Ano: I Número: 4
ISSN: 1983-005X
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O ornamento no centro de um debate moderno (II)
Gilberto Paim

Alguns críticos do ornamento gerado pela revolução industrial tinham uma outra expectativa para o ornamento, mais central e comprometida com as coisas do mundo. Amante da arte gótica, John Ruskin condenou severamente a captura industrial do ornamento em favor do artesanato que jamais é mera repetição, pois guarda os traços singulares de quem o realizou.  No debate moderno o ornamento não foi condenado segundo os termos do senso comum, ou seja, como um complemento de beleza que eventualmente atrai demasiada atenção sobre si mesmo, mas por ter se afastado da experiência da arte, por ter se recusado a participar da gênese das formas e a misturar-se genuinamente aos materiais. Como uma sombra que paira sobre as coisas, o ornamento perdeu a sua função de portador de beleza, privando-nos de estímulos à nossa alegria de viver. O ornamento foi condenado por ceder infantilmente ao medo do vazio, por espalhar-se exageradamente na paisagem urbana, por tornar os nossos lares caricaturas do mundo exterior: confusas e poluídas.

A intensa reflexão crítica desempenhou a dupla função de inibir e fomentar a produção ornamental. De modo a evitar as soluções “meramente decorativas” os novos regimes ornamentais descartaram os padrões previamente repertoriados.

Ao perseguir o grau zero do ornamento como uma miragem sempre inalcançável, o trabalho da ornamentação foi liberado da repetição dos desenhos ornamentais. O modernismo potencializou aquilo que é inalienável no homem e essencial ao trabalho da ornamentação, ou seja, a investigação das mínimas possibilidades de diferenciação das formas e dos materiais, sempre possíveis, mesmo sob a pressão do ascetismo mais rigoroso ou de modo a atender as exigências extremas desse ascetismo.

Essas transformações mínimas e ao mesmo tempo infinitas das formas e materiais nada têm de espetacular ou de generalizável e dificilmente se desprenderiam das coisas para se transformarem em imagens de repertório. A plena apreciação das novas modalidades ornamentais envolveu o aperfeiçoamento de um olhar que também é tátil – isso é o que procurarei mostrar em relação à cerâmica artesanal moderna que desenvolveu novos procedimentos ornamentais sem lançar mão dos padrões decorativos previamente repertoriados.  O sulco irregular que os dedos ou um instrumento imprimem sobre a porcelana não pode ser realizado sobre a madeira mais macia. Não é apenas uma linha, mas um gesto e uma força agindo sobre uma matéria, a qual reage a este gesto de modo singular, fazendo variar a qualidade da superfície e a incidência de luz sobre ela.

O desnudamento ornamental moderno significou mais do que a negação dos padrões previamente repertoriados. A nudez foi caracterizada por uma intensa positividade. Houve mesmo uma exaltação dessa nova nudez corajosamente conquistada.  Se muitos procedimentos ornamentais foram evitados pelos modernistas, novos procedimentos foram inventados, e outros muito antigos foram recriados de modo a expor os materiais na sua enigmática nudez. Nada há de natural nesta nudez. De todos os artifícios ela é o mais requintado, o ornamento sublime, cujo dom consiste em parecer absolutamente natural no mundo agoniado pelos artifícios. Sobre o ornamento sublime a fórmula secular de Longino é ainda hoje insuperável: “O ornamento parece ser o melhor quando o fato de haver ornamento permanece oculto”.

O movimento moderno de cerâmica

A vertente do movimento moderno de cerâmica sobre a qual vou me deter privilegiou o despojamento ornamental tão enfatizado pelo modernismo. Além disso, ceramistas como Bernard Leach, Lucie Rie, Hans Coper e Alev Siesbye desenvolveram as suas linguagens plásticas sem abrir mão da idéia ancestral do recipiente, tão essencial à história da cerâmica. Não abordarei aspectos de uma outra produção artesanal moderna, igualmente rica, porém distante do recipiente em prol da escultura. O que nos interessa é a aproximação entre os artesanatos e o design, mais do que a aproximação entre os artesanatos e as artes plásticas que dependeria de um outro recorte, sobre o qual o debate moderno sobre o ornamento tem pouco a esclarecer. 
    
