Ano: II Número: 24
ISSN: 1983-005X
Detalhar Busca

Design, métodos participativos e escola pública
Walter Spina Jr.

Quase diariamente lemos ou ouvimos alguma notícia sobre a rede pública de ensino brasileira e, salvo alguns esporádicos índices que indicam algum tipo de melhoria, ficamos assustados com tais notícias. E se não ficamos, deveríamos ficar.

Não são poucos os problemas existentes na escola pública do Brasil. Como se não bastasse a precária infraestrutura de muitas escolas, a falta de materiais pedagógicos e profissionais qualificados, a dificuldade de acesso dos estudantes etc., a escola pública brasileira tornou-se cenário de brigas e desentendimentos, não só entre os alunos, mas também, entre eles e os professores e a equipe administrativa.

Influenciado por disciplinas mais humanistas que cursei ao longo da minha formação como designer e também por ter sido estudante da rede pública de ensino durante toda a minha vida escolar básica e ter ingressado em uma instituição de ensino superior através de um Programa Federal de Acessibilidade, o Prouni, passei a me preocupar em descobrir como um designer pode contribuir para a sociedade de maneira mais direta?

E foi justamente esse questionamento que me ajudou a escolher o trabalho de conclusão de curso, com um tema relacionado à qualificação de um espaço público fundamental para a formação de cidadãos e o desenvolvimento de uma nação, a escola pública.

Acreditei, também, que conhecendo melhor esses problemas, em comparação a meus colegas de faculdade e até mesmo de profissão, que, com um nível financeiro maior, em sua grande maioria, não utilizam os serviços públicos, optando pelos serviços privados, eu poderia desenvolver um trabalho mais relevante aos usuários desse serviço. Ou seja, não pensei as ferramentas de projeto como mais uma intervenção estética e funcional impositiva, justificada por um conhecimento mínimo dos reais problemas enfrentados no dia-a-dia desses ambientes.

Apesar de conhecer a escola pública, enquanto ex-aluno, não pude deixar de estudar sua formação e algumas iniciativas de profissionais em sua qualificação. Também realizei uma pesquisa de campo e convívio, agora com um olhar profissional. Fiz constantes visitas a uma escola estadual da periferia de Campinas, a escola da qual fui aluno por dez anos.

O que desejei, ao realizar este trabalho, foi mostrar como nós, designers, produtores de bens culturais e materiais, podemos contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e realmente democrática. Como podemos projetar e pensar produtos e serviços destinados aos usuários dos serviços e infraestrutura pública se, a maioria de nós, não têm contato com esses usuários e não conhecem os problemas existentes em seu dia-a-dia? 

Como designers, estamos acostumados a solucionar produtos, mas precisamos conhecer esse público para, então, começar a solucionar os problemas tão emergenciais em um país que deseja tornar-se uma potência econômica realmente desenvolvida e democrática.

A questão que coloco é a necessidade de redirecionar o potencial da nossa profissão: por que não trabalhar em prol de causas visivelmente emergenciais? De boas atitudes e ideias depende o nosso futuro, de nossos filhos e netos, de nosso país, de nosso planeta. Desse modo, não estaríamos apenas colaborando para a melhoria da sociedade, mas também transformando a própria prática do design.

Esse trabalho inclui, indiretamente, uma crítica radical à postura profissional mercantilista e conformista de nossa profissão. É, assim, um apelo para que pensemos o design sobre novas bases, um design disposto a pensar e projetar uma nova sociedade.

Segue o relato da pesquisa realizada na escola pública e, posteriormente, uma resposta à situação presenciada.

A pesquisa de campo e de convivência

A escola está localizada em um bairro periférico, constituído principalmente por residências e pequenos comércios. Divide uma quadra com uma escola municipal de ensino infantil e um posto de saúde. A escola é frequentada por alunos de bairros vizinhos, em sua maioria.

É considerada, pela comunidade local, como uma das melhores de sua região, pois é maior que as demais e possui ambientes específicos como: laboratórios, sala de artes, sala de informática, quadra coberta etc.

