Ano: III Número: 29
ISSN: 1983-005X
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O (possível) sentido do design: um esboço filosófico
Filipe Chagas e Jorge Lucio de Campos



 

Um conceito exige, às vezes, uma palavra estranha, com etimologias quase malucas e, às vezes, uma palavra corrente, mas da qual se extrai  harmonias as mais longínquas”.

Gilles Deleuze e Félix Guattari


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O mundo de hoje se altera a uma velocidade estonteante. Os saberes tecnológicos avançam com tal rapidez que nos deixam amiúde perplexos diante de tantas inovações, possibilidades informativas, teorias e pesquisas em discussão globalizada. Tem-se, contudo, no pico dessa aceleração generalizada, uma impressão incômoda: a de que temos dificuldade de lembrar o significado de determinados processos assim como dos conceitos com eles relacionados e das palavras que buscam nomeá-los. Seria o caso, por exemplo, do design, um processo, um conceito e uma palavra que fazem parte do nosso dia-a-dia de maneiras muito diferentes.


Assistimos a comerciais que aludem ao design de um carro. Notamos, no rótulo de uma bebida, um alarde em torno do design da garrafa que a contém. Mas será que aquele processo, aquele conceito e aquela palavra se resumiriam a isso, ou seja, a uma nova aparência proposta e/ou proporcionada a alguma coisa? Existe uma máxima repetida pelos designers que afirma ser a forma a função. De acordo com ela, o design envolveria uma preocupação bem maior com o para que do que com o como. E quanto a ele próprio? Seria uma profissão? Uma atividade econômica? Uma arte? Um entretenimento? Deveria ele ou não privilegiar o social?

Se utilizássemos, como método, a maiêutica socrática para analisarmos tais questões, chegaríamos, provavelmente, a um estágio próximo ao que nos encontramos hoje: o da aporia. Cada indivíduo apresentaria uma definição da palavra, inviabilizando o alcance de uma síntese final que reduzisse todas as respostas a uma única e definitiva, ou seja, a uma epistéme do design. O jeito talvez seja seguir o tradicional “conhece-te a ti mesmo”, e partindo da etimologia, quem sabe, chegar a um lugar que não o da dúvida plena.

O termo deriva do verbo latino designare que significa algo próximo a “escolher”, “marcar”, “assinalar” ou “designar”. Em inglês, pode tanto ser um substantivo quanto um verbo e é bastante abrangente, referindo-se ao processo de “dar origem e desenvolver um projeto de algo” e ao próprio resultado de tal ação. A tradução mais comum e – talvez – mais próxima da prática profissional é “projetar”. Denomina-se, então, por design qualquer processo técnico e criativo relacionado à configuração, concepção, elaboração e especificação de um artefato, normalmente, orientado por uma intenção ou objetivo, ou para a solução de um problema.

Estudos etimológicos afirmam que a tradução para o português sofreu alguns ruídos graças à sua semelhança com a língua espanhola. Em espanhol, design é diseño, palavra com fonética muito semelhante ao nosso “desenho”. Com a implementação do primeiro curso de design no Brasil na década de 1960 [1],  adotou-se a expressão “desenho industrial”, uma vez que, à época, era proibido o uso de vocábulos estrangeiros para nomear cursos em universidades nacionais. Por essa razão, o design ainda é chamado de desenho industrial no Brasil (o adjetivo “industrial” entrou para diferenciar o desenho comum do de algo a ser produzido em escala industrial). Para aquele, os espanhóis possuem a palavra dibujo. A disputa por uma nomenclatura para a profissão se estendeu por décadas. Atualmente, tanto a legislação brasileira para cursos superiores, quanto a maioria das associações profissionais usam design, por entenderem que sintetiza, com maior propriedade, a essência da prática profissional, além de já fazer parte do “saber popular”.


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Mas seria essa – a do “saber popular” − a concepção mais adequada? Infelizmente não. Cabeleireiros são chamados de (ou se apresentam como) hair designers, confeiteiros de cake designers, tatuadores de body designers, o que mostra que o termo possui significados maleáveis e, indiscriminadamente, utilizados. Descartes diria, no entanto, que são falsos, pois, existindo a menor possibilidade de dúvida acerca de um conceito, este necessitará de uma verificação para se tornar verdadeiro.