Bernard Leach: ceramista e escritor

Bernard Leach (1888-1978) é conhecido não apenas por sua obra em cerâmica, colecionada pelos principais museus de arte aplicada em todo o mundo, mas também por seus inúmeros escritos. Ele publicou o seu terceiro livro, um manual para ceramistas, intitulado OLivro de Ceramista, em 1940, em plena Segunda Guerra. Momento bastante impróprio para discutir a estética da cerâmica e revelar ao Ocidente técnicas que Leach aprendera na China, na Coréia e no Japão entre 1909 e 1920, e que praticava regularmente em sua oficina em Saint Ives na Cornuália, Inglaterra. Surpreendentemente, porém, o interesse pelo livro foi enorme, levando a mais de vinte edições e reedições, assim como a traduções em várias línguas, infelizmente, não em português. Suas idéias são quase sempre consultadas pelos que se interessam pelos artesanatos modernos e contemporâneos, sejam historiadores e críticos de design e artesanato – como Peter Dormer  e Paul Greenhalgh – sejam historiadores e críticos de arte como Edward Lucie Smith e Peter Fuller.

O Livro do Ceramista resistiu bravamente ao encerramento do debate moderno sob a égide das fórmulas anti-artesanais de Le Corbusier. Desde William Morris e Emille Gallé um artesão não se pronunciava tão apaixonadamente em defesa de suas próprias idéias e convicções. Embora muito influenciado por Ruskin e Morris, Leach não se limitou, entretanto, a confirmar as premissas do Movimento de Artes e Ofícios, mas se empenhou em corrigir suas distorções no século vinte. Segundo ele, os ofícios artesanais precisavam se livrar com urgência do sentimentalismo e do idealismo vagos que levaram à corrosão dos critérios de qualidade. Se os artesanatos ainda tinham um lugar no mundo moderno, esse lugar só poderia ser conquistado por meio do empenho máximo na conquista de critérios de qualidade.

Profissionalismo x amadorismo
   
Leach reconheceu a degradação dos artesanatos modernos, dominados pelo amadorismo. Num certo sentido ele admite algumas críticas de Le Corbusier aos artesanatos modernos, mas sem generalizá-las ou radicalizá-las como o arquiteto suíço. Leach reconheceu a degradação dos ideais do Movimento de Artes e Ofícios nos anos 30 e 40. Ele achava que a formação dos artesãos havia se tornado muito precária e que o tipo de ensino dos artesanatos oferecido pelas escolas de arte era restrito e superficial:

         Os alunos chegam à minha oficina ano após anos, vindos do Royal College of Arts,  da Central School ou de Camberwell para períodos de estágio e aprendizado cada vez menores. Assim que conseguem aprender algo, algo que julgam suficiente, partem para montar a sua própria oficina.(1)

Essa passagem de Leach sempre me lembra de algumas pessoas que ligam para o nosso ateliê perguntando qual a duração do curso e ficam decepcionadas, às vezes até com raiva, quando informamos que o curso pode durar muito mais do que a expectativa delas de alguns poucos meses, quando não de apenas algumas semanas. Esta suposição de que pode se pode fazer cerâmica de estalo, sem esforço e dedicação é muito disseminada, infelizmente. Será que o aprendizado lento de um ofício é incompatível com a aceleração da vida moderna? No entanto em tantas profissões não artesanais o prazo de formação é cada vez mais longo, incluindo sucessivas especializações, pós-graduações etc... A pressa denunciada por Leach nos anos 1940 se agravou. 

Segundo ele, havia uma quantidade enorme de pessoas saindo das escolas especializadas desconhecendo noções elementares da cerâmica: nada entendiam de argilas, do trabalho no torno, da composição dos vidrados, da construção de fornos ou do controle das queimas: uma situação intolerável em qualquer área. A superficialidade do aprendizado inviabilizava, segundo ele, a produção artesanal de qualidade. Muito raramente o talento individual conseguia superar as deficiências de formação.

Leach procurou suprir falhas na formação dos ceramistas apresentando informações técnicas de modo detalhado e bem ilustrado, e simultaneamente discutindo questões estéticas. Ele reuniu uma grande quantidade de informação, por exemplo, sobre a composição dos vidrados de alta temperatura que, na época, eram segredos de ateliê não partilhados. No manual escrito por Leach técnica e estética não estavam meramente justapostas, mas estreitamente associadas. O primeiro capítulo Em Busca de um Padrão de Qualidade é na verdade um ensaio sobre a beleza das cerâmicas artesanais tradicionais.
A “alegria no fazer” dependia em primeiro lugar do aprendizado sólido do ofício. Se a qualidade do artesanato moderno estava comprometida era porque o princípio ruskiniano da “alegria no fazer”, tão celebrado por William Morris em contraposição ao trabalho monótono na linha de produção, vinha sendo confundido com o espontaneísmo amadorístico. Leach se opôs à percepção dos artesanatos como um mundo à parte onde o rigor e o conhecimento não vigoram. O historiador Paul Greenhalgh distingue nos artesanatos modernos o profissional dedicado e freqüentemente obsessivo cujo trabalho dialoga com a história do seu ofício, do amador que pratica um hobby sem se importar muito com critérios de qualidade, assim como os poetas diletantes que escrevem, mas que não lêem poesia. Greenhalgh reconhece que a extensão do amadorismo nos artesanatos é grande a ponto de atrapalhar a percepção do trabalho profissional. Leach se insurgiu contra o avanço do amadorismo sobre os valores profissionais. Costumo distinguir entre artesanatos e ofícios artesanais, pois essa última expressão implica tanto o saber quanto a dedicação profissionais.

