Ano: IV Número: 43
ISSN: 1983-005X
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Quando o design era uma causa e não um estilo
Pedro Fiori Arantes

Livro: Design, cultura e sociedade Autor(a): Gui Bonsiepe Editora: Blucher

Postado: 05/03/2012

   

Mesmo que seja desnecessário apresentar Gui Bonsiepe, talvez possamos dizer que ele é um defensor de primeira grandeza da “boa causa” do design – entendida como a pesquisa de soluções para as necessidades de massa, a defesa da virtude pedagógica do bom desenho e a tentativa de participar, por meio dos objetos, do processo de transformação da sociedade. Ele é, na América Latina, continente que escolheu quando saiu da Alemanha no fim dos anos 1960, passando pelo Chile de Allende, um dos principais herdeiros do legado do projeto moderno da Bauhaus e da Escola de Ulm, da qual foi aluno. Diante da rarefação crítica do debate em torno do Design, seu novo livro Design, cultura e sociedade (Editora Blucher, 2011) é mais do que bem vindo, é leitura obrigatória para todos aqueles que desconfiam do fetichismo que aprisiona o design no universo fashion do consumo acelerado.

Suas afirmações e questionamentos vieram para “incomodar a festa do mundo belo do design”. A tarefa que se arroga, da primeira à última página, é o combate ao design transformado em estilo, em evento midiático, submetido ao marketing, ao fun e identificado com superfícies sedutoras. E o faz em nome dos princípios construtivos do design moderno que, por um momento, na formação das sociais-democracias européias, fez parte de um programa mais amplo de uma sociedade de abundância, mais igualitária e humanista. Bonsiepe está, assim, empenhado em reivindicar para o design novamente aquele sentido forte da noção de projeto, como ação racional, antecipatória e civilizadora. Nesse sentido, revisa a herança da Bauhaus e, sobretudo, da Escola de Ulm, da qual fez parte – como momentos na história do design em que este, era, antes de tudo “uma causa e não um estilo” (parafraseando a expressão-título de Anatole Kopp a respeito do projeto moderno na arquitetura).

Para tanto, Bonsiepe propõe uma metodologia projetual em design, que combina teoria e prática de modo inovador, fortalecendo sua dimensão interdisciplinar – entre as ciências e as humanidades – embora preservando as especificidades do seu campo e sua competência projetual. Ele exige dos designers razões objetivas (e mesmo científicas) para as tomadas de decisão, questionando o subjetivismo autoral como resposta às necessidades da produção e da reprodução da vida cotidiana. Nesse sentido, reafirma o design como ferramenta de resolução de problemas que afetam o dia-a-dia e que exigem do projetista o conhecimento pleno da relação entre objetos, usuários e sociedade – incluindo o plano simbólico. E, mais que isso, reivindica a rearticulação do design com um projeto social mais amplo, a criação de um “espaço de autodeterminação” em um contexto de democracia radical e redução de desigualdades.   

Os argumentos de Bonsiepe são convincentes a ponto de nos perguntarmos, afinal, por que a boa causa do Design foi abandonada? Parece lógico e mais do que razoável que a retomemos antes que seja tarde. Contudo, devemos nos perguntar se, no capitalismo global sob comando das finanças e do espetáculo, há espaço para o avanço de tal projeto – que não deixa de ser, ainda, o da razão iluminista. Quem é seu atual portador? Um estado esclarecido na defesa do interesse público? Empresas conscientes de seu papel social, refreando o ímpeto mercantil? Uma esfera pública que mediaria o conflito no interior da sociedade civil? Consumidores organizados ou neoproletários da era digital? O fato é que, ao longo do livro, não fica claro de onde partiria a inspiração e a ação para essa reforma do design (ou a retomada de seus fundamentos). Por isso, Bonsiepe ainda arroga aos designers uma posição demiúrgica (ou uma consciência de classe?): no limite, seriam eles próprios os portadores do esclarecimento e da razão objetiva imanente ao mundo justo das coisas bem desenhadas. A eles caberia civilizar a barbárie corporativa, o fetichismo consumista, a favor dos princípios de um “humanismo projetual”.