Porém, apresenta diversos problemas, que pude vivenciar durante as minhas visitas. Muitos desses problemas são reflexos da expansão desordenada e precária da rede pública de ensino no Brasil, e se assemelham aos problemas apresentados pela autora Maria Helena de Souza Patto, em sua pesquisa antropológica em uma escola pública da periferia de São Paulo, na década de 1980. Esta pesquisa está relatada no livro A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia, publicado pela Casa do Psicólogo, em 1999.

A escola, valorizada pela comunidade local por ser de grande porte e possuir ambientes específicos para a formação dos alunos, na verdade, tem tais ambientes sem manutenção e, por isso, interditados. Por sua vez, os ambientes em melhor estado de conservação, que recebem a atenção de determinados usuários, não são acessíveis aos demais atores, pois ficam fechados, na tentativa de serem mantidos em bom estado.

Os dois laboratórios de Ciências são um exemplo desses ambientes. São espaços hiper valorizados pelo corpo docente, que exalta sua infraestrutura e estado impecável, porém também apresentam problemas de falta de manutenção e, o que é ainda mais grave, não têm função alguma no ambiente escolar, uma vez que não são acessíveis a seus estudantes e professores. Ao conhecer estes ambientes, convidado por uma das inspetoras de alunos, devo admitir que não sabia descrever o que sentia, pois, estava vendo o ambiente mais qualificado da escola, um aspecto positivo dentre os vários problemas da instituição. Mas não pude esquecer que só o estava conhecendo agora, já que como estudante daquela escola durante anos, nunca tive a oportunidade de utilizar tais ambientes!

Outros ambientes fundamentais como a sala de artes e a biblioteca sofrem do mesmo problema, embora sejam familiares aos alunos, não são acessíveis em grande parte do tempo.

Com isso, a escola perde muitos de seus ambientes, ora pela falta de manutenção, ora pelo excesso de zelo, deixando apenas as salas de aula, os sanitários (em péssimo estado de uso) e os pátios interno e externo (igualmente sem manutenção  à disposição dos alunos, professores, inspetores e comunidade.

Pude identificar, ao longo da pesquisa, uma série de possíveis temas de projetos que poderiam, em um primeiro momento, auxiliar na qualificação imediata do ambiente escolar. Em resposta ao acúmulo de lixo nos pátios interno e externo, poderiam ser produzidas lixeiras e sinalização indicativa. A criação de lugares específicos onde os alunos pudessem se expressar por meio de escritos e desenhos poderia diminuir as pichações nas paredes e equipamentos da escola. Propondo a sinalização dos ambientes escolares e alguns lembretes de comportamento como “Favor, faça silêncio” (na biblioteca, por exemplo) a escola poderia reverter a imagem de abandono, ficando mais agradável a seus usuários. Mas o mais importante, tais projetos não poderiam ser impostos à comunidade escolar, mas pensados com ela.

Durante a pesquisa fiz entrevistas informais e ouvi os depoimentos dos diversos atores da escola. Recebi, também, auxílio mais direto dos alunos, que fizeram o registro fotográfico comentado dos ambientes, apontando os lugares/equipamentos que percebiam como satisfatórios e não satisfatórios. Com este levantamento, montamos o mapa do ambiente vivido, que mostrava as opiniões dos diferentes grupos em relação a cada ambiente da escola.

Em alguns desses ambientes, é possível perceber que não há consenso entre os grupos de usuários, pois para alguns o ambiente é visto como de pouco qualidade (devido a problemas como falta de acesso, falta de manutenção etc.) e por outros é tido como ótimo espaço. Isso mostra que, apesar de ser bem aceito por parte de seus usuários, o ambiente não obteve êxito, pois não é agradável a outros.

Um caminho para a qualificação

Após a pesquisa de campo, ficou evidente para mim que apenas um projeto de qualificação da infraestrutura escolar não seria suficiente para contribuir de maneira significativa para a reversão dos problemas existentes hoje na rede pública de ensino.