Leach não estava tão satisfeito quanto Le Corbusier com a qualidade dos produtos industriais. Segundo ele, a qualidade da produção industrial de cerâmica era irrisória. No entanto, diferentemente de Ruskin, Leach não acreditava que a mecanização fosse incompatível com a qualidade e a beleza. Incompatíveis com a beleza eram o desconhecimento dos designers sobre as possibilidades plásticas específicas da cerâmica e a indiferença estética dos industriais camuflada de prudência capitalista.

          Embora os processos mecânicos sejam maravilhosos – como por exemplo a esmaltação, a limpeza, e  a estamparia automática de muitos milhões de azulejos de banheiro cozidos mensalmente num forno de túnel que nunca se apaga – a sua qualidade é lastimável. O simples fato de terem sido produzidos em massa não justifica o péssimo desenho, tão sem graça e miserável em termos de cor; tampouco as louças feitas em molde: o seu processo de realização é tão exato, tão rápido e com massas tão perfeitas -- isso não é desculpa para formas sem vida, argilas sem vida, impressão litográfica sem vida e pintura laboriosa sem vida.(2)

A maioria esmagadora da cerâmica industrial era, segundo ele, catastroficamente ruim, tanto na forma quanto na decoração. Ele achava que o desinteresse estético do empresário exercia uma pressão negativa sobre a sociedade, fazendo aumentar a apatia em relação aos objetos cotidianos. Por isso era urgente discutir critérios.  

Para Leach, o funcionalismo proposto por Le Corbusier era insuficiente para determinar critérios de qualidade, pois ele ignorava os elementos não funcionais que participam da criação e da utilização dos objetos. Leach era contrário à limitação da fruição estética exclusivamente à pintura e a escultura, proposta pelo arquiteto suíço, pois a funcionalidade não é plena, segundo ele, quando desprovida de expressão, beleza e refinamento. A praticidade das xícaras, bules, pratos e jarras era apenas uma de suas funções na vida humana. Num certo sentido Leach antecipa a crítica do funcionalismo que passou a vigorar a partir dos anos 1970. O sociólogo Jean Baudrillard chamou a atenção para a importância dos aspectos “irracionais” dos objetos. Leach não foi tão longe. A questão principal, para ele, era a definição de critérios de qualidade que poderiam valer tanto para a produção artesanal quanto para a produção industrial, e que não se esgotavam na explicitação máxima da funcionalidade.
   
O padrão extremo-oriental
 
Onde então buscar os critérios se os empresários pareciam imunes à introdução de valores, os designers desconheciam as possibilidades da cerâmica, e os artesãos modernos se mostravam ignorantes do seu próprio ofício? Segundo ele, os critérios deveriam ser buscados na cerâmica realizada ainda artesanalmente segundo métodos tradicionais nos cinco continentes, e mais especialmente no Extremo-Oriente, onde a cerâmica havia alcançado patamares muito elevados, em termos de qualidade técnica, beleza e expressividade.  Não se tratava de folhear repertórios ornamentais ou de copiar as peças nas vitrines dos museus de arte decorativa, mas de aprender in loco com os artesãos tradicionais.  

Leach aprendeu cerâmica no Japão, na China e na Coréia. Passou onze anos no Extremo-Oriente depois de terminar a escola de arte, com especialização em gravura. Ele foi para Tóquio com a intenção de montar uma oficina de gravura e dar aulas. Mas logo se interessou pela cerâmica e teve a oportunidade de aprofundar seu aprendizado com mestres ceramistas que descendiam de famílias de nomes célebres da cerâmica, hoje chamados de “tesouros nacionais”, e em comunidades de produção tradicional. Ele expôs algumas vezes no Japão antes de voltar para a Inglaterra. Juntamente com o historiador da arte Soetsu Yanagi e o ceramista Shoji Hamada, um dos mais célebres do século XX, Leach participou do movimento mingei de revitalização dos artesanatos tradicionais japoneses. Por meio de Leach o ideário de Ruskin e Morris encontrou a estética japonesa, cuja influência, como se sabe, foi decisiva para o modernismo, tanto na arquitetura, na pintura quanto nos ofícios artesanais. Antes de Leach vários ceramistas ocidentais – o mais célebre é Ernest Chaplet – haviam-se interessado pela cerâmica de alta temperatura de origem extremo-oriental. Mas até então os resultados se limitavam à obtenção de vidrados raros e especiais como o “sangue de boi”, gotas de óleo, céladons etc., considerados raros. A busca de luxo e exotismo era a sua motivação mais forte, desvinculada de uma compreensão mais profunda das técnicas e dos valores estéticos extremo-orientais.