Mas o designer está inelutavelmente incorporado ao emaranhado de agentes que fazem parte do sistema produtor de mercadorias, quase sempre em posição subalterna. Sua autonomia é, portanto, limitada ou inexistente. E, mesmo que pretendessem levar a termo a boa causa de Bonsiepe, creio que a imensa maioria da “classe criativa dos designers” não vive crises de consciência e está mesmo aproveitando a aceleração do ciclo de consumo que o capitalismo promove.   

Sem deixar de reconhecer os méritos de Bonsiepe em procurar reatualizar toda essa tradição, imagino que uma forma possível de reatá-la estaria justamente em questionar melhor o conjunto dos processos de produção, circulação e consumo dos objetos do design, isto é, da ciranda fantasmagórica das mercadorias no capitalismo atual. Apesar de retomar temas que lhes foram caros, como as desigualdades tecnológicas entre centro e periferia e revisitar a teoria da dependência, Bonsiepe não trata propriamente da mundialização do capital, das empresas em rede, da acumulação flexível, da financeirização da economia, enfim, de aspectos que condicionam o design na contemporaneidade. Daí um certo sentimento extemporâneo em momentos do livro, mesmo quando trata de temas atuais, como o design da informação.  

Em 1963, Argan já colocava em dúvida, em seu conhecido texto “Projeto e destino”, a capacidade emancipadora da noção de projeto numa sociedade tecnológica e cada vez mais anti-humanista. Naquele momento apontava para a tendência destrutiva da indústria, que aniquilou o objeto e seu valor de uso em nome da imagem vendável – tema que será, poucos anos depois, desenvolvido por Guy Debord em A sociedade do espetáculo. Para Argan, não há projetação crítica no mundo da mercadoria, só na arte. Ou, noutros termos, só haverá perspectiva crítica no design industrial se ele deixar de ser guiado pelo fim último do lucro.

O ponto cego do projeto moderno de Bonsiepe é retirar o design do lugar que ocupa no aparato econômico que o define enquanto parte da sociedade produtora de mercadorias.A ausência dessa problematização é que permite o dualismo entre causa e estilo, fórmula insuficiente para compreender o lugar nada marginal que o design ocupa na reprodução sistêmica do capitalismo na era das marcas.

O design como estilo, como estímulo aos desejos, portanto ao consumo, não é um fenômeno novo – é mesmo contemporâneo daquele momento em que foi uma causa para uma sociedade mais democrática. O economista John Galbraith, lembrado por Bonsiepe, já apontava para isso no início do século XX: o que denominou “passagem da economia da necessidade para a economia do desejo” era um passo necessário para o avanço da forma-mercadoria e o aumento das taxas de lucro. Galbraith explica que, diferentemente das necessidades, que são saciáveis, os desejos são infinitos e, por isso, o aspecto sensível dos objetos (o estímulo aos sentidos) passa a ter função econômica. O autor, coerentemente, aponta o design e o marketing como elementos decisivos das novas técnicas mobilizadas para manter e expandir o poder das grandes corporações.

Ao contrário do styling, que era uma forma degradada de gerar novos modismos por mudanças epidérmicas nos produtos, o branding retoma, na chave hiper-mercantil, premissas de coerência e integralidade do design que estavam postas pelo projeto moderno. O branding, ou design de marcas, recoloca o design no centro da tomada de decisões de enormes complexos financeiro-industriais. Gostemos ou não, o design no mundo das marcas está mais do que nunca tratando do núcleo duro de produção e reprodução material e simbólica do capital em sua fase atual. No branding, o design procura dar coerência a todos os elementos visuais de uma corporação, dos objetos à sua comunicação. Trata-se da construção de identidades que fundamentam a capacidade da empresa capitalista em obter rendas monopolistas advindas da exclusividade da sua “experiência de marca”. Ou seja, o programa de um design ampliado a todas as esferas da vida, se espraia por todos os cantos de uma grande corporação, e talvez seja – ironicamente – a maior realização da promessa de design total que já estava semeada no projeto moderno, na Bauhaus e Ulm.    