Esse ambiente necessita de uma mudança mais radical, que abranja não só os aspectos qualitativos e funcionais dos equipamentos e ambientes escolares, mas que possa contribuir para a construção de relações mais saudáveis entre os diversos atores responsáveis pelo ambiente, e que a escola possa realmente atingir o seu propósito maior, a educação dos jovens brasileiros e sua inserção em uma sociedade democrática.

Para isso, proponho uma metodologia projetual, que leve em consideração as opiniões de todos os futuros usuários de tal projeto, que permita que eles possam opinar e apresentar sugestões em relação aos móveis e equipamentos. E através dessa participação coletiva no desenvolvimento dos objetos e utensílios públicos, melhorar a qualidade das relações entre os diferentes grupos de atores da escola pública. Desse modo, será possível que todos participem de maneira democrática e, através disso, enxerguem uns aos outros como cidadãos tão importantes para o resultado final dos projetos de qualificação quanto a si próprios.

Para que tal qualificação aconteça, proponho a parceria entre governo e instituições de ensino superior (inicialmente a Facamp no desenvolvimento do projeto piloto) na formação de grupos de discussão e proposição de projetos de equipamentos destinados à rede pública de ensino, no interior das escolas públicas.

Tais instituições de ensino superior teriam de possuir cursos de design, arquitetura, desenho industrial, além de ter infraestrutura necessária para a produção de protótipos e experimentação de materiais.

O governo e as instituições de ensino superior seriam responsáveis pela seleção das escolas participantes dos grupos de projeto. Escolas de diferentes regiões, sob uma mesma gestão, seja estadual ou municipal, seriam eleitas para a formação dos grupos e como representantes das demais escolas mais próximas.

A formação das oficinas ficaria sob responsabilidade das faculdades, que disponibilizariam um coordenador para a sua realização. As oficinas seriam pequenas, com no máximo 30 participantes, sorteados de maneira aleatória entre os alunos, professores, inspetores, diretores e outros profissionais. Os demais usuários da escola poderiam participar de reuniões para a apresentação dos resultados e levantamento de questões de projeto, realizadas a cada etapa da metodologia.

A eleição dos temas de projeto das oficinas seria feita de forma democrática, com a participação de todos das oficinas, inclusive os que não participaram de forma direta. Em um momento inicial, todos os atores da escola seriam mobilizados na discussão dos temas de projeto prioritários e se organizariam em grupos para registrar e apontar os “melhores” e os “piores” ambientes, e por quais motivos. Com o resultado desse levantamento, construiriam um mapa do ambiente vivido, semelhante ao realizado durante a minha pesquisa de campo. 

Nessas oficinas seriam feitas discussões sobre a formação e atual situação da escola pública, com o objetivo de inserir os participantes das oficinas dentro de seu contexto histórico, permitindo que se vissem, não mais como espectadores, mas como participantes dessa história. A partir de discussões, os atores se tornariam mais críticos em relação aos serviços públicos oferecidos, não só relacionados à educação, mas também à saúde, ao transporte etc.

Posteriormente, haveria aulas específicas de conhecimentos básicos para a proposição dos equipamentos, como: história da produção industrial, engenharia de materiais, desenho em escala etc. Nas oficinas, os usuários teriam acesso a materiais e maquinário de baixo custo, necessários para a produção de mock-ups e modelos tridimensionais das propostas. As propostas surgiriam tanto das discussões dos materiais e técnicas de produção, quanto de exercícios mais lúdicos, que auxiliariam os participantes envolvidos no conhecimento dos diferentes materiais existentes.
 
Quando um projeto chegasse a um bom nível de desenvolvimento, depois de apresentado e aprovado por todos os usuários da escola, seria produzido pelas oficinas de protótipos das faculdades, com a supervisão e o acompanhamento dos grupos de projeto. Esse acompanhamento poderia ser integralmente presencial ou por registro de imagem e vídeo das etapas de produção, registrando não só os resultados, mas também as dificuldades de produção. Assim, haveria material significativo para as aulas de conhecimentos de projeto, como materiais e processos de fabricação.

