sobre os seus impulsos e a firme determinação de viver na modernidade. Os artesãos austríacos deveriam eleger como modelo para o seu trabalho a produção artesanal cujo empenho em expulsar os ornamentos encontrava-se no estágio mais avançado possível para o seu tempo. Segundo ele, a contribuição da alfaiataria, mais especialmente da alfaiataria inglesa era então insuperável na elaboração de uma linguagem estética genuinamente moderna. Artesãos, mas também arquitetos, deveriam se mirar nas conquistas do vestuário masculino: “É preciso que as casas estejam de acordo com as nossas roupas.” O vestuário masculino, a partir do qual Loos pretendeu definir os princípios da arquitetura moderna, era caracterizado pela máxima sobriedade e elegância. O homem bem vestido não se preocupava com originalidade ou com a beleza de suas roupas, mas com a sua estrita conveniência às ocasiões sociais. A elegância era resultado da interação entre a  exigência de simplificação e o conhecimento essencialmente prático dos alfaiates. O corte impecável deveria acentuar a qualidade sóbria dos tecidos, livre das flutuações da moda. Os tecidos sóbrios e bem talhados para o corpo do homem serviram de modelo ao famoso do “princípio do revestimento” de Loos. Na arquitetura o princípio do revestimento deveria substituir definitivamente as práticas ornamentais. Enquanto os ornamentos pretendiam enganar quanto aos materiais de eram feitos, ou quanto à estrutura que os sustentava, os revestimentos não pretendiam esconder coisa alguma, mas contribuir com a sua própria beleza natural para a harmonia do conjunto. A própria pele pode ser compreendida como um revestimento natural do corpo. Na arquitetura os revestimentos realizados com placas de matérias nobres como pedra ou madeira, apresentavam uma beleza ao mesmo tempo rica e austera. A beleza dos materiais naturais não apenas dispensava como inibia a presença de padrões decorativos e ornamentais.

O trabalho do revestimento consistia em escolher adequadamente os materiais que iriam forrar os diversos ambientes: madeira para a sala de estar, mármore para o hall ou banheiro imponentes e eventualmente peles de animais para o quarto do casal. Loos não considerava esses revestimentos como ornamentos, embora esse procedimento ornamental tenha sido amplamente usado no passado – como por exemplo entre os antigos romanos. Em busca de uma elegância neoclássica moderna livre porém de padrões ornamentais, Loos introduziu a idéia de que há determinadas formas de acabamento que trazem beleza e conforto para a arquitetura, mas que não devem ser consideradas ornamentais – a positividade dos materiais afasta a negatividade dos ornamentos.

Seguindo a pista do antropólogo criminalista Cesare Lombroso, Loos condenou a tatuagem: "O homem tatuado que ainda não cometeu um crime, vai cometê-lo." Para Loos a tatuagem era acima de tudo uma agressão frontal ao princípio do revestimento,  pois gravava na pele desenhos estereotipados extraídos de repertórios especializados, análogos aos repertórios ornamentais, quando justamente a própria pele deveria servir de exemplo à ornamentação moderna.

Distinção

Loos transferiu os ornamentos da esfera da beleza para a da elegância. A ausência de ornamentos passou a ser reconhecida como um signo de modernidade e de distinção.  Desde Viollet le Duc uma elegância moderna se preparava:

    O verdadeiro luxo é aquele que, sob aparente simplicidade, mostra elegâncias que não poderiam ser imitadas com a ajuda de meios grosseiros. É o que se chama distinção, modos sensatos, discretos e simples, privilégio de alguns poucos, independentemente da riqueza e do nível social. (8)

É difícil compreender hoje, especialmente os menores de 30 anos, a aproximação entre tatuagem e crime, pois os não-tatuados somos hoje talvez minoria.. Mas de fato, esse modelo ideal da pele não contaminada, revestimento perfeito do corpo, foi determinante para o modernismo. Do mesmo modo, hoje, quando a elegância cede lugar a tantos outros valores no código vestuário, como o conforto, a descontração, a ironia, a juventude, mas principalmente a expressão da identidade das várias tribos urbanas, pode-se ter dificuldade em compreender a elegância da alfaiataria inglesa como modelo para a arquitetura, o design e os artesanatos. Mas assim foi.