Desde as últimas décadas do século XIX, a qualidade ao mesmo tempo sóbria e resistente da cerâmica de alta temperatura (ou grès ou stoneware) passou a materializar a modernidade em cerâmica. O colorido alegre e exuberante das faianças e majólicas européias se revelou distante dos critérios de despojamento e elegância. As cerâmicas chinesas e japonesas mais despojadas passaram ao primeiro plano nas vitrines dos museus de artes decorativas, em detrimento da chinoiserie colorida que durante vários séculos havia sido produzida no Extremo-Oriente principalmente para exportação segundo desenhos criados por artistas europeus. Finalmente o Ocidente passou a apreciar as cerâmicas sóbrias e irregulares que no Japão eram consideradas há três séculos como uma arte plena.

Assim como Ruskin, Leach achava que a cerâmica industrial insistia em confundir beleza com perfeição, oscilando entre a ornamentação detalhista e as superfícies lisas e sem vida, em detrimento de outras qualidades. As cerâmicas extremo-orientais antigas e modernas exibiam, ao contrário, uma grande sabedoria na aceitação da irregularidade da forma e dos vidrados, na utilização expressiva dos materiais naturais, e no desenvolvimento de padrões decorativos abstratos que evocam sutilmente a natureza, sem os detalhes realistas que tanto incomodavam os reformistas do design.
   
O alicerce material da beleza

Para Leach o trabalho de ornamentação, compreendido como portador de beleza, não estava de modo algum restrito à aplicação de motivos decorativos sobre a superfície das peças. Ele tinha consciência de que a beleza e a expressividade da cerâmica dependiam de inúmeras pesquisas e decisões realizadas pelo artesão em sua oficina: relativas às argilas (clara, escura, branca, rosada, cinzenta, porosa, pigmentada, lisa etc.); às técnicas de modelagem (à mão, em placa, no torno, no torno, mas com alteração da forma circular, em moldes etc.); às formas (retas, sinuosas, compostas, simétricas, irregulares etc.); aos vidrados (homogêneo, irregular, opaco, transparente, fosco, brilhante, claro, escuro, com todas as possibilidade de cor em função da temperatura de queima etc.); aos tipos de queima (baixa, média, alta ou altíssima temperatura; combustível a lenha, o óleo, a gás, elétrico etc.);  e às inumeráveis técnicas ditas decorativas  utilização de pincéis, superposição de vidrados, engobes, vidrados sobre engobes, incrustação, carimbos etc.). Uma mesma forma pode mudar completamente dependendo das opções escolhidas em termos de argilas, forma de modelagem, modo de queima, temperatura etc...

O designer e artesão em madeira David Pye afirmou que alguns designers industriais só sabem distinguir entre o “fosco” e o “brilhante”, quando na verdade infinitas nuances táteis/visuais podem resultar da pesquisa experiente de materiais e técnicas de acabamento. (3) O designer italiano Bruno Munari costumava passar aos seus alunos exercícios de “sensibilização das superfícies”, de modo a despertar a sua percepção tátil. Mais recentemente a designer japonesa Masayo Ave tem desenvolvido pesquisa de materiais sintéticos com qualidades hápticas, que estimulam o sentido do tato num mundo cada vez mais dominado pela imaterialidade das imagens.

Leach acreditava que a cerâmica industrial era de má qualidade em parte porque os designers desconheciam as possibilidades plásticas e expressivas da cerâmica e, em parte, porque, para atingir a padronização e a uniformidade em larga escala, descartavam todos os procedimentos não absolutamente controláveis.  No entanto, esta obsessão pela perfeição e uniformidade do acabamento na produção industrial tem sido relativizada recentemente. Há cada vez louças industriais que fazem recurso à irregularidade da forma e da cor, o que não deixa de ser interessante. A cerâmica artesanal passou a inspirar alguns designers de cerâmica e porcelana, revelando que o diálogo entre design e artesanato alcança novo patamar.

Dentre as técnicas de modelagem Leach privilegiou o torno, que proporciona rapidez e regularidade sem exclusão da variedade. É próprio do trabalho artesanal que a diferença na repetição de uma mesma forma possa ser percebida como qualidade e não como defeito. Ao contrário da produção industrial na qual a diferença no interior de uma mesma série é avaliada como erro.

