Ano: I Número: 1
ISSN: 1983-005X
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A gráfica de Amilcar de Castro no limbo
Daniel Trench

Livro: Preto no Branco, a Arte Gráfica de Amilcar de Castro Autor(a): Yanet Aguilera (org.) Editora: UFMG 2005

Postado: 08/01/2008

   

A documentação e a reflexão sobre a prática de design no Brasil são lamentavelmente escassas. Mas, se olharmos em perspectiva − e em um viés otimista −, veremos, pouco a pouco, ainda que motivado por iniciativas pessoais, o crescimento do número de publicações sobre a produção de design no Brasil.

Nesse ambiente rarefeito, são louváveis os esforços daqueles que se dedicam a pensar essa produção. E é nesse universo de poucas palavras que o volume Preto no Branco, a Arte Gráfica de Amilcar de Castro se insere.

O livro, organizado pela pesquisadora da USP Yanet Aguilera, joga luz, de maneira inédita, sobre a produção de design gráfico de Amilcar de Castro. O artista e sua produção de esculturas, desenhos, pinturas e gravuras já haviam sido tema de uma série de publicações. Seu trabalho em artes plásticas é amplamente reconhecido e documentado. Já sua faceta designer sempre esteve à margem de tais reverências.

Prova de tal desdém é a publicação Amilcar de Castro, re-editada pela Cosac Naify em 1997. No volume de 176 páginas, organizado por Alberto Tassinari, com textos de Rodrigo Naves e Ronaldo Brito, a produção de design de Amilcar não merece uma só menção. A farta quantidade de imagens se limita a reproduzir as esculturas e os desenhos do artista. Logo na apresentação, Tassinari avisa: “as limitações de tempo e recursos obrigou-nos a excluir do livro dois momentos da atividade do artista: seu trabalho como diagramador nas décadas de 50 e 60, e os desenhos e gravuras coloridos dos últimos anos”.

É, portanto, desse ineditismo que o livro organizado por Aguilera retira seu grande mérito. E, talvez por contar com tal reconhecimento a priori, a pesquisa encabeçada por Aguilera não se aprofunde em importantes questões da produção de design gráfico de Amilcar. Ao passar ao largo de discussões complexas, Aguilera apenas reforça a mitificação da figura de Amilcar de Castro.

ESTRUTURA

Entre ensaios, entrevistas e caderno de ilustrações, o livro se divide em oito partes. Na primeira, Ricardo Fabbrini traça um panorama da produção de Amilcar de Castro. Seu texto se esforça para dar conta da biografia e do contexto artístico em que o trabalho de Amilcar se insere. Aqui, o autor já lança mão de relações, sobretudo formais, entre a produção plástica e a de design de Amilcar. “Amilcar aplicou ao ‘Jornal do Brasil’ a concepção, que também guiou sua escultura, de que cada parte do plano (da chapa de ferro, ou da página em branco), de cima ou de baixo, à direita ou à esquerda, deve ter o mesmo peso.”

É na busca por tais relações que o livro parece se apoiar. Mas, à medida em que avançamos em suas páginas, tal empreitada se revela um esforço monótono.

No segundo texto do livro, Aguilera se detém na produção de design de Amilcar. Repleto de generalizações, “sua obra gráfica é, para a página impressa no Brasil, tão importante quanto sua escultura para as artes plásticas”, o texto segue descrevendo os passos profissionais de Amilcar no universo da grande imprensa nacional. Conta-nos que começou sua carreira de designer em 1953 na revista Manchete. Que passou pelo Correio da Manhã, O Globo, Última Hora, A Província do Pará, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e no Estado de São Paulo. E que “em 1957, renovou e modernizou o visual dos jornais brasileiros ao reformar graficamente o ‘Jornal do Brasil’”. 

O JORNAL DO BRASIL

É aqui que os maiores problemas aparecem. Ao não oferecer um panorama do comportamento gráfico da imprensa à época da reforma, a autora apenas propaga algo que já está no senso-comum. E, na ausência de tais referências, o leitor se sente obrigado a aceitar a sentença imposta pela autora. Ficamos sem saber qual foi, realmente, o grande diferencial da reforma.

A autora também se esquiva de uma espinhosa polêmica, a autoria da reforma. Se as grandes mudanças são motivadas pela criação, em 1956, do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, e se este foi criado e desenhado por Reynaldo Jardim, como afirma Jardim em entrevista a Aguilera, é ele o responsável pelo ponta-pé inicial da tal reforma. Desse modo, vemos que o início da reforma se dá um ano antes daquilo que afirma Aguilera. E mais, se o Suplemento, nesse primeiro momento, ganha ares de campo de testes das mudanças gráficas que viriam a tomar conta de todo o jornal, é Jardim, mais uma vez, quem deve ser laureado.

Mas a polêmica não é polarizada apenas nas figuras de Amilcar e Jardim. O jornalista Ruy Castro, em seu livro Ela é Carioca, dá a Janio de Freitas o crédito da reforma gráfica.

Na falta de um discurso uníssono, é possível apenas dizer que a reforma gráfica se constrói por meio de ações conjuntas de diferentes personagens. A omissão de qualquer tipo de menção a esse imbroglio, mais uma vez, serve apenas de reforço para idéias que, em tempo, merecem ser revistas.

Ainda sobre o Suplemento a autora diz “à novidade da diagramação se acrescenta, como feliz coincidência, um conteúdo candente e de extrema importância: no SDJB foi lançado, por exemplo, o manifesto neoconcreto, tão importante para as artes plásticas no Brasil”.
Não há aí qualquer coincidência. Criado por um time de jovens intelectuais, o SDJB tinha como pretensão divulgar e discutir as novas correntes da arte brasileira e estrangeira. É, então, no mínimo coerente que a visualidade de suas páginas buscasse traduzir tal reivindicação.