Bonsiepe não leva ao limite a interpretação das consequências do avanço implacável da forma mercadoria sobre os objetos da vida cotidiana.Como resgatá-los dessa condição mercantil, ou melhor, como desmercantilizá-los? É possível salvar a boa causa do design do capitalismo? Ou ainda, é possível salvá-la no capitalismo? Diante da cultura anticrítica dominante, como esperar a existência de uma relação crítica com os objetos que nos cercam?

Os casos escolhidos e os objetos comentados são, quase todos, de pouca relevância ou marginais na reprodução material e simbólica do capital hoje. Bonsiepe não chega a tratar do aparato militar-informacional e suas mercadorias-chave, dos novos carros aos caças de guerra, dos celulares aos tablets, da TV interativa ao cinema 3D, das próteses aos equipamentos de diagnóstico por imagem, da cyber realidade aos games, das interfaces das redes sociais aos sistemas digitais de controle e vigilância etc. Esse sistema de objetos (ou objetos do sistema) da contemporaneidade, turbinados pelo poder das grandes corporações, portadores de novas artimanhas fetichistas da era digital, com suas velhas e novas formas de sedução, perversão e destruição, deveria ser objeto da critica radical.

Veja-se o caso emblemático da Apple. Steve Jobs (mitificado ainda em vida), Jonathan Ive (o chefe da equipe de designers), e seus i-gadgets que entretêm as classes abastadas (e não só) são considerados o maior caso de sucesso da história recente do design. E os produtos da Apple, mercadorias em estado puro, talvez coloquem em questão o dualismo de Bonsiepe entre a boa forma bauhausiana e o design rebaixado a estilo de vida. Ali ambos parecem ter encontrado uma poderosa síntese, mas sem superação (pois não há negatividade) – a não ser a superação na estratosférica escalada de lucros. A Apple cumpre a promessa do design como “resolução inteligente de problemas” e “competência projetual” – de forma mais extensa e radical do que a velha Braun, pois não alterou apenas a forma de barbear, mas a própria ação comunicativa por meio de suas interfaces digitais.

Seria preciso perguntar qual a promessa do modelo Apple de Design? E no que se diferencia do projeto moderno revisitado por Bonsiepe? Se a Apple atualiza o paradigma da boa forma, ela revela igualmente o fundo falso, ou formalista, da própria causa moderna do desenho – ao mesmo tempo em que recalca sua articulação com um projeto de transformação social mais amplo. A boa forma reluz e ofusca, deixando na sombra a vontade de emancipação – o objeto do desejo é um fim em si. A transformação social que lhe interessa é a revolução sistêmica, que ela própria põe em curso a seu favor. Os objetos bem desenhados da Apple encobrem mecanismos engenhosos de aprisionamento de mentes e gestos, e deflagram engrenagens de sucção de dinheiro. Se a maçã mais poderosa desde Newton (e Adão) encarna o Poder do Design, ela condiciona comportamentos e cria mercados exclusivos para alimentar suas maquininhas fetichistas de usuários em transe (os apple addicts, que fazem filas na neve a espera dos novos lançamentos). Seu design total revela-se, na verdade, totalitário. Se, ainda por cima, enveredarmos pelo misterioso e oculto campo da produção, descobriríamos que o trabalho ainda forja esses brinquedos tão sedutores quanto perversos em fábricas implantadas em países pobres e/ou com regimes autoritários, nas quais são recorrentes as denúncias de uso de trabalho degradante, precarizado e subremunerado (como de outras grandes corporações). O quadro se completa com a extração predadora de matérias-primas e a destinação incerta desse crescente e descartável lixo digital.