Ele considerava a repetição das formas e dos procedimentos decorativos como uma condição do amadurecimento artístico e profissional. A repetição que costuma ser vista com desconfiança pelos aprendizes e estagiários de sua oficina, favorecia, segundo Leach, uma compreensão íntima e insubstituível das formas e dos padrões ornamentais. A repetição artesanal introduz diferenças voluntárias ou acidentais de grande sutileza, resultantes das flutuações da sensibilidade e do fazer. É verdade que o ethos artesanal que valoriza a repetição está muito distante do culto da experimentação e da novidade que predomina nas escolas de arte. Por vezes é difícil que o aprendiz compreenda a importância da repetição no aprendizado da cerâmica, assim como na música, no teatro, na dança etc.

Assim como Loos, Leach era favorável à sobriedade da forma e da ornamentação. Para ele as mais belas cerâmicas foram feitas durante a dinastia chinesa dos Sung (aproximadamente entre 1000 e 1200) com pouquíssima decoração no sentido comum da palavra. Formas simples, cores suaves e misteriosas: a cerâmica Sung era um exemplo a ser seguido pelos ceramistas modernos que não deviam meramente copiar a sua aparência exterior, mas se esforçar para compreender os seus princípios estéticos fundamentais. Vale lembrar que a cerâmica Sung foi uma influência significativa na oficina de cerâmica da Bauhaus, cujos mestres e alunos pesquisaram as técnicas de alta temperatura. A inspiração Sung se manifesta, por exemplo, nas criações da francesa Marguerite Wildenhain, formada pela escola, tanto nos seus desenhos para fábricas alemãs de porcelana, quanto nos objetos utilitários e decorativos que realizou posteriormente nos Estados Unidos.

Em vez do minimalismo frio privilegiado por Le Corbusier, Leach buscava um minimalismo quente. Ele não conhecia na língua inglesa uma tradução para o juízo estético japonês shibui, que designa algo ao mesmo tempo austero, simples e calmo. A beleza shibui é uma característica dos utensílios realizados por artesãos anônimos que conhecem intimamente as técnicas, as formas e os materiais e trabalham sempre de modo despreocupado e espontâneo.   

Atualmente os ceramistas costumam ser refratários às idéias de Leach. Rejeitam, por exemplo, a sua ênfase na participação do ceramista em todas as etapas do processo produtivo desde a preparação da argila. Há também os que se insurgem contra a sobriedade dos tons cinzentos e terrosos obtidos em alta temperatura. Claro que cada um deve se esforçar para criar a sua própria linguagem. Para Leach, a consistência da linguagem individual depende, em primeiro lugar, da intimidade que o ceramista é capaz de estabelecer com os materiais e os procedimentos do seu ofício. Assim, o ceramista que prepara a sua própria argila tem a oportunidade de singularizar o seu trabalho desde o início. Porém isso nem sempre é possível, especialmente para os ceramistas que trabalham em oficinas de dimensões reduzidas em centros urbanos.

Mas o que se observa no Brasil hoje é especialmente preocupante, pois há “ceramistas” que nem sequer modelam as suas peças, que não fazem a sua própria pesquisa de cores, esmaltes etc. Praticamente tudo é “terceirizado” − expressão que gostam de empregar. É lamentável observar que os pequenos ateliês estão incorporando os aspectos dissociativos característicos da produção industrial. Enfim, o ethos do ceramista moderno, que tanto privilegiou a continuidade entre criação e realização, parece esquecido, e isso se reflete obviamente na qualidade daquilo que é produzido.

Mesmo quando não concordamos integralmente com Leach, é importante reconhecer que ele deu uma direção ao movimento moderno de cerâmica, enfatizando a formação profissional e os critérios de qualidade. Ele introduziu valores importantes na produção artesanal. O seu esforço é paralelo ao dos reformistas do design que injetaram valores na produção industrial. Leach criou um espaço imaginário positivo para o desenvolvimento da cerâmica artesanal. Sobretudo recomendou aos ceramistas e apreciadores de cerâmica que fossem exigentes com a arte da cerâmica.

Rigor e experimentação

Lucie Rie, de família judia, fugiu da Áustria em 1938 com a intenção de emigrar para os Estados Unidos, mas preferiu permanecer na Inglaterra, onde encontrou ambiente favorável ao desenvolvimento da sua arte. Em Viena, Lucie Rie freqüentou a Escola de Ates Dcorativas, tendo aprendido cerâmica com Michael Powolny, membro do célebre Ateliê Vienense, junto com Josef Hoffman e Kolo Moser. Ela expôs algumas vezes junto com o Ateliê Vienense, mas foi na Inglaterra do pós-guerra que o seu trabalho amadureceu e prosperou. Ela adotou as técnicas de alta temperatura tão apreciadas por Leach, porém pesquisou novas formas e acabamentos. O seu trabalho é conhecido pelas espirais coloridas que resultam da modelagem no torno com argilas de cores contrastantes; superposição de vidrados aplicados sobre as peças ainda úmidas; e linhas irregulares feitas com ponteiro de metal, usando a técnica do esgrafito.