As analogias formais entre a obra escultórica e o projeto do Jornal do Brasil seguem no texto de Aguilera. “O equilíbrio instável e delicado da escultura é dado pelo contraste entre o peso do material e a leveza da chapa lisa sem ornamento, juntamente com a luminosidade que o corte introduz no espaço. Na página impressa, o peso e a leveza aparecem nos contornos severos e sem ornamentos das verticais e horizontais [...]”.

E a descrição formal se esforça em trazer o léxico das esculturas de Amilcar às páginas do jornal. “O branco separa as matérias pelas colunas verticais brancas, também pela diferença de espaçamento nas letras entre uma coluna e outra [...]”. Tais informações são visíveis nas imagens reproduzidas ao longo do livro. Logo a descrição é redundante.

O texto de Washignton Dias Lessa aparece, nesse cenário, como um alento. Publicado originalmente em 1995, no volume Dois Estudos de Comunicação Visual, Lessa vai além da mera descrição de imagens. Aponta de maneira pragmática os principais passos da reforma. Fornece-nos desse modo informações que revelam a nova arquitetura implantada pelo projeto. Escancara, por exemplo, a inteligência do uso combinado “de dois diagramas diferentes que, não necessariamente como múltiplos exatos, se interpenetram”. Tal possibilidade é uma importante arma para a obtenção das composições assimétricas que dão o tom no novo JB. E mais, permite, por meio da sobreposição dos dois grids, uma enorme variedade de composições. É a chave para entender a maleabilidade que marca o projeto.

Mas ao se concentrarem apenas nas questões gráficas, os textos de Aguilera e Lessa desprezam que as tais questões estavam a reboque de uma grande revolução editorial. Para além de uma reforma, esse momento deve ser visto como a criação de um novo jornal a partir de novas bases. A base inicial, o JB pré-reforma, era apenas um jornal de classificados entrecortado por matérias vindas da Agência Nacional, e disso pouco restou.

EDIÇÃO

Os textos e entrevistas que dão conta do Jornal do Brasil ocupam boa parte das páginas do livro. Algo coerente não apenas com a amplitude do projeto, mas também com a importância que esse teve na carreira de Amilcar. Mas a pesquisa iconográfica referente ao JB é deficitária. As vinte e poucas imagens não traduzem aquilo que os textos se esforçam em apontar. Tal constatação se potencializa quando, por contraste, comparamos as páginas do livro dedicadas ao projeto criado por Amilcar para o Jornal de Resenhas. Aqui não há economia. Mais de trinta imagens, entre desenhos, reproduções de páginas, esboços e cartas servem de ilustração para o único texto sobre o projeto, uma entrevista com Franklin de Mattos, editor do suplemento.

Seis imagens ilustram a passagem de Amilcar pela Imprensa Oficial de Minas Gerais. Mas ainda faltam reproduções da produção dele nos veículos Manchete, Correio da Manhã, O Globo, Última Hora, A Província do Pará e O Estado de São Paulo. Amilcar ainda projetou alguns livros, dos quais se destaca o volume organizado por Aracy Amaral, Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Não há, em Preto no Branco, nenhuma menção a essa produção.

A parte final da publicação é dedicada às ilustrações. Vemos imagens criadas por Amilcar para o Jornal de Resenhas e também uma série de desenhos, como ele costumava chamar suas pinturas, que serviram de ilustração para as capas dos livros de Franz Kafka, editados pela Companhia das Letras.

As ilustração feitas para o Jornal de Resenhas são apresentadas distantes de suas legendas. Desse modo, a edição tende a valorizar a autonomia das imagens diante dos textos que lhe serviram de partido. Mas a intenção da organizadora é exatamente a oposta, “[...] quisemos enfatizar não apenas as óbvias qualidades estéticas de seus desenhos —os traços soltos e precisos, sejam finos ou grossos, que recortam as figuras de forma geométrica—, mas também o diálogo que mantém com os textos [...]”. Em meio à confusão, cabe ao leitor buscar as referências ao final do livro. Deixamos ainda de ver a ilustração inserida em seu habitat natural, a página do jornal.

Os desenhos que ilustram as capas de Kafka também são apresentados de forma autônoma. A legenda apenas diz “os desenhos ilustram nove livros de Franz Kafka, editados pela Companhia das Letras e traduzidos por Modesto Carone. Todos em tinta acrílica sobre tela. [...]”. Ficamos mais uma vez sem saber como tais imagens foram aplicadas às publicações.
O livro fica no limbo. Não tem o vigor necessário para ser considerado uma ampla documentação da produção de design gráfico de Amilcar de Castro, ao mesmo tempo em que não se aprofunda o suficiente para dar conta analiticamente do tema.

A ausência de uma introdução — imagino que não devemos tomar o texto do patrocinador como tal — corrobora tal idéia. Na falta de clareza de suas intenções, o livro se torna um vale-tudo. E qual não é nossa surpresa ao descobrirmos que, colado à terceira-capa do livro, há um DVD. Uma pequena animação, pontuada por frases soltas, “recorte de luz no espaço, vão também é forma, barroco revisitado”, descreve os passos do processo construtivo das esculturas e desenhos de Amilcar. Um pincel antropomorfizado, que ora se desdobra em tesoura, ora em maçarico, é nosso guia nessa insólita experiência.


Daniel Trench é mestrando em Poéticas Visuais  pela ECA-USP. É professor do curso de design visual da Escola Superior de  Propaganda e Marketing e dirige o Estúdio Mola. É editor de arte das revistas Cebrap Novos Estudos e Ácaro.

 


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