As condições de trabalho e as relações de produção que submetem quase todas as mercadorias a um processo de “chinificação” – tema que deveria ser central em uma crítica radical ao design – não são abordadas por Bonsiepe. Para ele, a centralidade da contradição está nas relações entre projetistas e usuários, em termos de usabilidade e da dimensão simbólica dos produtos – o que pode levá-lo a recair em uma posição instrumental. Seria possível um design humanizado, crítico, racional diante da mais vil exploração a que têm sido submetidos os trabalhadores nas novas fronteiras industriais (e mesmo nas menos novas, como a nossa)? Ou seja, é possível a defesa do usuário dissociada da defesa do produtor? Parece razoável afirmar que só existe “humanismo projetual” ou “design emancipatório” se ele ocorrer não apenas na mesa das pessoas, mas também no chão de fábrica – o que implica ampliar novamente os termos da questão: repor as contradições entre capital e trabalho e integrar o design a todo o complexo financeiro-fabril das empresas em rede em que está emaranhado – para então pensar como destacá-lo como parte de um outro projeto de sociedade.   

Não se pode salvar o design sem salvar os produtores do design (muito além do próprio designer).Isso significa reafirmar que a relação entre designers e produtores deve ser reinventada numa aliança entre projetistas e operários – sob pena do discurso esclarecido dos objetos da vida manter ocultos os perdedores dessa causa. E não se trata apenas de garantir legislação trabalhista, mas de voltar a questionar a premissa de design como “desenho separado”, trabalho intelectual que é atributo de poucos, enquanto os demais estão condenados ao trabalho fragmentado e alienado da divisão avançada do trabalho nas grandes indústrias. Isso significa redefinir os métodos de projeto para além do círculo privilegiado dos técnicos bem formados.

Como Bonsiepe, também não sou defensor da dialética negativa e dos braços cruzados diante do avanço da barbárie em uma sociedade em estado de emergência. Como arquiteto, atuo em um coletivo que apóia movimentos sociais e realiza projetos que, a seu modo, tentam superar a forma-mercadoria e propor novas relações sociais, políticas e ambientais – mesmo no contexto adverso em que vivemos. Por isso, embora me alinhe nas fileiras da defesa de um design humanista, democrático, racional e fundado em uma consciência crítica, creio que ele só pode existir desse modo se for concebido como atividade projetual socializada e em aliança com coletivos de produtores livremente associados (cooperativas, movimentos sociais, fábricas autogeridas, assentamentos de reforma agrária etc).  Nesse sentido, é possível pensar num design contra-hegemônico ou num contra-design, como faz Bonsiepe a respeito das contra-identidades. Experimentá-lo é uma tarefa árdua, pois nadamos contra a corrente, fora da lógica do mercado, desamparados de políticas públicas à altura dos desafios e mesmo sem interlocutores preparados para levar ao limite suas possibilidades.O que consideramos racional e plausível não tem condições objetivas para ser viabilizado em maior escala. E talvez tenhamos que assumir nossa condição marginal e continuar experimentando em situações restritas, documentando ao máximo os processos e produtos para que possam um dia servir de referência para iniciativas mais amplas. Se esse empenho projetual e construtivo é necessário, de outro lado, não podemos abdicar da crítica radical ao sistema, de travar a batalha das ideias nesse campo onde estão plantadas maçãs apetitosas e envenenadas.     
 


Pedro Fiori Arantes é arquiteto e urbanista, doutor em Tecnologia da Arquitetura pela FAU-USP e professor de História da Arte na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). É integrante do coletivo Usina e ex-professor de Fundamentos Sociais do Design na Facamp.

 


Comentários

Cassiane Patzlaff
29/10/2012

Muito bom!

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