Hans Coper estudou engenharia têxtil na Alemanha. Também de origem judaica, ele fugiu de Dresden para a Inglaterra em 1939. Foi deportado para o Canadá, porém conseguiu voltar para a Inglaterra, onde teve um reinício de vida muito difícil que debilitou gravemente a sua saúde. Em 1946, conheceu Rie, tornando-se seu aprendiz, e depois seu assistente e colaborador. Coper tinha uma abordagem escultural da forma, inspirada em Brancusi e nas esculturas cíclades, mas manteve-se fiel à tradição do recipiente, modelando no torno principalmente vasos, tigelas e castiçais.

Embora Rie tenha realizado vasos sinuosos bastante complexos, ela perseguiu a continuidade da forma. Em contraponto, Coper explorou a montagem descontínua de partes modeladas separadamente no torno. A superfície misteriosa dos vasos e tigelas de Rie e Coper resulta de suas respectivas pesquisas pioneiras de sobreposição de óxidos minerais, engobes e vidrados. Ambos exploraram procedimentos instáveis, impróprios para a reprodução em série. Eles não apenas aceitaram, mas incorporaram “defeitos” resultantes da sobreposição de camadas de vidrados ou engobes, como os furinhos resultantes de bolhas de ar nos vidrados ou as rachaduras resultantes da espessura excessiva ou irregular dos engobes.  

Rie e Coper conquistaram o apoio do Design Council que escolheu algumas vezes as suas cerâmicas para participar das Trienais de Milão, ao lado do design industrial inglês. Expor a cerâmica de arte ao lado do design em eventos internacionais consistiu numa estratégia regular do governo inglês, assim como dos países escandinavos ao longo do século XX. As cerâmicas de Rie e Coper conquistaram assim reconhecimento internacional, despertando inclusive o interesse de arquitetos, que passaram a incluí-las em seus projetos, ultrapassando o círculo restrito dos apreciadores de cerâmica artesanal. A sua presença passou a se destacar nos ambientes modernistas. Justamente nos ambientes mais despojados, a cerâmica artesanal produz o mais belo efeito, pois o objeto de cerâmica, vaso ou tigela, é também uma metáfora da casa, que contém o espaço em escala reduzida. A obra de ambos foi consagrada há alguns anos pela realização de uma exposição retrospectiva no Metropolitan Museum de Nova York. O interesse atual dos colecionadores pelas cerâmicas de Rie e Coper faz os preços de suas peças alcançarem dezenas de milhares de libras.    

Oficinas artesanais no interior das fábricas

Ao longo do século XX, o diálogo entre design e artesanato se aprofundou de modo único nos países escandinavos. Nesses países que se industrializaram tardiamente em relação à Inglaterra, à França e à Alemanha, grandes fábricas de cerâmica e porcelana como Royal Copenhagen e Bing e Grondahl na Dinamarca; Gustavsberg e Rorstrand na Suécia, e Arábia na Finlândia, mantiveram ateliês para artistas-artesãos ceramistas em suas instalações. As peças realizadas artesanalmente pelos ceramistas serviram de inspiração para a produção industrial, de modo análogo à pesquisa científica que costuma fundamentar o avanço da tecnologia industrial. As oficinas artesanais desempenharam um papel essencial como laboratório criativo. A reconhecida qualidade da cerâmica industrial e artesanal dos países nórdicos deve-se ao diálogo muito fértil entre design e artesanato, favorecido pela proximidade na produção. Os artistas-ceramistas não apenas contribuíram para a realização de protótipos da produção em série. A independência da sua criação foi apoiada pela grande indústria que promoveu regularmente a exposição de peças únicas.
 
Como exemplo, a obra da ceramista de origem turca Alev Siesbye se destaca. Formada pela Academia de Belas-Artes de Istambul, Alev trabalhou como designer em fábricas de cerâmica na Turquia e na Alemanha e, posteriormente, durante vinte anos, na fábrica de porcelana Royal Copenhagen, na Dinamarca.  Durante este período ela teve à sua disposição um ateliê na grande fábrica, onde desenvolveu o seu próprio trabalho artesanal ao mesmo tempo em que criou protótipos para a produção em larga escala. Ela contou com o poderoso apoio técnico da grande empresa e contribuiu com a sua refinada sensibilidade para o aperfeiçoamento do design industrial em porcelana.