A escola receberia os protótipos, que passariam por um período de experimentação e avaliação no ambiente escolar. Caso fosse necessário, seriam corrigidos eventuais problemas de projeto. Se não houvesse necessidade de correções, o projeto seria encaminhado a uma banca examinadora composta por profissionais da área de projeto, por representantes do governo, por industriais interessados na fabricação dos equipamentos e também por alguns participantes da metodologia. Essa banca tomaria conhecimento dos demais projetos propostos pelas demais escolas participantes da metodologia. Em seguida, a banca avaliaria o projeto mais viável, do ponto de vista funcional, sustentável (ambiental e socialmente) e financeiro.

Essa metodologia traria, ainda, a melhoria dos critérios de licitação pública, que passaria a ser pautada pela capacidade e qualidade na produção dos equipamentos, na capacidade da empresa de reutilizar não só os resíduos gerados pela produção, mas, também, os equipamentos danificados descartados pela escola. A empresa escolhida seria responsável pela entrega e retirada dos produtos e fiscalizada para empregar mão de obra registrada e remunerada conforme a lei. A preferência por manufaturas e organizações de trabalhadores locais poderia estar prevista nos processos licitatórios. Assim, os critérios desse processo licitatório, valorizariam a mão de obra dos cidadãos locais.

Após realizar a pesquisa e a proposta metodológica, comecei a esboçar projetos que poderiam reverter alguns dos problemas constatados e que também poderiam surgir ao longo da aplicação da metodologia projetual proposta. Um projeto ficou bem interessante e pode ser visto nas imagens das cadeiras.  Devo advertir que foi elaborado apenas com a minha experiência enquanto estudante de Design e que, apesar de ser fruto do diagnóstico dos problemas da ambiente educacional público, não foi projetado participativamente, como propõe a metodologia. O projeto se baseia em um modelo de carteira escolar regulável em até três alturas e uma cadeira regulável em duas variações. Seriam projetados em material plástico reaproveitado (tendo como origem o descarte da indústria privada e também o reaproveitamento do próprio mobiliário quando degradado pela ação do tempo e por atos de vandalismo) e aço tubular.

Contudo, não acredito que apenas a metodologia aqui proposta possa, por si só, reverter essa realidade. Além da produção de equipamentos de qualidade e do despertar crítico dos usuários das escolas, existem outros objetivos a serem alcançados, como: a melhor qualificação e remuneração dos profissionais responsáveis pelo funcionamento da instituição; a valorização dos docentes; a contratação de mais profissionais etc. Objetivos que devem ser almejados por todos nós, cidadãos brasileiros, e cobrados de nossos governantes. Não só os usuários da rede pública de ensino, mas também os usuários de todo e qualquer serviço público devem ter consciência de seu papel transformador, reivindicando melhor qualidade da estrutura das escolas e da gestão pública. É necessário ter consciência de que pensar no coletivo é o melhor caminho para o desenvolvimento e a constituição do estado de bem-estar social, nunca alcançado em nosso país.

 


Walter Spina Jr se formou pela FACAMP – Faculdades de Campinas em 2008 e está concluindo estágio na Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas – Emdec. Este artigo foi desenvolvido a partir de seu trabalho de conclusão de curso, Metodologia projetual de design nas escolas públicas, orientado pelo professor Pedro Fiori Arantes.

 


Comentários

Flora
21/02/2010

Na Puc do Rio de Janeiro, alunos de design (desde o 1o periodo) fazem projetos dentro de instituicoes diversas, incluindo escolas publicas. A visao, porem, e diferente. Nos nao focamos o quao danificada pode estar a cadeira ou as salas de aula. Nos focamos nos professores. Assistimos as aulas como observadores e anotamos tudo o que vemos, ate entendermos o objetivo dos mestres (atraves, tambem, de contato constante com eles.). Com o objetivo na mao (briefing) comecamos a mostrar experimentos, mas nunca dizemos qual foi a nossa ideia em cima do objeto. Esperamos pra ver se o professor utiliza-o ou nao. Porque, caso contrario, seria um tipo de imposicao causada por uma visao etnocentrista. Pra resumir: usamos uma visao muito mais humanistica do que puramente do objeto. No fim, criamos um produto cujo resultado garanto que eh muito mais satisfatorio...

Envie um comentário

RETORNAR