Ano: I Número: 2
ISSN: 1983-005X
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Assédio luminoso
Gilberto Paim

Livro: Em Louvor da Sombra Autor(a): Junichiro Tanizaki Editora: Companhia das Letras 2007

Postado: 17/02/2008

   

A luz é um valor essencialmente positivo da nossa cultura. Apreciamos os espaços bem iluminados e organizados, sem áreas de sombra. O modernismo substituiu paredes de alvenaria por cortinas de vidro transparente que inundaram de luz fábricas, escritórios e residências. Costumamos associar a luz solar à saúde, ao bem-estar e, em grande parte, também à alegria de viver. A luz elétrica é prática, eficiente, imprescindível. A vasta panoplia de recursos artificiais de iluminação contribui para anular a diferença entre o dia e a noite em prédios de escritórios, shopping centers e hospitais. A luz intensa e constante altera, porém, dramaticamente a nossa percepção das coisas assim como as próprias coisas – eis o lado obscuro do triunfo moderno da luz. A leitura de Em Louvor da Sombra, breve e extraordinário ensaio do romancista japonês Junichiro Tanizaki, publicado originalmente em 1933, nos revela alguns pontos cegos da nossa percepção moderna ultra iluminada.

Tanizaki identificou na difusão da luz elétrica uma grave ameaça à beleza da arte japonesa, que prosperou em estreita associação com a vida cotidiana, cultivada e apreciada na penumbra. Ele nos explica que o telhado proeminente da casa japonesa é como um guarda-sol que protege das intempéries a estrutura frágil de madeira e os painéis móveis de papel de arroz. O amplo beiral atenua a luz no interior da casa que se abre para a rua ou para a natureza através do deslizar das portas-janelas. A intensidade da sombra varia em cada cômodo. O arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright recorreu aos telhados “guarda-sol” japoneses em muitos de seus projetos residenciais, ao contrário dos europeus Adolf Loos e Le Corbusier que se empenharam em abolir completamente os telhados em benefício da luz.

Segundo Tanizaki a luz elétrica compromete a beleza misteriosa de alguns materiais e formas, e contraria aspectos ritualísticos da sua cultura.  Segundo ele, a luz forte faz desaparecer as nuances de espessura e tonalidade do papel artesanal; reduz a exuberância cromática da laca; perturba o relevo suave dos veios da madeira; vulgariza os ornamentos dourados que são, no entanto, belíssimos ao irradiar a própria luz nos ambientes sombrios. A luz elétrica achata, uniformiza e clama pela correção de todas as coisas “imperfeitas”. Enquanto a chama da vela na lanterna de papel washi evidencia e valoriza as qualidades estéticas irregulares dos materiais naturais, do fazer artesanal e da ação imprevisível do tempo sobre os objetos, a potente lâmpada de vidro impõe e consagra o novo, o liso, o uniforme, o cintilante. O brilho estridente do metal polido toma o lugar da pátina sombria que envolvia como uma névoa o utensílio de estanho.

Em defesa dos princípios austeros da estética japonesa, Tanizaki afirma que a passagem do tempo torna mais belas as cores que resultam da acumulação sucessiva de “camadas de sombras”, como nas tigelas de madeira recobertas de laca vegetal. No Ocidente, ao contrário, nos esforçamos continuamente para manter a intensidade original das cores que são “camadas de luz solar”. Nossas luzes e paredes claras vigiam com severidade o envelhecimento das coisas e de nós mesmos. No seu romance A Chave, uma das facetas perversas do protagonista consiste em fotografar sob a luz forte de uma lâmpada a nudez de sua jovem esposa que, constrangida e humilhada, mantém os olhos fechados como se adormecida.  

Na década de 1930 os estrangeiros já se surpreendiam com a iluminação féerica de Tóquio à noite. Tanizaki denunciou a anestesia provocada pelo excesso de luz. Nas grandes cidades de todo o mundo é impossível, por exemplo, admirar o céu estrelado. As janelas de vidro dos nossos escritórios e apartamentos nos impõem imensos outdoors que revestem prédios inteiros e desfrutam ostensivamente da luz solar e da luminotécnica de ponta. Nas vitrines, a luz dos inúmeros spots é mais intensamente refletida pelos produtos cujo design contribui para esta finalidade moderna. Zonas e camadas de sombra são falhas estratégicas graves no combate planetário travado entre as marcas pela visibilidade máxima. 

É bastante irônico que o artista plástico e designer pop-star japonês Takashi Murakami tenha sido o responsável pela introdução de cores vibrantes e luminosas, inspiradas no imaginário infantil, na padronagem dos acessórios de uma marca de luxo, caracterizada tradicionalmente pela sobriedade.  O conceito de superflat ( super-plano, super-superficial, super-banal)  elaborado por Murakami ilustra perfeitamente o projeto já bem avançado de um mundo sem sombras, no qual todo o desejo deve nascer e se realizar sob a luz ininterrupta do consumo.

 


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