Suas tigelas arredondadas com base muito estreita parecem flutuar. As formas são ao mesmo tempo simples, suaves e sensuais. As cores luminosas de seus vidrados foram, durante muito tempo, raríssimas em alta temperatura. Os azuis e turquesas remetem à grande tradição da cerâmica do Oriente Médio, embora com texturas foscas especialmente agradáveis – os vidrados que recobrem as faianças do mediterrâneo costumam ser mais superficiais e brilhantes. Por vezes, um padrão geométrico inspirado nos tapetes kilim surge na superfície externa das peças, como resultado do contraste entre o turquesa do esmalte e a tonalidade dourada da própria argila. Na obra de Alev, o despojamento modernista alcança uma simplicidade sublime. A austeridade modernista foi um grande estímulo à criatividade de alguns artistas-artesãos. 

Os países escandinavos realmente se empenharam em aproximar design e artesanato, contrariando a argumentação de Le Corbusier em prol de um design estritamente racional desenvolvido por “designers-engenheiros” debruçados sobre suas pranchetas. A grande qualidade técnica e criativa da produção escandinava nos mostra que o método estritamente racional de projetar para a grande produção, distante das oficinas, não é o único e talvez não seja o melhor. As novas formas criadas pelo riquíssimo design escandinavo em cerâmica ao longo do século XX são devedoras, ao menos em parte, de uma pesquisa criativa de natureza artesanal. A desqualificação dos artesanatos pelo modernismo funcionalista não dá conta da riqueza da experiência moderna, inclusive do próprio design. É um erro acreditar que o novo no design possa surgir exclusivamente da aplicação de um método racional de simplificação e explicitação da funcionalidade a vários tipos de produção: cerâmica, vidro, mobiliário etc.. 

A experiência escandinava confirma a importância atribuída por Loos aos artesanatos modernos. Para Loos, o artesão moderno era um especialista bem informado e experiente, capaz de conversar de igual para o igual com os seus clientes, fossem eles arquitetos, designers, artistas decorativos ou empresários. 

Convergência de valores?

O pós-modernismo é normalmente associado, na arquitetura, à adoção de padrões ornamentais que fazem uma ponte com a arquitetura anterior ao modernismo. No design, o pós-modernismo se manifestou principalmente nas criações do grupo italiano Memphis, liderado por Ettore Sottsass, que introduziu um novo decorativismo de padrões vibrantes sobre formas complexas de conotação ritualística. Tratava-se de injetar cor, humor e complexidade no design. Embora muito elaboradas e vibrantes, estas formas exibiam a perfeição fria característica da produção industrial com a qual dialogava ironicamente.
 
A partir de meados dos anos noventa, a exaustão das soluções pós-modernistas fez surgir um neo-modernismo minimalista, que privilegiou os materiais naturais ao lado dos materiais de alta tecnologia. Em reação à padronização imposta pelo mundo industrial, a valorização da singularidade e da variedade abriu espaço para os ofícios artesanais contemporâneos. Observamos, por exemplo, o desenvolvimento de uma produção artesanal de mobiliário com vigor desconhecido desde o Art Déco, embora de formas mais despojadas. A beleza se expressa por meio dos detalhes como nos encaixes realizados segundo as técnicas tradicionais da marcenaria, acabamento primoroso e vernizes invisíveis que evidenciam a beleza natural da madeira. A preocupação contemporânea com o conforto extrapola as questões de funcionalidade e praticidade. Ela está agora mais próxima da esfera doméstica, com as suas conotações próprias de intimidade, calor e privacidade, do que do mundo do trabalho, fonte essencial de valores do design funcionalista. Esta abertura para o conforto doméstico contribui, é claro, para a retomada do artesanal. O australiano Kevin Murray, observador crítico dos artesanatos, salientou a importância que a palavra “artesanal” assume hoje na promoção comercial até mesmo do design produzido em larga escala. Há uma consciência crescente de que os valores relacionados à artesania estão em déficit e precisam ser recuperados no mundo contemporâneo.

O interesse contemporâneo pelo “artesanal” é obviamente positivo para as pequenas oficinas de cerâmica, de tecelagem, vidro, madeira etc. localizadas em grandes cidades brasileiras.  No entanto, no Brasil, o aprofundamento dos valores artesanais depende quase exclusivamente do esforço dos artesãos contemporâneos no sentido de esclarecer o público. Com esse objetivo, os artistas e designers vidreiros Elizabeth e Eduardo Prado promoveram, por exemplo, duas exposições internacionais da arte em vidro no MASP, em São Paulo. Por diversas vezes os ceramistas profissionais se reuniram para realizar exposições em museus e em espaços culturais de prestígio. Entretanto na ausência de ações mais regulares e apoio oficial, parte desse esforço é desperdiçada. 