Em seu Discurso do método [2], ele afirma que, para evitar (ou, ao menos, reduzir) o erro em problemas complexos, é preciso dividir a questão em partes solucionáveis. Em seguida, os resultados devem ser concatenados entre si para que uma revisão final certifique a solução do problema inicial. Se analisarmos a situação atual do design enquanto área profissional, poderemos dizer que ele está, exatamente, no ponto da divisão. Multiplicam-se as suas ocorrências e aplicações: design de serviços, de interação, de informação, de interiores, de moda, webdesign etc. Cada uma estabelecendo um espaço próprio e almejando um resultado específico. A comunidade deveria, então, avaliá-los em busca de um denominador comum e racional. Para Descartes, essa seria a forma correta de se obter uma definição minimamente satisfatória.

Todo esse processo se assemelha ao que ocorreu com o marketing. Antes chamado apenas de publicidade ou propaganda, a palavra chegou com força ao Brasil na década de 1980, após um período global de grandes fusões e aquisições corporativas [3]. Para se impor como uma área mercadológica de pesquisa e desenvolvimento, ele se dividiu: marketing esportivo, de varejo, gestão em marketing, e por aí vai. Hoje, mesmo com a manutenção de tais divisões, ele já possui um espaço garantido − mas sem uma definição clara e exata − através de convenções genéricas que convergem para um mesmo ponto.

Para o consultor em planejamento estratégico e professor de semiologia Norberto Chaves, os recursos de identificação e difusão tradicionais se tornaram obsoletos com a globalização. As transformações mundiais trouxeram uma maior competitividade, uma saturação informativa, uma imprevisibilidade e uma massificação da mensagem comercial, todas responsáveis pelo aumento do ritmo de modificação do próprio sujeito, que se vê obrigado a se fazer ler, entender, diferenciar, registrar, em condições absolutamente distintas das conhecidas antes. Sendo assim, as práticas profissionais vinculadas às técnicas de comunicação e aos processos de identificação sofreram modificações similares ao consolidar especializações e afirmar a tendência à integração interdisciplinar. No entanto, o processo de cristalização dessas novas especializações profissionais não possui uma estrutura disciplinar clara ou um respaldo teórico específico, tendo que se apoiar em outras preexistentes e um instrumental teórico-técnico demasiadamente eclético. Consequentemente, carece de um processamento analítico e de uma bibliografia teórica específica e sólida [4]. Passa-se a falar em design como um sistema interdisciplinar de ações que busca construir propostas inovadoras através do estabelecimento de imagens, percepções e associações pelas quais diversos públicos irão se relacionar com um produto, serviço ou empresa [5].

Sendo o design uma área pautada pelo desenvolvimento da humanidade e considerando que o momento atual apresenta uma cultura fragmentada em sua nova essência, [6] parece que a revisão sintética proposta no fim do método cartesiano não desponta (e não despontará) em seu horizonte. Como disse Heráclito, “ninguém (ou nada) permanece idêntico a si mesmo”, muito menos o design. Talvez se pensarmos kantianamente, poderemos concluir que só temos uma ideia dos “fenômenos” do design, e não de sua coisidade em si, ou seja, não do que ele seja nele mesmo. Todas as definições apresentadas serviriam apenas para traçar uma linha de raciocínio que, no máximo, forneceria subsídios para que possamos supor algo a seu respeito.

Essa característica fluida e em constante transformação decerto influencia as percepções do sujeito em relação a si e ao mundo. É o que pressupõe a ecosofia de Félix Guattari para quem o sujeito está longe de ser evidente, não bastando para este, simplesmente, pensar para ser, já que inúmeras outras maneiras de existir se instaurariam fora da consciência. Guattari aposta, então, numa articulação ético-política [7] entre o que chama de três registros ecológicos fundamentais − o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana – como uma saída para aqueles que só conseguem (ou preferem) visualizar o problema numa perspectiva tecnocrática, tornando-se incapazes de enxergar a sua real abrangência. Para ele, não haverá uma solução efetiva sem que ocorra uma autêntica revolução política, social e cultural que reoriente os objetivos da produção de bens materiais e imateriais, ou seja, que atinja não somente as forças tangíveis, mas também os domínios da sensibilidade, da inteligência e do desejo. Isso representaria, no fim das contas, uma reinvenção histórica propriamente dita da existência humana.

Talvez os designers devessem levar um pouco mais em conta a conhecida sentença de Protágoras [8] e começar a se preocuparem menos com a efemeridade de um mercado comprometido com (e pela) obsolescência planejada do que com a melhoria qualitativa da sociedade. Talvez seja preciso uma postura ainda mais ética por parte desses profissionais e lembrar que seus projetos também poderão, futuramente, afetá-los em sua condição de usuários potenciais. Talvez esteja na hora de reaplicarmos a velha regra de ouro [9] e, dessa forma, nos posicionando “para além do bem e do mal”, como gostaria Nietzsche, ignorar qualquer afirmação absoluta sobre o que realmente o design venha a ser. Apostando no ato sublime da criatividade, o que se poderá considerar como certo é que não haverá, ainda assim, verdade alguma sobre ele.