Embora grande admirador dos artesanatos modernos, Loos era veemente contra as artes decorativas, e não apreciava nem um pouco a produção dos artistas Art Nouveau ou do Ateliê Vienense. Era contra todo amálgama entre a arte e utilidade. Por vezes é mesmo difícil compreender a sua condenação de algumas realizações extremamente elegantes e refinadas do Ateliê Vienense. 

Loos depositou a sua esperança de progresso no campo dos ornamentos sobre os artesãos anônimos que silenciosamente perceberam que a busca da beleza deveria ser descartada em favor da elegância. Loos clamou por uma diferenciação minimalista das formas e dos materiais – em oposição à diferenciação expressionista proposta por Ruskin -- clamando por uma música suave para os nervos estressados dos cidadãos urbanos.

O trabalho têxtil de Annie Albers que teve origem na Bauhaus ilustra bem as premissas dessa pesquisa moderna. Nele a beleza não surge da aplicação de padrões decorativos sobre o tecido, mas das variações possíveis da própria trama que estrutura o tecido.  Annie se tornou uma proeminente designer industrial, porém sempre admitiu o papel determinante do aprendizado artesanal na sua formação. Ela jamais abandonou o tear manual. Não tenho espaço aqui para me estender sobre o seu trabalho, mas ele é muito expressivo da riqueza ornamental estimulada pelas restrições ascéticas do modernismo. O mesmo é válido para o trabalho do designer têxtil norte-americano Robert Larsen, um entusiasta dos procedimentos artesanais, e colecionador rigoroso dos artesanatos modernos e contemporâneos. Observamos uma beleza semelhante nos tecidos artesanais contemporâneos do carioca Renato Imbroisi, com ateliê em São Paulo.

Le Corbusier: a elegância antiornamental da máquina

Em seus escritos sobre o ornamento reunidos em A arte decorativa, de 1925,  Le Corbusier, pseudônimo do suíço Charles-Edouard Jeanneret-Gris ( 1887-1965), retomou os temas loosianos do rompimento da arte com o utensílio e da ascese ornamental dos objetos.

Le Corbusier tinha confiança inabalável no progresso tecnológico –  confiança que perdemos após tantos desastres tecnológicos de grande magnitude –  e era profundamente orgulhoso das conquistas do mundo industrial. O pragmatismo contemporâneo percebe o novo como um problema novo, e não com admiração cega. Mas, para Le Corbusier, a industrialização contribuia para eliminar as diferenças entre indivíduos, classes sociais, comunidades regionais e nações. Se a revolução industrial não havia promovido a igualdade de poder ou a igualdade econômica, ela permitia a igualdade na utilização dos objetos produzidos em larga escala, concebidos por desenhistas industriais e engenheiros para desempenhar com perfeição funções específicas. As indústrias puseram ao alcance de todos uma grande variedade de objetos funcionais bem desenhados que eram consumidos e utilizados por pessoas de diferentes classes sociais em diversos cantos do mundo. Le Corbusier não considerava a industrialização apenas como uma força capaz de transformar o mundo de modo rápido e imprevisível, mas como um meio privilegiado de que a humanidade finalmente dispunha para reconhecer a sua própria identidade.

Le Corbusier atribuiu ao designer, com formação semelhante à do engenheiro, as seguintes tarefas: identificar, dentre as atividades realizadas por homens e mulheres, as mais recorrentes; compreender o mecanismo subjacente a estas atividades; criar objetos capazes de substituir os gestos humanos ou torná-los menos desgastantes na realização destas atividades; determinar a forma industrial mais apropriada a este objeto, procurando associar máxima eficiência à máxima simplicidade das linhas. De modo a atender as necessidades-tipo, os desenhistas industriais deveriam criar os "objetos-tipo". A estes, resultantes da pesquisa “científica” do designer, Le Corbusier opôs os "objetos-sentimento" ou "objetos-vida", criados por artistas decorativos e estimulados pelos organizadores da Exposição Internacional de Artes Decorativas realizada em Paris em 1925, e que consagrava o estilo Art Déco ( madeiras raras, geometria exuberante, influência africana, feitura artesanal de luxo).