O aprimoramento dos ofícios artesanais contemporâneos depende do reconhecimento do seu campo autônomo de atuação. Há uma tendência forte, porém, de diluição da produção artesanal no campo do design, economicamente muito mais poderoso.  Cada vez mais artistas-artesãos costumam apresentar e comercializar a sua produção em feiras de “design e decoração” dirigidas exclusivamente a lojistas, ou seja, voltadas para a venda no atacado. Estes grandes eventos facilitam a distribuição, porém comprometem a variedade que é essencial à produção artesanal. Além disso, o esforço titânico de apresentar “novas coleções” a cada seis meses, segundo o modelo sazonal da moda, pode ter influência negativa sobre o desenvolvimento criativo e profissional dos artistas-artesãos que trabalham individualmente ou em pequenos grupos. Enfim, cada um de nós precisa encontrar o justo equilíbrio entre a sua produção e as possibilidades de comercialização existentes, na ausência de outras modalidades de exposição e comercialização que seriam mais adequadas à natureza do nosso trabalho. A condição dos artesanatos contemporâneos no Brasil é muito frágil. Resta saber se o país tem interesse em estimular essa produção ao lado da produção de design, o que exigiria a suspensão de inibições modernistas ainda enraizadas.      

Vários países colhem os frutos de uma valorização duradoura dos artesanatos, inclusive no campo do design. A Habitat, de móveis e objetos, com lojas em vários países europeus, costuma encomendar desenhos de louças de cerâmica a artistas-ceramistas como, por exemplo, Chris Keenan. Recentemente Carina Ciscato, ceramista brasileira radicada na Inglaterra, desenvolveu para a marca a linha de tigelas Maresia. Este tipo de parceria acontece com alguma freqüência num país como a Inglaterra que costuma reconhecer o talento dos artistas-ceramistas na sua esfera original de criação. Para que o diálogo entre design e artesanato seja frutífero é primordial que as realizações do artista-artesão sejam apreciadas e valorizadas.

No Brasil a aproximação entre design e o artesanato costuma ser compreendida principalmente como a interferência, para usar a expressão cunhada pela arquiteta Janete Costa, de um designer sobre a produção de um artesão ou grupo de artesãos, em situação de grave penúria econômica. O designer é visto como um profissional capaz de transformar e modernizar uma produção artesanal tradicional (ou nem tanto). Em muitos casos trata-se de uma operação de salvamento necessária e legítima, pois a interferência dos designers acontece num momento de grande desvalorização do trabalho artesanal tradicional, que raramente dispõe de meios próprios para progredir. Em outros casos, trata-se de ações comerciais descontínuas envolvendo grupos pobres, não necessariamente dotados de um saber artesanal próprio ou específico, e na ausência dos direitos trabalhistas conquistados pelo mundo industrial.  

Procurei indicar elementos que permitem compreender algumas possibilidades de diálogo entre design e artesanato, ressaltando que o seu sucesso depende de uma percepção menos superficial dos ofícios artesanais, assim como de uma melhor compreensão histórica do movimento artesanal moderno. Será que as atuais gerações conhecem, por exemplo, as criações artesanais dos anos sessenta e setenta, como os tecidos da Olly, no Rio de Janeiro ou as cerâmicas da Elizabeth Nobeling, em São Paulo? Suspeito que não. A história do design brasileiro tem avançado muito, mas a história dos artesanatos modernos brasileiros está ainda totalmente por fazer. Cultivamos sempre a ilusão de um eterno recomeço. As exposições de vidro, cerâmica ou tecelagem que despertam o interesse da grande imprensa são quase sempre descritas como “pioneiras” de um novo campo a ser desbravado.


Referências bibliográficas:
(1) LEACH, BERNARD. A Potter´s Book, Faber and Faber, Londres, ( 1940) 1985. Pag. 11.
(2) Ibid. Pag 3.   
(3) PYE, DAVID. The Nature and Art of Workmanship, Cambridge University Press, 1968. Pag.74: “One could almost believe that some industrial designers only know of two surface qualities, shiny ant “textured”; and that to them texture means something which has to be distinguishable in all its parts three feet away.


Gilberto Paim é ceramista e pesquisador em design e arte aplicada. Autor de A beleza sobsuspeita, Jorge Zahar Editor, e Elizabeth Fonseca e Gilberto Paim, Editora Viana & Mosley.

O texto acima reproduz a segunda de duas palestras proferidas no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, em maio 2007, a convite do Centro de Design da Facamp.

 


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