Notas

[1] Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), fundada, em 1963, no Rio de Janeiro.
[2] Publicado, originalmente, em 1637.
[3] Algumas empresas que exerciam monopólio no âmbito regional ou nacional começaram a enfrentar concorrência global. Em função desta concorrência, houve maiores pressões para se tornarem agentes do novo mercado globalizado. Empresas de atuação regional ou nacional se fundiram para enfrentar a concorrência global. Em reação a essas fusões, empresas globais adquiriram, rapidamente, empresas regionais. Essa onda de fusões e aquisições que compõe o cenário da época atingiu também os escritórios de design e identidade corporativa.
[4] CHAVES, 1988, pp. 7-10.
[5] Existe uma grande discussão, atualmente, sobre essa interdisciplinaridade tão freqüente no design, mas que também aconteceria na maior parte das áreas. Suas inúmeras definições dependem do ponto de vista ou de seu uso. E a palavra ainda se confunde com multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade. Um dicionário solucionaria as dúvidas recorrentes se as diferenças não fossem tão sutis. De acordo com os prefixos, teríamos inter-, que conduz o termo desejado e dá características de interação entre disciplinas; multi- e pluri- como sinônimos, significando várias disciplinas que tratam do mesmo assunto sem interação; enquanto trans- vai além das disciplinas envolvidas como se criasse uma nova área. É possível, então, definir a interdisciplinaridade como uma organização ou uma estruturação de conhecimentos, capaz de modificar conceitos e métodos em um intercâmbio recíproco de enriquecimento mútuo. Ver mais em COUTO, 2006, pp. 58-59, NIEMEYER, 2006, p. 98 e VILLAS-BOAS, 2002, pp. 21-6.
[6] Ver mais em CHAGAS, 2009; HALL, 2006 e BAUMAN, 1999 e 2001.
[7] GUATTARI, 2007.
[8] “O homem é a medida de todas as coisas: das que são enquanto são e das que não são, enquanto não são”.
[9] A “regra de ouro” (ou “ética da reciprocidade”) é um princípio moral encontrado, como um fundamento, em, praticamente, todas as religiões. O “trate os outros do modo como você mesmo gostaria de ser tratado” enfatiza uma atitude de não praticar o mal, em oposição ao “olho por olho, dente por dente” da Lei do talião. Para Kant, essa regra seria intrínseca à natureza humana.


Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
CHAGAS, F. Design líquido: uma investigação sobre a construção das identidades contemporâneas. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PPDESDI, 2009. Disponível em www.bdtd.uerj.br.
CHAVES, N. La imagen corporativa. Teoría y metodología de la identificación institucional. Barcelona: Gustavo Gili, 1988.
COUTO, R. M. de S. “Reflexões sobre a natureza e a vocação interdisciplinar do design”. In: LIMA, Guilherme Cunha (org.). Textos selecionados de design 1. Rio de Janeiro: PPDESDI UERJ, 2006, pp. 51-82.
DORMER, P. Os significados do design moderno: A caminho do século XXI. Lisboa: Centro Português de Design, 1995.
GUATTARI, F. As três ecologias. Campinas: Papirus, 2007.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HAMLYN, D. W. Uma história da filosofia ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
NIEMEYER, L. “Design atitudinal: uma abordagem projetual”. In: LIMA, G. C. (org.). Textos selecionados de design 1. Rio de Janeiro: PPDESDI UERJ, 2006, pp. 97-112.
ORR, D. The nature of design: Ecology, culture, and human intention. New York: Oxford University Press, 2002.
SANTOS, M. V. Os pensadores, um curso. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.
VILLAS-BOAS, A. Identidade e cultura. Rio de Janeiro: 2AB, 2002.



Filipe Chagas é graduado e mestre em Design pela Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ESDI/UERJ).

Jorge Lucio de Campos é doutor e pós-doutor em Comunicação e Cultura (História dos Sistemas de Pensamento) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado e Mestre em Filosofia (Estética) pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-graduação (Mestrado) em Design da ESDI/UERJ.

 


Comentários

suzana
17/06/2010

Achei esse discurso muito velho. O design e os designers atuais sabem o sentido de sua profissão. Seja desenho ou design trabalhamos criativamente para melhorar o meio ambiente, nossas ferramentes e por consequência o próprio homem.

Douglas Carvalho
21/05/2010

Perfeito!

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