Os objetos-tipo tinham por função tornar mais fácil o que havia de propriamente mecânico em nossas atividades e tarefas cotidianas. “Cadeiras para sentar, mesas para trabalhar, aparelhos para iluminar, máquinas para escrever....fichários para classificar”. Os objetos-vida ou objetos-sentimento, criados pelos artistas decorativos, em nada contribuíam para aliviar as necessidades-tipo, pior, perturbavam o seu bom andamento.

Assim como Ruskin, mas por razões diversas, Le Corbusier achava que os ornamentos deveriam ser abolidos do mundo do trabalho, a ser caracterizado pelo despojamento, condição essencial à concentração; somente os objetos-tipo relacionados a atividades fundamentais do escritório poderiam permanecer: mesas, telefones, fichários, pranchetas e luminárias. Isso porque o trabalho genuinamente moderno era realizado em escritórios bem iluminados, isolados do barulho ensurdecedor da linha de montagem e da movimentação atordoante do comércio.

A arte decorativa sem decoração

Contrariamente a Ruskin, Le Corbusier não acreditava que a casa fosse o lugar privilegiado da contemplação, o refúgio dos ornamentos no mundo moderno. A máquina de morar incluía apenas móveis e utensílios estritamente necessários segundo os critérios da higiene e da eficácia. “A arte decorativa moderna não tem decoração” afirmou. (9)

A presença da decoração nos objetos cotidianos era um inconveniente intolerável. Em vez de perseguir o luxo incômodo e anacrônico, a casa moderna deveria se caracterizar pelo      “conforto mecânico, discreto, mudo e eficiente”, o despojamento sendo tão importante em casa como no escritório: “a máquina é um acontecimento tão capital na história humana que é permitido designar a ela um papel de condicionamento do espírito(.... ) A máquina opera uma reforma do espírito.”

Se a decoração tinha a função de primordial de camuflar a má qualidade dos materiais utilizados na fabricação dos "equipamentos”, o espírito crítico  moderno manifestava-se  esteticamente por meio da simplicidade. Visível tanto nos utensílios produzidos em larga escala e consumidos por todas as classes sociais, quanto nos objetos de luxo. Le Corbusier reconhecia nos objetos de couro da marca de luxo Hermès uma simplicidade pioneira. A ascese modernista mudava a face do consumo ostentatório: em vez dos materiais caros e do perfeccionismo artesanal, tubos de aço e paredes caiadas de branco. Nas sociedades democráticas dominadas por tensões de classe, a elegância deveria consistir justamente em não ostentar, em escolher para si, com discernimento, a qualidade sob a aparência da simplicidade.

Le Corbusier foi muito mais radical no ascetismo do que Loos, eliminando revestimentos de pedra e madeira raras e nobres e fazendo que os interiores totalmente caiados de branco acompanhassem o despojamento das fachadas. A elegância ascética tornou-se uma qualidade da arquitetura moderna mais genuína.

 


Comentários

Gilberto Paim
19/08/2012

Caro Mario, obrigado. Voce pode ler a segunda parte do ensaio também em Agitprop. Uma bibliografia mais completa sobre o tema você encontra no meu livro A beleza sob suspeita, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro. Um abraço, Gilberto.

Mario Fiore Moreira Jr.
16/08/2012

O artigo "O Ornamento no Centro de um Debate Moderno (I)" é muito interessante, muito bem escrito, porém parece que está incompleto no site. Tenho interesse em conhecer as fontes bibliográficas e as notas citadas ao longo do texto, para apreciar a leitura completamente. Como eu poderia obter estes dados? Grato, Mario Fiore

Envie um comentário

RETORNAR